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ENCONTRO COM OS PÁROCOS E SACERDOTES DE ROMA

"LECTIO DIVINA" DO PAPA BENTO XVI

Sala das Bênçãos
Quinta-feira, 10 de Março de 2011

 

Eminência
Excelências e queridos irmãos!

É para mim uma grande alegria estar todos os anos, no início da Quaresma, convosco — o Clero de Roma — e começar convosco o caminho pascal da Igreja. Gostaria de agradecer a Sua Eminência as bonitas palavras que me ofereceu, de agradecer a todos vós o trabalho que fazeis para esta Igreja de Roma, que — segundo santo Inácio — preside à caridade, e deveria ser sempre também exemplar na sua fé. Façamos juntos o possível para que esta Igreja de Roma responda à sua vocação e para que nós, nesta «Vinha do Senhor», sejamos trabalhadores fiéis.

Ouvimos este trecho dos Actos dos Apóstolos (20, 17-38), no qual são Paulo fala aos presbíteros de Éfeso, narrado propositadamente por são Lucas como testamento do Apóstolo, como discurso destinado não só aos presbíteros de Éfeso, mas aos presbíteros de todos os tempos. São Paulo fala não só com aqueles que estavam presentes naquele lugar, mas fala realmente connosco. Procuremos portanto compreender um pouco do que nos diz neste momento.

Começo: «Sabeis como desde o primeiro dia em que cheguei à Ásia, procedi sempre convosco» (v. 18) e sobre este comportamento, são Paulo diz, no final, que «noite e dia, não cessei de exortar... cada um de vós» (v. 31). Isto significa: em todo este tempo ele era anunciador, mensageiro, embaixador de Cristo para eles; era para eles sacerdote. Num certo sentido, poder-se-ia dizer que era um sacerdote trabalhador, porque — como diz também neste trecho — trabalhou com as suas mãos como tecedor de tendas para não ser um peso para eles, para ser livre, para os deixar livres. Mas mesmo tendo feito um trabalho com as próprias mãos, contudo em todo esse tempo ele era sacerdote, em todo o tempo exortou. Por outras palavras, mesmo se não estava todo o tempo exteriormente à disposição da pregação, o seu coração e a sua alma estavam sempre presentes para eles; ele estava imbuído da Palavra de Deus, pela sua missão. Isto parece-me um aspecto muito importante: não se é sacerdote só a meio tempo; mas sempre, com toda a alma, com todo o nosso coração. Este ser com Cristo e ser embaixador de Cristo, este ser para os outros, é uma missão que permeia a nossa pessoa e deve permear sempre mais a totalidade do nosso ser.

Depois são Paulo diz: «Tenho servido o Senhor com toda a humildade» (v. 19). «Servido»: uma palavra-chave de todo o Evangelho. O próprio Cristo diz: Não vim para subjugar, mas para servir (cf. Mt 20, 28). É o Servo de Deus, e Paulo e os Apóstolos continuam a ser «servos»; não donos da fé, mas servos da vossa alegria, diz são Paulo na Segunda Carta aos Coríntios (cf. 1, 24). «Servir», deve ser também para nós determinante: somos servos. E servir significa não fazer o que me proponho, o que seria para mim mais agradável; servir significa deixar-me impor o peso do Senhor, o jugo do Senhor; servir quer dizer não me comportar segundo as minhas preferências, as minhas prioridades, mas deixar-me realmente «assumir ao serviço» pelo outro. Isto significa que também muitas vezes nós devemos fazer coisas que imediatamente não parecem espirituais e que não correspondem sempre às nossas escolhas. Todos nós, do Papa até ao último vice-pároco, devemos fazer trabalhos de administração, trabalhos temporais; contudo fazemo-lo como serviço, como parte de quanto o Senhor nos impõe na Igreja e fazemos o que a Igreja nos diz e o que espera de nós. É importante este aspecto concreto do serviço, que não somos nós que escolhemos o que fazer, mas somos servos de Cristo na Igreja e trabalhamos como a Igreja nos diz, onde a Igreja nos chama, e procuramos ser precisamente assim: servos que não fazem a própria vontade, mas a vontade do Senhor. Na Igreja somos realmente embaixadores de Cristo e servos do Evangelho.

«Servi o Senhor com toda a humildade». Também «humildade» é uma palavra-chave do Evangelho, de todo o Novo Testamento. Humildade, o Senhor precede-nos. Na Carta aos Filipenses, são Paulo recorda-nos que Cristo, o qual estava acima de todos nós, era realmente divino na glória de Deus, humilhou-se, desceu fazendo-se homem, aceitando todas as debilidades do ser humano, chegando à obediência última da Cruz (cf. 2, 5-8). Humildade não significa uma falsa modéstia — estamos gratos pelos dons que o Senhor nos doou — mas indica que somos conscientes de que tudo o que podemos fazer é dom de Deus, é doado pelo Reino de Deus. Nós trabalhamos nesta humildade, neste não querer aparecer. Não pedimos louvores, não queremos «pôr-nos em evidência», não é para nós critério decisivo pensar no que dirão de nós nos jornais ou alhures, mas o que diz Deus. É esta a verdadeira humildade: não nos exibirmos diante dos outros homens, mas estar sob o olhar de Deus e trabalhar com humildade para Deus e assim servir realmente também a humanidade e os homens.

«Jamais recuei perante qualquer coisa que vos pudesse ser útil. Preguei e instruí-vos» (v. 20). São Paulo volta de novo, depois de algumas frases, sobre este aspecto e diz: «Jamais recuei quando era preciso anunciar-vos todos os desígnios de Deus» (v. 27). Isto é importante: o Apóstolo não prega um Cristianismo «à la carte», segundo os próprios gostos, não prega um Evangelho segundo as próprias ideias teológicas preferidas: não se subtrai ao compromisso de anunciar toda a vontade de Deus, até a vontade que não agrada, também os temas que pessoalmente não são aliciantes. É nossa missão anunciar toda a vontade de Deus, na sua totalidade e simplicidade última. Mas é importante o facto de devermos instruir e pregar — como diz são Paulo — e propor realmente a vontade total de Deus. E penso que o mundo de hoje esteja curioso por conhecer tudo, e também nós deveríamos estar curiosos por conhecer a vontade de Deus: o que poderia ser mais interessante, mais importante, mais essencial para nós do que conhecer o que Deus quer, conhecer a vontade de Deus, o rosto de Deus? Esta curiosidade interior deveria ser também a nossa curiosidade de conhecer melhor, de modo mais completo, a vontade de Deus. Devemos responder e despertar esta curiosidade nos outros: conhecer verdadeiramente toda a vontade de Deus e assim conhecer como podemos e como devemos viver, qual é o caminho da nossa vida. Por conseguinte devemos fazer conhecer e compreender — na medida do possível — o conteúdo do Credo da Igreja, da criação até à vinda do Senhor, ao mundo novo. A doutrina, a liturgia, a moral, a oração — as quatro partes do Catecismo da Igreja Católica — indicam esta totalidade da vontade de Deus. E é importante também não nos perdermos nos pormenores, não criar a ideia de que o Cristianismo é um conjunto imenso de coisas para aprender. Ainda hoje é simples: Deus mostrou-se em Cristo. Mas entrar nesta simplicidade — eu creio em Deus que se mostra em Cristo e desejo ver e realizar a sua vontade — tem conteúdos e, de acordo com as situações, entramos depois nos pormenores ou não, mas, por um lado, é essencial fazer compreender a simplicidade última da fé. Crer em Deus como se mostrou em Cristo, é também a riqueza interior desta fé, as respostas que dá às nossas perguntas, também as respostas que num primeiro momento não nos agradam e que contudo são o caminho da vida, o caminho verdadeiro; enquanto entramos nestas coisas também não muito agradáveis para nós, podemos compreender, começamos a compreender que é realmente a verdade. E a verdade é bela. A vontade de Deus é boa, é a própria bondade.

Depois o Apóstolo diz: «Preguei... tanto publicamente como nas vossas casas, afirmando a judeus e gregos a necessidade de se converterem a Deus e de acreditarem em Nosso Senhor Jesus» (v. 20-21). Está aqui um resumo do essencial: conversão a Deus, fé em Jesus. Mas detenhamo-nos um momento na palavra «conversão», que é a palavra central ou uma das palavras centrais do Novo Testamento. Aqui é interessante — para conhecer as dimensões desta palavra — estar atentos às diversas palavras bíblicas: em hebraico «šub» significa «inverter a rota», dar um rumo novo à vida; em grego «metanoia», «mudança do pensamento»; em latim «poenitentia», «acção minha para me deixar transformar»; em italiano «conversione» (conversão), que coincide mais com a palavra hebraica de «novo rumo à vida». Talvez possamos ver de modo particular o porquê da palavra do Novo Testamento, a palavra grega «metanoia», «mudança do pensamento». Num primeiro momento o pensamento parece tipicamente grego, mas ao aprofundar vemos que expressa realmente o essencial daquilo que também as outras línguas dizem: mudança do pensamento, ou seja, mudança real da nossa visão da realidade. Dado que nascemos no pecado original, para nós «realidade» são as coisas que podemos tocar, o dinheiro, a minha posição, as coisas de todos os dias que vemos no telejornal: esta é a realidade. E as coisas espirituais parecem um pouco «por detrás» da realidade: «metanoia», mudança do pensamento, significa inverter esta impressão. Não são essenciais as coisas materiais, o dinheiro, a casa, ou aquilo que posso ter; o essencial é a realidade. A realidade das realidades é Deus. Esta realidade invisível, aparentemente distante de nós, é a realidade. Aprender isto, e deste modo inverter o nosso pensamento, julgar deveras que o real que tudo deve orientar é Deus, são as palavras, a palavra de Deus. Este é o critério, Deus, o critério de tudo o que faço. Isto é realmente conversão, se o meu conceito de realidade mudou, se o meu pensamento mudou. E isto depois deve entrar em todas as coisas da minha vida: ter como critério, no juízo acerca de qualquer coisa, o que diz Deus sobre isso. É isto o essencial, não o que obtenho agora para mim, não a vantagem ou desvantagem que terei, mas a verdadeira realidade, orientar-nos para esta realidade. Parece-me que devemos, precisamente na Quaresma que é caminho de conversão, praticar sempre de novo todos os anos esta inversão do conceito de realidade, ou seja, que Deus é a realidade, Cristo é a realidade e o critério do meu agir e do meu pensar; exercer esta nova orientação da nossa vida. E assim também a palavra latina «poenitentia», que nos parece um pouco demasiado exterior e talvez activista, se torne real: exercer isto significa exercer o domínio de mim mesmo, deixar-me transformar, com toda a minha vida, pela Palavra de Deus, pelo pensamento novo que vem do Senhor e me mostra a verdadeira realidade. Assim não se trata apenas de pensamento, de intelecto, mas trata-se da totalidade do meu ser, da minha visão da realidade. Esta mudança de pensamento, que é conversão, toca o meu coração e une intelecto e coração, pondo fim a esta separação entre intelecto e coração, integra a minha personalidade no coração que é aberto por Deus e que se abre a Deus. E desta forma encontro o caminho, o pensamento torna-se fé, isto é, ter confiança no Senhor, um confiar-me ao Senhor, viver com Ele e empreender o seu caminho num verdadeiro seguimento de Cristo.

E são Paulo prossegue: «E agora, aqui vou preso em Espírito a Jerusalém, sem saber o que lá me espera; só sei que, de cidade em cidade, o Espírito Santo me avisa que me aguardam cadeias e tribulações. Mas, a meus olhos, a vida não tem valor algum, desde que eu possa concluir a minha carreira e cumprir a missão que recebi do Senhor Jesus, dando testemunho da Boa Nova da graça de Deus» (vv. 22-24). São Paulo sabe que provavelmente esta viagem a Jerusalém lhe custará a vida: será uma viagem rumo ao martírio. Aqui devemos ter presente o motivo da sua viagem. Vai a Jerusalém para entregar àquela comunidade, à Igreja de Jerusalém, a quantia para os pobres recolhida no mundo dos Gentios. É portanto uma viagem de caridade, e mais: é uma expressão do reconhecimento da unidade da Igreja entre judeus e gentios, é um reconhecimento formal da primazia de Jerusalém naquele tempo, da primazia dos primeiros Apóstolos, um reconhecimento da unidade e da universalidade da Igreja. Neste sentido, a viagem tem um significado eclesiológico e também cristológico, porque tem muito valor para ele este reconhecimento, esta expressão visível da unicidade e da universalidade da Igreja, que prevê até o martírio. A unidade da Igreja vale o martírio. Assim ele diz: «Mas a meus olhos, a vida não tem valor algum, desde que eu possa concluir a minha carreira e cumprir a missão» (v. 24). O mero sobreviver biológico — diz são Paulo — não é para mim o primeiro valor; para mim o mais importante é realizar o meu serviço; o primeiro valor para mim é estar com Cristo; o viver com Cristo é a vida verdadeira. Mesmo se ele perde esta vida biológica, não perde a vida verdadeira. Ao contrário, se perdesse a comunhão com Cristo para conservar a vida biológica, teria perdido a própria vida, o essencial do seu ser. Também isto me parece importante: ter as justas prioridades. Certamente devemos estar atentos à nossa saúde, trabalhar com bom senso, mas saber também que o valor último é estar em comunhão com Cristo; viver o nosso serviço e aperfeiçoá-lo faz concluir a carreira. Talvez nos possamos deter ainda mais uns momentos sobre esta expressão «desde que eu possa concluir a minha carreira». O Apóstolo quer ser até ao fim servo de Jesus, embaixador de Jesus para o Evangelho de Deus. Isto é importante, que também na velhice, mesmo se os anos avançam, não percamos o zelo, a alegria de sermos chamados pelo Senhor. É fácil, diria, num certo sentido, no início do caminho sacerdotal ser plenamente zelosos, esperançosos, corajosos, activos, mas pode acontecer facilmente, se consideramos como correm as coisas, que o mundo permanece sempre o mesmo, como o serviço se torna pesado, perder um pouco deste entusiasmo. Voltemos sempre à Palavra de Deus, à oração, à comunhão com Cristo no Sacramento — esta intimidade com Cristo — e deixemo-nos renovar na nossa juventude espiritual, renovar o zelo, a alegria de poder ir com Cristo até ao fim, de «terminar a carreira», sempre no entusiasmo de sermos chamados por Cristo para este grande serviço, para o Evangelho da Graça de Deus. E isto é importante. Falámos de humildade, desta vontade de Deus, que pode ser difícil. No final, o título de todo o Evangelho da Graça de Deus é «Evangelho», é «Boa Nova» que Deus nos conhece, que Deus me ama, e que o Evangelho, a vontade última de Deus é a Graça. Recordemo-nos de que a corrida do Evangelho começa em Nazaré, no quarto de Maria, com a expressão «Ave Maria», mas em grego é «Chaire kecharitomene»: «Alegra-te porque estás na Graça!». E esta palavra permanece o fio condutor: o Evangelho é convite à alegria porque estamos na Graça, e a última palavra de Deus é a Graça.

Depois vem o trecho sobre o martírio iminente. Aqui há uma frase muito importante, que gostaria de meditar um pouco convosco: «Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho de que o Espírito Santo vos constitui administradores para apascentardes a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o Seu próprio Sangue» (v. 28). Começo com a palavra «cuidado». Há alguns dias, falei na catequese sobre são Pedro Canísio, apóstolo da Alemanha na época da Reforma, e ficou-me gravada na memória uma palavra deste Santo, uma palavra que era para ele um brado de angústia no seu momento histórico. Ele diz: «Reparai, Pedro dorme, Judas está acordado». Isto é um aspecto que nos faz pensar: a sonolência dos bons. O Papa Pio XI disse: «o grande problema do nosso tempo não são as forças negativas, é a sonolência dos bons». «Tomai cuidado»: meditemos sobre isto, e pensemos que o Senhor no Horto das Oliveiras disse por duas vezes aos seus apóstolos: «Tomai cuidado!», e eles dormem. «Tomai cuidado», diz a nós; procuremos não dormir neste tempo, mas estar realmente prontos para a vontade de Deus e para a presença da sua Palavra, do seu Reino.

«Tomai cuidado convosco» (v. 28): também esta é uma recomendação para os presbíteros de todos os tempos. Existe um activismo com boas intenções, mas no qual se esquece a própria alma, a própria vida espiritual, o próprio ser com Cristo. São Carlos Borromeu, na leitura do Breviário da sua memória litúrgica, diz-nos, todos os anos de novo: não podes ser um bom servo do próximo se descuidas a tua alma. «Tomai cuidado convosco»: estejamos atentos também à nossa vida espiritual, ao nosso ser com Cristo. Como disse tantas vezes: pregar e meditar a Palavra de Deus não é tempo perdido para a cura das almas, mas é condição para que possamos estar realmente em contacto com o Senhor e assim falar directamente do Senhor aos outros. «Tomai cuidado convosco e com todo o rebanho de que o Espírito Santo vos constitui administradores para apascentardes a Igreja de Deus» (v. 28). Aqui são importantes dois aspectos. Em primeiro lugar: «o Espírito Santo vos constitui»; ou seja, o sacerdócio não é uma realidade na qual se encontra um trabalho, uma profissão útil, bonita, agradável e que se escolhe. Não! Somos constituídos pelo Espírito Santo. Só Deus nos pode tornar sacerdotes, só Deus pode escolher os seus sacerdotes e, se somos escolhidos, somos escolhidos por Ele. Sobressai aqui claramente o carácter sacramental do presbiterado e do sacerdócio, que não é uma profissão que deve ser desempenhada porque alguém deve administrar as coisas, deve também pregar. Não é algo que fazemos nós, simplesmente. É uma eleição do Espírito Santo e nesta vontade do Espírito Santo, vontade de Deus, vivamos e procuremos cada vez mais deixar-nos arrebatar pelo Espírito Santo, pelo próprio Senhor. Em segundo lugar: «constituídos administradores, para apascentar». A palavra traduzida em italiano «custodi» (administradores), em grego é «episkopos». São Paulo fala aos presbíteros, mas chama-os «episkopoi». Podemos dizer que, na evolução da realidade da Igreja, os dois ministérios ainda não estavam claramente separados e distintos, são ainda o único sacerdócio de Cristo e eles, os presbíteros, são também «episcopoi». A palavra «presbítero» vem sobretudo da tradição judaica, onde estava em vigor o sistema dos «idosos», dos «presbíteros», enquanto a palavra «episkopos» foi criada — ou encontrada — no âmbito da Igreja pelos pagãos, e provém da linguagem da administração romana. «Episcopoi» são aqueles que vigiam, que têm uma responsabilidade administrativa na vigilância do andamento das coisas. Os cristãos escolheram esta palavra no âmbito pagão-cristão para expressar o cargo do presbítero, do sacerdote, mas naturalmente isto mudou imediatamente o significado do termo. A palavra «episkopoi» foi imediatamente identificada com a palavra «pastores». Ou seja, guardar é «apascentar», fazer o trabalho do pastor: na realidade isto tornou-se depressa «poimainein», «apascentar» a Igreja de Deus; é estudado no sentido desta responsabilidade pelos outros, deste amor pelo rebanho de Deus. E não esqueçamos que, no Oriente antigo, «pastor» era o título dos reis: eles são os pastores do rebanho, que é o povo. A seguir, o rei-Cristo transforma interiormente — sendo o verdadeiro rei — este conceito. É o Pastor que se torna cordeiro, o pastor que se deixa matar pelos outros, para os defender do lobo; o pastor cujo primeiro significado é amar este rebanho e deste modo dar vida, alimentar, proteger. Talvez estes sejam os dois conceitos centrais neste cargo do «pastor»: alimentar dando a conhecer a Palavra de Deus, não só com as palavras, mas testemunhando-a por vontade de Deus; e proteger com a oração, com o compromisso total da própria vida. Pastores, o outro significado que os Padres da Igreja viram na palavra cristã «episkopoi» é: alguém que vigia não como um burocrata, mas como alguém que vê do ponto de vista de Deus, caminha para a altura de Deus e na luz de Deus vê esta pequena comunidade da Igreja. Isto é importante também para um pastor da Igreja, para um sacerdote, um «episkopos»: que veja sob o ponto de vista de Deus, que procure ver do alto, no critério de Deus e não segundo as próprias preferências, mas como Deus julga. Ver desta altura de Deus para assim amar com Deus e por Deus.

«Apascentar a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o Seu próprio Sangue» (v. 28). Encontramos aqui uma palavra central sobre a Igreja. A Igreja não é uma organização que se formou a pouco e pouco; a Igreja nasceu da Cruz. O Filho adquiriu a Igreja na Cruz e não só a Igreja daquele momento, mas a Igreja de todos os tempos. Adquiriu com o seu sangue esta porção do povo, do mundo, para Deus. E parece-me que isto nos deva fazer reflectir. Cristo, Deus criou a Igreja, a nova Eva, com o seu sangue. Assim nos ama e nos amou, e isto é verdadeiro em todos os momentos. Também isto nos deve fazer compreender que a Igreja é um dom; sentir-nos felizes por sermos chamados a formar a Igreja de Deus; sentir alegria por pertencer à Igreja. Claro, existem também sempre aspectos negativos, difíceis, mas no fundo deve permanecer isto: é um dom maravilhoso que posso viver na Igreja de Deus, na Igreja que o Senhor adquiriu com o seu sangue. Ser chamados a conhecer realmente o rosto de Deus, conhecer a sua vontade, conhecer a sua Graça, conhecer este amor supremo, esta Graça que nos guia e nos leva pela mão. Felicidade de ser Igreja, alegria de ser Igreja. Parece-me que devemos voltar a aprender isto. O receio do triunfalismo talvez nos tenha feito esquecer que é bom estar na Igreja, e que isto não é triunfalismo, mas humildade, estar gratos pelo dom do Senhor.

Segue-se que esta Igreja não é sempre só dom de Deus e divina, mas também muito humana: «Virão lobos temíveis» (v. 29). A Igreja é sempre ameaçada, há sempre perigo, a oposição do diabo que não aceita que na humanidade esteja presente este novo Povo de Deus, que haja a presença de Deus numa comunidade viva. Portanto, não nos devemos admirar que haja sempre dificuldades, que haja sempre erva daninha no campo da Igreja. Sempre foi assim e sempre o será. Mas devemos estar conscientes, com alegria, de que a verdade é mais forte que a mentira, o amor é mais forte que o ódio, Deus é mais forte que todas as forças contrárias a Ele. E com esta alegria, com esta certeza interior empreendamos o nosso caminho inter consolationis Dei et persecutiones mundi, diz o Concílio Vaticano II (cf. Const. Dog. Lumen gentium, 8): entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus.

E agora o penúltimo versículo. Neste ponto já não entro nos pormenores: no final surge um elemento importante da Igreja, do ser cristão. «Em tudo vos demonstrei que deveis trabalhar assim, para socorrerdes os fracos, recordando-vos das palavras que o próprio Senhor Jesus disse: “a felicidade está mais em dar do que em receber”» (v. 35). A opção preferencial pelos pobres, o amor pelos fracos é fundamental para a Igreja, é fundamental para o serviço de cada um de nós: estar atentos com grande amor aos fracos, mesmo quando não são simpáticos, ou são difíceis. Mas eles esperam a nossa caridade, o nosso amor, e Deus espera este nosso amor. Em comunhão com Cristo somos chamados a socorrer com o nosso amor, com as nossas acções, aqueles que são débeis.

Por fim, o último versículo: «Depois destas palavras, ajoelhou-se com todos eles e rezou» (v. 36). No final, o discurso torna-se oração e Paulo ajoelhou-se. São Lucas recorda-nos que também o Senhor no Horto das Oliveiras rezava de joelhos, e diz-nos que também santo Estêvão, no momento do martírio, se ajoelhou para rezar. Rezar de joelhos significa adorar a grandeza de Deus na nossa debilidade, gratos que o Senhor nos ame precisamente na nossa debilidade. Por detrás disto surge a palavra de são Paulo na Carta aos Filipenses, que é a transformação cristológica de uma palavra do profeta Isaías, o qual diz, no capítulo 45, que todo o mundo, o céu, a terra e tudo o que há sob a terra, se ajoelhará diante do Deus de Israel (cf. Is 45, 23). E são Paulo concretiza: Cristo desceu do céu para a cruz, para a obediência última. E neste momento realiza-se esta palavra do Profeta: diante de Cristo crucificado toda a criação, o céu, a terra e tudo o que há debaixo dela, se ajoelha (cf. Fl 2, 10-11). Ele é realmente a expressão da verdadeira grandeza de Deus. A humildade de Deus, o amor até à cruz, demonstra-nos quem é Deus. Diante d'Ele nós estamos de joelhos, adorando. Estar ajoelhados já não é expressão de servidão, mas da liberdade que o amor de Deus nos dá, da alegria de sermos remidos, de estar juntos, com o céu e com a terra, com toda a criação, a adorar Cristo, estar unidos a Cristo e assim ser remidos.

O discurso de são Paulo termina com a oração. Também os nossos discursos devem terminar com a oração. Peçamos ao Senhor para que nos ajude a estar cada vez mais imbuídos da Sua Palavra, a ser cada vez mais testemunhas e não só mestres, sempre mais sacerdotes, pastores, «episkopoi», ou seja, aqueles que vêem Deus e prestam o serviço do Evangelho de Deus, o serviço do Evangelho da Graça.

 



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