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VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE A PARIS E LISIEUX
(30 DE MAIO - 2 DE JUNHO 1980)

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Esplanada do Aeroporto de Le Bourget
Paris, 1 de Junho de 1980

 

Iniciarei agradecendo do fundo do coração a todos os que quiseram reunir-se aqui, esta manhã, vindos também das longínquas províncias da França. A todos os meus mais férvidos votos e especialmente às mães de família, neste dia da festa das mães. Convido-vos agora a recolherdes-vos comigo.

1. As palavras que há pouco escutámos, tem um dúplice significado: encerram o Evangelho como tempo da revelação de Cristo e, simultaneamente, abrem-no para o futuro como tempo da Igreja, o de um dever incessante e de uma missão.

Cristo diz: Ide!

Ele indica a direcção do caminho: todas as nações.

Particulariza a missão: Ensinai-as, baptizai-as.

A Igreja recorda estas palavras neste solene dia em que deseja particularmente adorar a Deus no mistério interior da Vida da Divindade: Deus como Pai, Filho e Espírito Santo.

Oxalá estas palavras constituam o fundamento essencial da nossa meditação, enquanto nos encontramos todos, por uma disposição admirável da Providência, tão perto de Paris, que é a capital da França, uma das capitais da Europa, uma entre outras, certamente, mas única no seu género, e uma das capitais do mundo.

Na última frase referida pelo Evangelho, Cristo disse: "Ide pelo mundo inteiro" (Mc 16, 15).

Estou hoje convosco, caros Irmãos e Irmãs, num destes lugares de onde, de uma maneira particular, se vê "o mundo", se vê a história do nosso "mundo" e se vê o "mundo" contemporâneo, um lugar onde este mundo se conhece e julga a si mesmo, conhece e julga as suas vitórias e os seus fracassos, os seus sofrimentos e as suas esperanças.

Permiti que, convosco, me deixe enlevar pela extraordinária eloquência das palavras dirigidas por Cristo aos seus discípulos. Permiti que através delas fixemos os olhos, pelo menos um instante, sobre o mistério insondável de Deus, e abordemos o que no homem é duradouro e por conseguinte o mais humano.

Permiti que nos preparemos deste modo para a celebração da Eucaristia na solenidade da Santíssima Trindade.

2. Cristo disse aos seus Apóstolos: "Ide... ensinai todas as nações...". Por isso hoje me encontro praticamente na capital da França, enquanto, há um ano, neste mesmo dia, primeiro domingo depois do Pentecostes, me encontrava num grande prado da antiga capital da Polónia, em Cracóvia, na cidade onde vivi e de onde Cristo me chamou para a Sé romana do Apóstolo Pedro. Tive lá diante dos olhos as fisionomias conhecidas dos meus compatriotas, e recordei-me de toda a história da minha nação, depois do seu baptismo. Esta história rica e difícil começara de um modo admirável, quase exactamente no momento em que tinha sido pronunciada a última palavra de Cristo dirigida aos Apóstolos: "Ensinai todas as nações, baptizai-as..". Com o baptismo a nação nasceu e a sua história teve início.

Esta nação — da qual sou filho — não vos é estrangeira. Nos períodos mais difíceis da sua história, ela encontrou junto de vós o apoio de que necessitava, os principais formadores da sua cultura, os porta-vozes da sua independência. Não posso deixar de me recordar disto, neste momento. É com gratidão que falo...

Bem mais tarde do que nesta região, os caminhos missionários dos sucessores dos Apóstolos atingiram o Vístula, os Cárpatos, o Mar Báltico... Aqui, ao contrário, a missão confiada por Cristo aos Apóstolos depois da Ressurreição conseguiu muito mais rapidamente um início de realização, senão de maneira própria da época apostólica, pelo menos no II século, com Ireneu, o grande mártir e pai apostólico, que foi bispo de Lião. Por outro lado, no Martirológio romano faz-se muitas vezes menção da "Lutetia Parisiorum"...

Primeiro a Gália e depois a França: a Filha primogénita da Igreja!

Hoje, na capital da história da vossa nação, quereria repetir estas palavras que constituem o vosso titulo de nobreza: Filha primogénita da Igreja.

E, retomando este titulo, quereria convosco adorar o mistério admirável da Providência. Prestar homenagem ao Deus vivo que, agindo através dos povos, escreve a história da salvação no coração do homem.

Esta história é tão antiga como o homem. Remonta à "pré-história", aos inícios. Quando Cristo disse aos Apóstolos: "Ide, ensinais todas as nações..." tinha já confirmado a duração da história da salvação, e, ao mesmo tempo, tinha anunciado esta etapa particular, a última etapa.

3. Esta história singular está escondida no mais íntimo do homem, é misteriosa e no entanto real, também na sua realidade histórica, está revestida, de maneira visível, de factos, acontecimentos, existências humanas e individualidade. Um capítulo muito longo desta história foi escrito na história da vossa pátria, pelos filhos e filhas da vossa nação. Seria difícil enumerá-los todos, mas recordarei apenas os que exerceram maior influência na minha vida: Joana D'Arc, Francisco de Sales, Vicente de Paulo, Luis Maria Grignon de Montfort, João Maria Vianney, Bernadette de Lourdes, Teresa de Lisieux, Irmã Isabel da Trindade, Padre Foucauld e todos os outros. Tão presentes estão na vida de toda a Igreja, tão influentes são pela luz e força do Espírito Santo...!

Melhor do que eu, eles diriam que a história da salvação começou com a história do homem, que a história da salvação tem sempre um novo inicio, que ela começa em cada homem que vem a este mundo. Deste modo a história da salvação entra na história dos povos, nações, pátrias e continentes.

A história da salvação começa em Deus. E precisamente isto que Cristo revelou e declarou até ao fim, quando disse: "Ide... ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo".

"Baptizar" quer dizer "imergir", e o termo significa a realidade mesma que ele exprime. Baptizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo quer dizer imergir o homem nesta Realidade que é Deus na sua Divindade: Realidade de todo insondável, que não é completamente reconhecível e compreensível senão por si mesma. E ao mesmo tempo, o baptismo imerge o homem nesta Realidade que, como Pai, Filho e Espírito Santo, se abre para o homem. Abre-se realmente. Nada é mais real do que esta abertura, esta comunicação, este dom do Deus inefável ao homem. Quando ouvimos os nomes do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eles falam-nos deste dom, desta "comunicação" extraordinária de Deus que, em si mesmo, é impenetrável para o homem... Esta comunicação, este dom é do Pai, atingiu o seu apogeu histórico e a sua plenitude no Filho crucificado e ressuscitado, e permanece ainda no Espírito que "intercede por nós com gemidos inefáveis" (Rom 8, 26).

As palavras que Cristo, no termo da sua missão histórica, dirigiu aos Apóstolos, são uma síntese absoluta de tudo o que tinha constituído esta missão, etapa por etapa, deste a Anunciação até à Crucifixão... e finalmente à Ressurreição.

4. No coração desta missão, no coração da missão de Cristo, está o homem, todo o homem. Através do homem existem as nações, todas as nações.

A liturgia de hoje é teocêntrica, e todavia é o homem que ela proclama. Proclama-o porque o homem está no coração mesmo do mistério de Cristo, o homem está no coração do Pai, do Filho e do Espírito Santo. E isto desde o início. Não foi ele criado à imagem e à semelhança de Deus? Fora disto o homem não tem sentido. O homem não tem um sentido no mundo senão como imagem e semelhança de Deus.

De outra maneira ele não tem sentido, e chegar-se-ia a dizer, como alguns afirmam, que o homem não é senão uma "paixão inútil".

Sim. É o homem que a liturgia de hoje também proclama.

"Quando contemplo o firmamento, obra das Vossas mãos, a lua e as estrelas que lá fixastes, exclamo: que é o homem, para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele cuidardes? Contudo, criaste-lo pouco inferior aos anjos, de glória e de honra o coroastes. Destes-lhe poder sobre as obras das Vossas mãos, submetestes-lhe todas as criaturas" (Sl 8, 4-7).

5. O homem... o elogio do homem... a afirmação do homem.

Sim, a afirmação do homem todo, na sua constituição espiritual e corporal, naquilo que o manifesta como sujeito exterior e interiormente. O homem adaptado, na sua estrutura visível, a todas as criaturas do mundo visível e ao mesmo tempo interiormente ligado à sabedoria eterna. E esta sabedoria, também ela, é anunciada pela liturgia de hoje, que canta a sua origem divina, a sua presença visível em toda a obra da criação para dizer enfim que ela "acha as suas delícias junto dos filhos dos homens" (Prov 8, 31).

O que não fizeram os filhos e as filhas desta vossa nação para o conhecimento do homem, para exprimir o homem mediante a formulação dos seus direitos inalienáveis! Tem-se conhecimento do posto que a ideia de liberdade, igualdade e fraternidade ocupa na vossa cultura e na vossa história. Na realidade, estão aqui ideais cristãos. Digo com plena consciência que, os primeiros a formularem assim este ideal, não se referiam à aliança do homem com a sabedoria eterna. Mas eles queriam agir em favor do homem.

Para nós, a aliança interior com a sabedoria encontra-se na base de toda a cultura e do verdadeiro progresso do homem.

O desenvolvimento contemporâneo e o progresso, nos quais participamos, são o fruto da aliança com a sabedoria? Não são somente uma ciência sempre mais exacta dos objectos e das coisas, sobre a qual se constrói o progresso vertiginoso da técnica? O homem, artífice deste progresso, não se tem tornado sempre mais objecto deste processo? E eis que nele e em volta dele se destrói sempre mais esta aliança com a sabedoria, a eterna aliança com a sabedoria que é a fonte da cultura, isto é, do verdadeiro crescimento do homem.

6. Cristo veio ao mundo em nome da aliança do homem com a sabedoria eterna. Em nome desta aliança Ele nasceu da Virgem Maria e anunciou o Evangelho. Em nome desta aliança "crucificado... sob Pôncio Pilatos", padeceu na cruz e ressuscitou. Em nome desta aliança, renovada na sua morte e na sua ressurreição, deu-nos o seu Espírito...

A aliança com a sabedoria eterna continua n'Ele. Continua em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Continua no facto de ensinar as nações e de as baptizar no Evangelho e na Eucaristia. Continua na Igreja, isto é, no Corpo de Cristo, o povo de Deus.

Nesta aliança, o homem deve crescer e desenvolver-se como homem.

Deve crescer e desenvolver-se a partir do fundamento divino da sua humanidade, isto é, como imagem e semelhança do próprio Deus. Deve crescer e desenvolver-se como filho adoptivo de Deus.

Como filho adoptivo de Deus, o homem deve crescer e desenvolver-se mediante tudo o que concorre para o desenvolvimento e progresso do mundo onde vive. Através de todas as obras das suas mãos e do seu génio. Através do sucesso da ciência contemporânea e da aplicação da técnica moderna. Por meio de tudo o que diz respeito ao macrocosmo e ao microcosmo, graças a uma aparelhagem sempre mais aperfeiçoada.

Porque será que depois de um certo tempo, o homem descobriu em todo este gigantesco progresso uma fonte de ameaça para si mesmo? De que maneira e por que vias se chegou ao facto que, no coração mesmo da ciência e da técnica, tenha aparecido a possibilidade de uma gigantesca autodestruição do homem; ao facto que a vida quotidiana oferece tantas provas do uso, contra o homem, do que devia ser a favor do homem e devia estar ao serviço do homem?

Como se chegou lá? O homem, no caminho para o progresso, não tomou talvez o único caminho, o mais fácil, e não se esqueceu da aliança com a sabedoria eterna? Não tomou ele talvez o caminho "largo", esquecendo-se do caminho "estreito" (cfr. Mt 7, 13-14)?

7. Cristo disse: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18). Diz isto quando o poder terreno — o Sinédrio, o poder de Pilatos — mostrou a sua supremacia sobre Ele, ao decretar a sua morte de cruz. Repete-o após a sua ressurreição.

"O poder no céu e na terra" não é um poder contra o homem. Nem é sequer um poder do homem sobre o homem. É o poder que permite ao homem revelar-se a si mesmo na sua realeza, em toda a plenitude da sua dignidade. É o poder de que o homem deve descobrir no seu coração a força específica, pelo qual ele deve revelar-se a si mesmo nas dimensões da sua consciência e na perspectiva da vida eterna. Então revelar-se-á nele toda a força do baptismo, saberá que está "imerso" no Pai, no Filho e no Espírito Santo, reconhecer-se-á a si mesmo no Verbo eterno, no Amor infinito.

É a isto que o homem é chamado na aliança com a sabedoria eterna.

Este é também o "poder" que Cristo tem "no céu e na terra".

O homem de hoje aumentou muito o seu poder na terra, pensa até mesmo na sua expansão além do nosso planeta.

Pode-se dizer igualmente que o poder do homem sobre o outro homem se torna sempre mais pesado. Ao abandonar a aliança com a sabedoria eterna, saberá sempre menos governar-se a si mesmo, não sabe mais governar os outros. Como se tornou urgente a questão dos direitos fundamentais do homem! Que visão ameaçadora revelam o totalitarismo e o imperialismo em que o homem deixa de ser o sujeito, o que significa que deixa de ser tido como homem. Ele passa a ser considerado somente como uma unidade e um objecto.

Escutemos mais uma vez o que Cristo diz com estas palavras: "Foi-me dado todo o poder no céu e na terra", e meditemos toda a verdade destas palavras.

8. Cristo, enfim, diz também isto: "Eu estarei sempre convosco, ,até ao fim do mundo" (Mt 28, 20); que significa também: hoje, em 1980, em todas as épocas.

O problema da ausência de Cristo não existe. O problema do seu afastamento da história do homem não , existe. O silêncio de Deus relativamente às inquitudes do coração e do destino do homem não existe.

Não há senão um shó problema que existe sempre e por toda a parte:

o problema da nossa presença junto de Cristo. Da nossa permanência em Cristo. Da nossa intimidade com a verdade autêntica das suas palavras e com a força do seu amor. Não existe senão um problema, aquele da nossa fidelidade à aliança com a sabedoria eterna, que é fonte de verdadeira cultura, isto é, do crescimento do homem, e o da fidelidade às promessas do nosso baptismo no nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo!

E agora, para concluir, permiti-me que vos interrogue:

França, Filha primogénita da Igreja, és tu fiel às promessas do teu baptismo?

Permiti-me perguntar-vos:

França, Filha da Igreja e educadora dos povos, tu és fiel, para o bem do homem, à aliança com a sabedoria eterna?

Perdoai-me estas perguntas. Coloquei-as como faz o ministro no momento do baptismo. Se as fiz, foi por solicitude para com a Igreja da qual sou o primeiro sacerdote e o primeiro servo, e por amor do homem, cuja grandeza definitiva está em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.

 



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