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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS MEMBROS DO TRIBUNAL
DA SAGRADA ROTA ROMANA

Quinta-feira, 28 de Janeiro de 1982

 

Senhor Decano
Caros Prelados e Oficiais

1. Alegro-me de a inauguração do novo ano judiciário do Tribunal da Sagrada Rota Romana me oferecer ocasião de me encontrar mais uma vez convosco, que realizais com tanto empenho e qualificada competência o vosso trabalho ao serviço da Sé Apostólica.

Este encontro tradicional apresenta este ano um aspecto particular porque no dia de hoje, como é sabido, entram em vigor as Novae Normae que — após atento estudo de revisão, já terminado, das precedentes disposições — tive por bem aprovar para o vosso Tribunal e faço votos por que possam tornar mais profícua a obra por vós realizada com preparação jurídica e espírito sacerdotal para o bem da Igreja.

Saúdo-vos com afecto e exprimo-vos o meu vivo apreço por toda a vossa obra. Em particular, dirijo a minha cordial saudação ao Senhor Decano demissionário, Mons. Henrique Ewers, e ao seu sucessor; a ambos asseguro que os recordo diante do Senhor, para que seja Ele a recompensar um pelo demorado trabalho realizado com generosa dedicação e para que assista o outro no encargo que hoje inicia.

2. Apraz-me recordar-vos a Exortação Apostólica Familiaris consortio na qual recolhi o fruto das reflexões desenvolvidas pelos Bispos durante o Sínodo de 1980.

De facto, se este recente documento se dirige a toda a Igreja para expor os encargos da família cristã no mundo de hoje, interessa de perto também a vossa actividade, que é desempenhada sobretudo no âmbito da família, do matrimónio e do amor conjugal. O peso do vosso cargo mede-se pela importância das decisões, que vós sois chamados a tomar com sentido de verdade e de justiça, diante do bem espiritual das almas, em referência ao julgamento supremo de Deus: solum Deum prae oculis habentes.

3. Confiando a cada um de vós esta missão eclesial, Deus pede que prossigais assim, através da vossa obra, a obra de Cristo, prolongueis o ministério apostólico com o exercício da missão a vós confiada e dos poderes a vós transmitidos; porque vós trabalhais, estudais e julgais em nome da Sé Apostólica. O exercício de tais actividades, portanto, deve ser adaptado à função dos juízes, mas abrange também a dos seus colaboradores. Neste momento penso no cargo, tão difícil, dos advogados, que prestarão aos seus clientes serviços melhores na medida em que se esforçarem por ficar dentro da verdade, do amor da Igreja e do amor de Deus. A vossa missão, portanto, é primeiro que tudo serviço do amor.

Deste amor é o matrimónio realidade e sinal misterioso. "Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança: chamando-o à existência por amor, chamou-o ao mesmo tempo ao amor. Deus é amor e vive em si mesmo um mistério de comunhão pessoal de amor" (Familiaris consortio, 11),

Sinal misterioso, o matrimónio é-o como sacramento: um laço indissolúvel une os esposos, como num só amor estão unidos Cristo e a Igreja (Ef 5, 32-33).

Segundo o desígnio de Deus, o matrimónio encontra a plenitude na família, de que é origem e fundamento; e o dom mútuo dos esposos reverte no dom da vida, ou seja na geração daqueles que, amando os seus pais, lhes redizem o seu amor e exprimem a profundidade do mesmo (Familiaris consortio, 14).

O Concílio viu o matrimónio como pacto de amor (Gaudium et spes, 48). Este pacto "supõe a escolha consciente e livre, com que o homem e a mulher acolhem a íntima comunidade de vida e de amor, querida pelo próprio Deus" (Fam. cons., 11). Falando aqui de amor, nós não podemos reduzi-lo a afectividade sensível, a atracção passageira, a sensação erótica, a impulso sexual, a sentimento de afinidade e a simples alegria de viver.

O amor é essencialmente dom. Falando de acto de amor, o Concílio supõe um acto de doação, único e decisivo, irrevocável como o é um dom total, que deseja ser e continuar sendo mútuo e fecundo:

4. Para compreender plenamente o sentido exacto do consentimento matrimonial, havemos de deixar-nos iluminar pela revelação divina. O consentimento nupcial é um acto de vontade que significa e inclui um dom mútuo, que une os esposos entre si e ambos os liga aos seus futuros filhos, com os quais eles constituem uma só família, um só lar e "uma Igreja doméstica" (Lumen gentium, 11).

Visto assim, o consentimento matrimonial é um compromisso num vínculo de amor em que, no mesmo dom, se exprime o acordo das vontades e dos corações para realizarem tudo o que é e significa o matrimónio, para o mundo e para a Igreja.

5. Mas há mais. Para nós, o consentimento nupcial é acto eclesial. Funda a "Igreja doméstica" e constitui uma realidade sacramental em que se unem dois elementos: um elemento espiritual como comunhão de vida na fé, na esperança e na caridade; e um elemento social como sociedade organizada, hierarquizada, e célula viva da sociedade humana, elevada à dignidade do "sacramentum magnum", a Igreja de Cristo, na qual essa sociedade se insere como Igreja doméstica (Lumen gentium, 1). De maneira que, na sociedade fundada no matrimónio, é necessário reconhecer em certa medida a mesma analogia da Igreja total com o mistério do Verbo encarnado, onde numa só realidade se unem o divino e o humano, a Igreja terrestre e a Igreja em posse dos bens celestiais, uma sociedade ordenada hierarquicamente e o Corpo místico de Cristo (Lumen gentium, 8).

6. O Concílio sublinhou o aspecto da doação. E assim convém determo-nos aqui um momento, para recolher mais em profundidade o significado do acto de dar-se em oblação total com um consentimento que, se colocado no tempo, assume um valor de eternidade. Um dom, se quer ser total, deve ser sem arrependimento e sem reservas. Por isso, no acto com que a doação se exprime, devemos aceitar o valor simbólico dos compromissos tomados. Aquele que se dá fá-lo com a consciência de obrigar-se a viver a sua dádiva ao outro; se ele ao outro concede um direito, é porque tem a vontade de dar-se; e dá-se com a intenção de obrigar-se a realizar as exigências do dom total, que livremente fez. Se sob o aspecto jurídico estas obrigações são mais facilmente definidas, se são expressas mais como um direito que se cede do que como uma obrigação que se assume, é também verdade que o dom não é senão simbolizado pelas obrigações de um contrato, que exprime a nível humano as obrigações inerentes a todo o consentimento nupcial verdadeiro e sincero. Assim se chega a compreender a doutrina conciliar, de maneira que lhe consente recuperar a doutrina tradicional para a colocar numa perspectiva mais profunda e ao mesmo tempo mais cristã.

A vossa missão ao serviço do amor consiste em reconhecer o pleno valor do matrimónio

Todos estes valores são não só admitidos, aperfeiçoados e definidos pelo direito eclesiástico, mas também defendidos e protegidos. Isto constitui, por outro lado, a nobreza da sua jurisprudência e a força das normas que ela aplica.

7. Ora, não é puramente imaginário, sobretudo hoje, o perigo de ver posto em discussão o valor global desse consentimento, por alguns elementos — que o formam, dele são o objecto ou exprimem a realização — serem cada vez mais frequentemente distintos ou mesmo separados, segundo a atenção que lhes dispensam especialistas em campos diversos ou a especificidade própria das diversas ciências humanas. Seria inconcebível que o consentimento enquanto tal fosse recusado por ter sobrevindo falta de fidelidade. Sem dúvida o problema da fidelidade constitui muitas vezes a cruz dos esposos.

O vosso primeiro encargo ao serviço do amor será, portanto, reconhecer o pleno valor do matrimónio, respeitar do melhor modo possível a sua existência, proteger aqueles que ele uniu muna só família. Será só por motivações válidas, por factos provados, que se poderá pôr em dúvida a sua existência, e declarar a sua nulidade. O primeiro dever que sobre vós pesa é o respeito do homem que deu a sua palavra, expressou o seu consentimento e fez assim dom total de si mesmo.

8. Indubitavelmente, a natureza humana em seguida ao pecado foi perturbada; ferida sim, ela não ficou todavia pervertida; está curada pela intervenção d'Aquele que veio salvá-la e elevá-la até à participação da vida divina. Ora, na verdade, seria demoli-la julgá-la incapaz de um compromisso verdadeiro, de um consentimento definitivo, de um pacto de amor que exprime o que ela é, de um sacramento instituído pelo Senhor para curá-la, fortificá-la e elevá-la por meio da Sua graça.

E assim, então, é no quadro da perspectiva eclesial do Sacramento do matrimónio que são colocados o progresso da ciência humana, as suas investigações, os seus métodos e os seus resultados. A continuidade dos esforços põe ainda em relevo a fragilidade de algumas das suas conclusões anteriores ou de hipóteses de trabalho de que não se puderam conservar as apreciações.

Por tais motivos o Juiz, ao dar a sentença, fica definitivamente o responsável por aquele trabalho comum, de que falei no principio. A decisão deverá tomar-se na perspectiva global já recordada, que a exortação pastoral Familiaris consortio quis pôr em mais clara luz.

Enquanto está a decorrer o exame sobre a validez de um vínculo matrimonial, e se procura a existência de razões que possam levar à eventual declaração de nulidade, o juiz está ao serviço do amor, submetido ao direito divino e atento a qualquer conselho ou qualquer perícia séria. Seria extremamente danoso se afinal decidisse um ou outro perito, com o risco de ser julgada a causa segundo um só dos seus aspectos.

Daqui brota a necessidade de reconhecer no juiz o peso da sua função, a importância da sua responsável autonomia de juízo, a exigência do seu consentimento eclesial e da sua solicitude pelo bem das almas. E não porque em matéria matrimonial uma sentença pode sempre ser impugnada por novas graves motivações que sobrevenham, não por isso se sentirá ele incitado à aplicar menos diligência em prepará-la, menos firmeza em exprimi-la e menos coragem em emiti-la.

9. A esta luz, há sempre maneira de apreciar cada vez mais a particular responsabilidade de defensor vinculi. O seu dever não é definir a todo o custo uma realidade inexistente, ou opor-se por todos os modos a uma decisão fundada, mas, como se exprimiu Pio XII, ele deverá fazer observações pro vinculo, salva semper veritate (Pio XII, Alloc. ad Auditores Rotae S. R., em AAS, n. 36, 1944, 285). Notam-se por vezes tendências que infelizmente forcejam por afirmar de novo o papel dele. A mesma pessoa, por outro lado, não pode exercitar duas funções contemporaneamente, ser juiz e ser defensor do vínculo. Só uma pessoa competente pode assumir tal responsabilidade; e será grave erro considerar esta de menor importância.

10. O Promotor iustitiae, solícito do bem comum, actuará também ele na perspectiva global do mistério do amor vivido na vida familiar; ao mesmo tempo, se ele sentir o dever de apresentar um pedido de declaração de nulidade, fá-lo-á impelido pela verdade e pela justiça; não para condescender, mas para salvar.

11. Na mesma perspectiva da globalidade da vida familiar, por fim, é necessário fazer votos por uma cada vez mais activa colaboração dos advogados eclesiásticos.

A actividade deles deve estar ao serviço da Igreja; e portanto deve ser vista quase como um ministério eclesial. Deve ser um serviço ao amor, que requer dedicação e caridade sobretudo em favor dos mais desprovidos e dos mais pobres.

12. Em conclusão deste encontro; desejo exortar-vos a colaborar, "cordial e corajosamente, com todos os homens de boa vontade, que vivem com a sua responsabilidade ao serviço da família" (Familiaris consortio, 86), de modo especialíssimo vós, que deveis reconhecer a base e o fundamento dela no consentimento nupcial, sacramento de amor, sinal do amor que liga Cristo à Sua Igreja, Sua Esposa, e que é, para a humanidade inteira, uma revelação da vida de Deus e a introdução na vida trinitária do Amor divino.

Ao invocar o Senhor para vos acompanhar na vossa missão ao serviço do homem salvo por Cristo, nosso Redentor, concedo-vos do coração a minha bênção propiciadora da graça do Deus do Amor.

 

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