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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AO CORPO DIPLOMÁTICO
ACREDITADO JUNTO DA SANTA SÉ

Sala Régia
Sábado, 15 de Janeiro de 1983

 

Excelências
Senhoras e Senhores

1. É sempre uma grande alegria receber-vos em conjunto, nesta casa, no início de um novo ano. Revejo assim cada um dos Embaixadores com os quais mantive uma conversação ao mesmo tempo pessoal e oficial no momento da entrega das suas Cartas Credenciais. Tomo contacto com os outros membros das Embaixadas. E, para além das vossas pessoas, tenho como que a impressão de falar com os povos e as nações, com os Chefes dos Estados e dos Governos que vós representais; quer dizer, com 105 países, muito diversos pela importância demográfica, a cultura, o poder económico, mas todos acolhidos aqui com o mesmo respeito e a mesma benevolência. Sim, é sempre um momento comovedor do meu Pontificado; e saúdo de modo especial os novos membros do Corpo Diplomático acreditados junto da Santa Sé durante o ano passado. Para diversos países, as suas missões foram elevadas à categoria de Embaixada, as da Grã-Bretanha, do Principado de Mónaco, da Soberana Ordem Militar de Malta; outros decidiram estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé: a Dinamarca, a Noruega e a Suécia.

Com a sua habitual gentileza, e interpretando os vossos sentimentos, o vosso caro Decano aprouve-se enumerar algumas iniciativas do meu Pontificado que tiveram um impacto espiritual ou pacífico. Agradeço-lhe vivamente as suas generosas palavras. Oxalá os seus votos se realizem, com a graça de Deus, a fim de que a Sé Apostólica seja, no seu nível, um instrumento cada vez mais adequado e eficaz do diálogo entre os homens, para melhor os servir!

Este encontro colectivo adquire um relevo ainda mais notável enquanto nos permite, ao retribuirmos os nossos bons votos, evocar os problemas vitais para as relações internacionais.

2. Precisamente o diálogo para a paz foi o tema escolhido para o recente Dia Mundial, e vós compreendereis que volto a ele aqui, não tanto para demonstrar a sua necessidade, a possibilidade, o valor ou as dificuldades, como fiz na minha Mensagem, quanto para recordar a sua aplicação às situações concretas.

Nesta Mensagem, dirigia-vos um apelo particular, a vós, diplomatas "cuja nobre profissão comporta, entre outras coisas — dizia eu —, tratar os assuntos litigiosos e procurar resolvê-los mediante o diálogo e as negociações, a fim de evitar que se faça recurso às armas, ou então substituir, mediante isso, os beligerantes" (n. 11). E prestava homenagem a este trabalho de paciência e de perseverança. Esta insistência não é nova para a Santa Sé. Já o meu venerado predecessor Paulo VI dizia ao Corpo Diplomático em 1965: "Quanto mais o direito é esquecido, menosprezado..., tanto mais se vê... que é a razão, o sentido humano, a negociação serena e isenta de paixão — e portanto afinal, caros Senhores, a diplomacia — que devem regular as relações humanas, as únicas que podem construir o edifício da paz"(AAS 57, 1965, pp. 231-232). Sim, se o diálogo para a paz é a ocupação de todos para abater as barreiras do egoísmo, da incompreensão e da agressividade (cf. Mensagem 1983, n. 11), junto dos Chefes de Estado e do Governo, os diplomatas são precisamente os primeiros interessados. São, devem ser os mestres na arte de tal diálogo, que supõe e exige (ibid.,n. 6) a abertura aos verdadeiros problemas do próximo, a consideração do que faz a diferença e a especificidade do próximo que não se pode reduzir a um objecto, a aceitação do facto que cada um é parte responsável e portanto traz elementos para a solução, a adesão exclusivamente aos meios pacíficos, e sobretudo, para além dos pontos de vista às vezes difíceis de conciliar, a busca do que é finalmente comum às duas partes, vital para a sua existência e requerido pelo interesse geral, porque se trata do que é verdadeiro, bom e justo. Sem esta finalidade positiva, não há verdadeiro diálogo. É para lastimar hoje uma recrudescência da desconfiança mútua, que utiliza mesmo certas propostas de diálogos como meios de propaganda.

Acentuo um ponto importante: o diálogo requer reciprocidade. Insisti nisto na homilia do dia 1 de Janeiro a propósito da progressiva redução dos armamentos nucleares ou convencionais: as partes em causa devem empenhar-se em medida igual e percorrer juntas as diferentes etapas do desarmamento, esforçando-se por chegar, sem demora, à redução máxima. Faço votos por que este objectivo final nunca seja perdido de vista em todas as negociações sobre o desarmamento em Genebra ou noutras partes. Este esforço recíproco vale para os outros tipos de negociação: a paz não pode ser construída por uns sem os outros, de modo unilateral. Quando estarão, pois, os homens convencidos de que em definitivo o bem de um povo não pode realizar-se contra o bem de outro povo, que um povo não poderia destruir o outro, e que em todas as hipóteses há os direitos das pessoas e das comunidades a respeitar, considerações ruinosas — e perigosas para todos — a evitar, a afastar?

Não, o diálogo para a paz não é fácil; é exigente; está semeado de armadilhas; e alguns, contrários a ter de reconhecer ou conceder alguma coisa de razoável, preferem recusá-lo, ou apresentar condições que o tornam impossível, ou o retardam indefinidamente. Não há dúvida, que ele pressupõe a lucidez para descobrir as eventuais armadilhas, requer firmeza e perseverança. Mas as dificuldades não impedem que seja sempre benéfico procurar retomar o diálogo sobre bases seguras e ajudar a outra parte a retomá-lo sem humilhação; mais ainda, é necessário. De outro modo, a que pode levar a recusa do diálogo? Não estaria isto no "statu quo" da injustiça ou da opressão, na guerra fria ou mesmo na guerra?

É neste sentido que a Santa Sé aprecia o empenho dos diplomatas e lhes presta homenagem. E por vosso lado, ouso esperar que encontrareis uma fonte de inspiração e de encorajamento no modo como a Santa Sé, para além das suas exortações, se empenha ela própria tanto nas relações diplomáticas bilaterais como na participação nas conferências e instituições internacionais: o facto do diálogo, fundado na verdade e no respeito do próximo, o método e o instrumento privilegiado da sua acção e das suas relações, esforçando-se por indicá-lo aos outros e fazê-lo adoptar como o meio mais apto para resolver as dificuldades e as contendas. O facto que tantos Países se tenham interessado por estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé testemunha esta confiança recíproca.

3. Que é destes princípios quando se olham de frente os diversos focos de guerra, de estados de guerra, de guerrilha, ou as graves tensões existentes hoje no mundo?

No que se refere por exemplo ao Líbano é evidente que a Santa Sé, levando embora o seu conforto a cada episódio do drama que todos conhecem, não deixou de encorajar a retomada da negociação e a busca de uma regulamentação global para toda a região do Próximo Oriente, "convencida, antes de tudo, que não poderá haver verdadeira paz sem justiça; e que não haverá justiça se não forem reconhecidos e acolhidos, de modo estável, adequado e équo, os direitos de todos os povos interessados" (cf. o meu discurso de 15 de Setembro, L'Oss. Rom.17.9.82). Fazemos votos por que esta causa progrida nas negociações que tiveram início. As partes devem deixar de viver no temor e também de recorrer à violência, ao terrorismo ou às represálias; devem procurar lealmente, aceitar e aplicar as condições de existência e de segurança para todos, na paz, na dignidade, na liberdade, na tolerância e na reconciliação.

Se o caso do Próximo Oriente é típico pela amplidão dos desastres, pela aspereza dos problemas a resolver e a multiplicidade dos acordos em jogo, não se deveriam esquecer todos os outros lugares de combate, de tensões, de sofrimentos.

A missão da Santa Sé é sempre a de contribuir para fazer que haja melhor compreensão e que se renuncie ao pior, de manter a esperança de uma solução, de indicar as condições éticas de uma verdadeira paz. Esforça-se por o fazer mesmo quando os seus apelos são dificilmente entendidos no centro dos conflitos.

Basta recordar a guerra que se prolonga entre o Irão e o Iraque, com a sua série de destruições, de mortes, de ódios atiçados: a Santa Sé está contristada com este drama humano; encoraja os países vizinhos e a comunidade internacional a facilitar o verdadeiro diálogo, suplicando-lhes que não se resignem a esta empresa ruinosa, e sobretudo não aproveitem as rivalidades locais para favorecer os interesses hegemónicos de pouco alcance deste ou daquele pais ou para se entregarem ao comércio das armas.

Como fechar os olhos diante da trágica situação que vive o povo afegã, legitimamente orgulhoso da sua independência, e que se encontra arrastado numa aventura que se paga com tantas vitimas, tantas misérias, e um grande êxodo de refugiados? É então impossível chegar a atitudes que inspirariam a confiança necessária para a tranquilidade?

Penso ainda nos países da América Central: como deixar de fazer votos por que um verdadeiro diálogo interior permita resolver os sérios problemas de misérias sociais e as tensões internas, evitando assim que os interessados sejam vitimas de opções materialistas e lhes sofram as interferências do exterior que procuram radicalizar as oposições?

Poder-se-iam recordar muitos outros lugares onde a tensão permanece viva e perigosa, degenerando facilmente em actos de violência como na Irlanda do Norte; e mesmo situações aparentemente calmas, mas que escondem uma falsa paz, sem progresso, porque os legítimos direitos ficam lesados, sem possibilidade de um verdadeiro diálogo entre as partes sociais e politicas.

A Santa Sé não quer acreditar na fatalidade do estado de guerra nem da guerrilha para suscitar a justiça. A justiça e a paz estão em definitivo no caminho de um verdadeiro diálogo, de um diálogo livre e sem falsidade, quando se tem a coragem de o empreender, quando se tem honra em lhe aceitar o risco e quando os outros países o respeitam. Destes princípios, que deveriam ser evidentes para todos, a Santa Sé far-se-á, convosco, se vós o desejardes, arauto.

4. Passo agora a um aspecto que caracteriza a diplomacia e a acção internacional da Santa Sé: a solicitude humanitária, evitar o que ofende gravemente a vida, a dignidade das pessoas e das comunidades, qualquer que seja o seu campo ou a sua situação minoritária. Para dizer a verdade esta preocupação deve existir e inspirar todos os diplomatas dos diferentes países.

Sei que o objectivo das negociações é muito mais vasto, como eu disse na minha Mensagem da Paz (n. 10). A Santa Sé não ignora a importância das questões territoriais, nem das questões comerciais e económicas, como, por exemplo, as que serão tratadas este ano em Belgrado, na reunião da CNUCED, e de bom grado dá a sua contribuição para as resolver, nos limites da sua competência e dos seus meios.

Mas a Igreja sente de modo particular o dever de se tornar, tanto quanto lhe é possível, o bom samaritano daqueles que são deixados de parte ao longo do caminho da história. E quando digo "a Igreja", não penso apenas na diplomacia, mas nos diversos organismos da Santa Sé, como o Pontifício Conselho Cor Unum, nas múltiplas instituições eclesiais, e em todos aqueles que operam no terreno dos conflitos e das tensões segundo a sua consciência cristã. Sim, a Igreja queria sobretudo tornar-se a voz dos sem-voz, dos pobres, das vítimas de toda a espécie, chamar a atenção para os direitos humanos fundamentais esquecidos ou escarnecidos, para os problemas das minorias, para as ameaças que pesam em certos momentos sobre as populações. Esta caridade deve estar aberta em todas as direcções, a todas as formas de ameaças, aos cidadãos de todos os povos. A Santa Sé, que, em nome da Igreja, tem a possibilidade de entrar em relações com os responsáveis dos países, espera que a sua intervenção seja pelo menos acolhida; que constitua uma oportunidade de conforto para as vítimas. Ela não exige nada; não pede nada para si mesma: empresta a sua voz e propõe um gesto humanitário. Não tem intenção de humilhar, de condenar, não quer senão salvar. Um Estado que fosse tentado a tornar-se inflexível hoje perante uma intervenção, delicada e discreta, da Santa Sé, talvez seja feliz amanhã de beneficiar dela para um dos seus súbditos no estrangeiro. A vocação universal da Igreja deveria ser aos olhos de todos uma garantia do seu desinteresse e da sua imparcialidade. É o homem, enquanto homem, que lhe interessa, tanto mais que ela vê nele a imagem do Criador, o irmão de Cristo.

5. Para tomar agora alguns exemplos típicos, Senhoras e Senhores, compreendeis assim porque, na sua solicitude humanitária, a Santa Sé chega a recomendar a clemência, depois a graça, para os condenados à morte, sobretudo quando estes são condenados por motivos políticos, que por outro lado podem ser instáveis, ligados à personalidade dos responsáveis do momento.

Do mesmo modo a Igreja tem a peito a sorte de todos aqueles que são submetidos à tortura, qualquer que seja o regime político, porque aos seus olhos nada pode justificar este aviltamento que não raro é acompanhado, infelizmente, de sevícias bárbaras, repugnantes.

Do mesmo modo ainda, não pode dispor-se a calar a acção criminosa que consiste em fazer desaparecer um certo número de pessoas, sem processo, e deixando além disso as suas famílias em cruel incerteza.

A Sé Apostólica pensa ajudar os povos a encontrarem o caminho da honestidade pedindo-lhes que vigiem porque estes métodos sejam eliminados, como de resto todas as outras formas de capturas e detensões arbitrárias, de campos de concentração e de opressões diversas. Hoje desejo, por outro lado, reconhecer os esforços que trouxeram um certo progresso neste campo, e encorajo-os.

Certamente, não desconhecemos que noutros países são postos em prática internamentos sem garantia de justiça, e até que numerosas execuções sumárias continuam a verificar-se, sob o pretexto de oposição política. A Santa Sé lamenta, pela sua parte, não poder convencer os responsáveis de tal injustiça. Mas devem fazer-se votos por que as instâncias internacionais, políticas ou humanitárias, continuem a intervir em favor das vítimas, nos pontos em que o direito internacional e as declarações das Nações Unidas quiseram tão claramente proteger os homens contra tais rigores.

Por fim, mesmo no quadro dos conflitos abertos, existem métodos que atingem um grau particularmente desumano, por exemplo quando populações inteiras são vítimas de armas químicas e biológicas, que a consciência internacional reprova e também, já desde há muito tempo, o direito internacional (cf. Protocolo de Genebra de 1925).

6. A solicitude humanitária da Santa Sé dirige-se também para as deslocações de populações, hoje cada vez mais frequentes e intensas. Exis tem, sem dúvida, fenómenos de migração que se realizam num contexto de diálogo, respeitando a dignidade das pessoas deslocadas, por exemplo quando são acolhidos trabalhadores imigrados, com a própria família, e que são honestamente remunerados e inseridos em sistemas de segurança social, ou ainda quando são feitos contratos com as empresas estrangeiras para lhes pôr à disposição mão-de-obra que se mantém livre e tem bom tratamento. Mas há homens que chegam ou são enviados para o estrangeiro com intenções e condições que prejudicam o país de acolhimento. E existem sobretudo massas de trabalhadores que foram obrigados a expatriar para o estrangeiro para um trabalho que tem afinidade com o trabalho forçado, em péssimas condições de clima, de salário e de alojamento. É necessário ainda mencionar os que são constrangidos ao exílio devido às suas opiniões políticas ou religiosas, e aqueles a quem é recusada a possibilidade de regressar à sua pátria e à sua família. Sobre este ponto, seriam possíveis esforços sem pôr em perigo a segurança das nações, e alguns países distinguiram-se recentemente progredindo neste sentido humanitário.

Mas penso sobretudo aqui nas multidões cada vez mais numerosas de refugiados: nos do Sudeste asiático, de que já falei diversas vezes e cuja sorte continua precária, nos do Afeganistão, nos do Médio Oriente, nos que se encontram na Europa, nos da América central, nos de um certo número de países da África que se encontram em grande dificuldade. Não se calcula em dez milhões, o número dos refugiados no mundo? As causas são variadas: algumas vezes situações de fronteiras herdadas do passado colonial, as catástrofes naturais, a fome, e também a violação dos direitos mais elementares, cometida, por poderes despóticos, as perseguições raciais, religiosas e políticas, a insegurança devida aos conflitos e à guerrilha. As pessoas que são obrigadas a emigrar pertencem com frequência aos grupos sociais mais humildes, com uma grande percentagem de órfãos, de viúvas é de anciãos. Estas populações desenraizadas nutrem desesperadamente o desejo de regressar à sua terra, à sua cultura, à sua sociedade; e muitas vezes sobrevivera mal, porque a maior parte são hóspedes dos países mais pobres, em diversas regiões da África, na Tailândia, no Paquistão. Parece pois necessário que a comunidade internacional ajude estes países, com um fim puramente humanitário e pacífico, e que se tente por outro lado, graças a uma politica de justiça e de paz, fazer desaparecer as causas de uma realidade tão lamentável, mas que não é inelutável. Oxalá a nossa geração aceite o desafio!

7. Fiz alusão à fome, quereria mais explicitamente chamar a atenção para esta miséria. Um certo número de Países — na Ásia, na América Central, e na África, sobretudo nas zonas subsarianas — sofrem de uma carência alimentar de consequências humanas catastróficas. Desde há anos, a produção de alimentos por habitante está em diminuição, enquanto a população não deixa de aumentar e quando, por outro lado, haveria no mundo todo recursos para lhe fazer face. Sem dúvida, os elementos naturais contribuem em parte — a seca prolongada, por exemplo, aumenta as dificuldades da luta pela fome —, mas não justificam a resignação e o fatalismo. Políticas agrícolas melhor adequadas às necessidades alimentares da população devem ser aplicadas. A cooperação económica e comercial entre países ricos e países pobres deve encontrar formas mais vantajosas para os agricultores em dificuldade. Os organismos internacionais governamentais e não governamentais devem redobrar de coragem e de espírito inventivo para inverter a tendência à fome, que impera aqui e ali. Numa palavra, a acção é urgente, porque hoje populações inteiras são dizimadas pela fome, e se os esforços não se intensificarem, a catástrofe tomará dimensões sem precedentes e testemunhará uma lamentável falta de solidariedade da parte dos povos da abundância alimentar.

8. Sei bem que estas coisas são conhecidas pelos Governos e pelas Instituições internacionais, que são empreendidas valiosas iniciativas. Mas, no seu desejo de emprestar a sua voz aos pobres, a Santa Sé quer recordar a urgência destas necessidades aos diplomatas e à opinião pública. De facto, se alguns países interessam sempre as grandes potências por razões estratégicas ou económicas, até ao ponto de atrair sobre eles a cobiça e a guerra, existem outros que arriscam ser esquecidos! Algumas vezes é porque têm poucas riquezas materiais a permutar, enquanto as suas populações são tão merecedoras e necessitadas. Algumas vezes parecem mesmo destinados à asfixia e à perda da independência, sobretudo os pequenos países, porque não podem satisfazer os seus compromissos. Noutros casos, foram sufocadas as liberdades do povo, a sua faculdade de se autodeterminar esforçando-se por suprimir a identidade nacional e por absorver o pais num conjunto estrangeiro. Por fim, no interior mesmo das nações, minorias éticas e religiosas conhecem por vezes uma sorte um tanto análoga: não são respeitadas na sua identidade, ainda que não se recusem a colaborar lealmente para o bem comum. A Igreja sente-se preocupada com a sorte de todos aqueles que não são suficientemente tidos em conta.

9. Na sua solicitude humanitária, a Santa Sé não pode deixar de se interessar pelas chagas que os vossos países continuam a temer e a combater: o terrorismo, os raptos, as capturas de reféns, e, noutro campo, o comércio de droga, tão prejudicial à juventude, etc. Ali ainda, a Igreja, que bem compreende a ameaça de tais métodos para a paz, procura sobretudo defender as vítimas inocentes. Alguns destes métodos são realizados com um fim sórdido de comércio e de ganhos fraudulentos; outros tomam o pretexto de uma luta politica. Mas a Igreja reafirma que nada os poderia justificar. Hoje, é bem sabido, têm a tendência de se apoiar em redes internacionais. A reprovação unânime deve continuar a desencorajar todos estes factos de terrorismo; ela não será eficaz se não for acompanhada de uma real colaboração internacional. Nenhum país deveria recusar a própria participação quando problemas tão graves, que ultrapassam as fronteiras, estão em jogo. Mediante isto, são possíveis progressos, que me é grato salientar: não se viu diminuírem sensivelmente os casos de desvios de aviões, desde que a solidariedade internacional manifestou a sua firmeza?

10. Finalmente, entre os graves atentados à dignidade do homem, não posso deixar de mencionar mais uma vez os atentados feitos às suas íntimas convicções, de modo especial às convicções religiosas, à livre expressão da sua fé, ao seu nutrimento na comunidade religiosa a que pertence. A 16 de Novembro passado, o Representante da Santa Sé na Conferência sobre a segurança e a cooperação na Europa, em Madrid, exprimiu a este respeito questões e votos que tardam a ser levados em conta (cf. L'Osservatore Romano, 17 de Novembro de 1982). A Santa Sé — e compreender-se-á facilmente o motivo — não deixará de chamar a atenção do mundo para as violações da liberdade religiosa, que assumem formas variadas, brutais ou subtis, sempre perigosas e injustas, em tantos países.

11. Por fim, Excelências, Senhoras e Senhores, quereria, ao terminar, chamar a vossa atenção para um processo estimado pela Santa Sé, na sua solicitude humanitária e na sua contribuição para a causa da paz. Para servir o bem, a causa dos pobres e dos oprimidos, a Sé Apostólica considera de facto que deve agir em completa independência. Está pois disposta a escutar todas as expressões humanas, religiosas e políticas, a abrir a sua porta a todos aqueles que, de facto, tenham no assunto alguma responsabilidade, alguma influência. Isto não significa evidentemente que a Santa Sé reconhece a estas pessoas uma legitimidade ou uma representação política, nem que aprova as ideologias que elas professam. A missão de um sacerdote, de um bispo, o dever de um Papa é acolher as pessoas, se isto puder ser útil para um progresso na justiça e na paz; e precisamente para as encorajar, com toda a lucidez, neste caminho, para as exortar, sem algum compromisso possível, a renunciar aos meios de violência e de terrorismo em amparo da causa dos pobres que eles pretendem defender e que continua a ser realmente importante. A Santa Sé não tem exclusivo algum, e está pronta a fazê-lo com todos, se o considerar salutar e prudente.

12. Em definitivo, a Igreja quer-se lúcida, mas quer-se acolhedora, como Cristo. Sabe que a força do mal é grande; que a inflexibilidade pode durar; não tem ilusões. Mas não pode desesperar de ver uma mudança das pessoas, mesmo quando estas continuam a pecar, isto é a persegui-la. Ela relança o apelo ao diálogo. Esforça-se por despertar o sentido de verdade, de justiça, de fraternidade, pelo menos de prudência, que pode dormitar na consciência humana, nunca totalmente pervertida, apesar de certas ideologias contrárias. Tem em vista o bem das pessoas que sofrem, em grande número, em consequência destas situações de angústia. Quer suplicar ao mundo que lhes dê remédio. Na sua opinião, os maiores obstáculos postos por certos responsáveis deveriam acabar por cair, porque as gerações renovam-se. Mas ela não se baseia, para tanto, nas provas actuais. Em poucas palavras, a sua atitude é feita de confiança no progresso das pessoas e no futuro. Quem lho pode reprovar?

Ouso acrescentar que, da parte da Igreja, não é uma atitude de comodidade. Não é uma linguagem demagógica. Ela tem bem consciência das suas insuficiências; os seus membros estão longe "de estar isentos de fraqueza, de indignidade, hoje como no passado; e de qualquer modo, os seus meios não lhe permitem seguir todos os casos humanitários. A Santa Sé conhece os seus limites, e felicita-se pelo contributo convergente de tantas pessoas e instituições neste campo. O seu papel é então reconhecer os seus dignos esforços e encorajá-los, quer eles sejam católicos ou não confessionais. Assim, o ano passado, senti-me feliz em ir encorajar em Genebra a Organização internacional do Trabalho para a justiça social, e a Cruz Vermelha internacional para a ajuda humanitária. Mas, posso dizer que a Igreja sabe também pagar o preço do seu compromisso. Os seus membros estão expostos, não raro na primeira fila. Quantos sacerdotes, religiosos e leigos missionários, bispos, pagaram a sua caridade com a própria liberdade, com a própria saúde ou mesmo com a própria vida? E as suas instituições continuam a tratar as chagas dos que estão feridos, aqui e ali. É muitas vezes com as mãos nuas que ela defende os direitos objectivos e inalienáveis do homem.

Em vós, Excelências, Senhoras e Senhores, ela sabe encontrar aliados, não dela mesma, mas da causa do homem.

13. Acabámos de terminar, na liturgia católica, o tempo de Natal e da Epifania, que dá todo o seu sentido aos nossos votos de novo ano. Este mistério manifestou o Filho de Deus presente na humanidade de Jesus, solidário com o nosso caminho humano para que sejamos participantes do seu amor e da sua Vida.

Com estes sentimentos de fé, peço ao Senhor vos cumule com as suas bênçãos; abençoe as vossas pessoas e as vossas famílias; abençoe cada um dos vossos países. Não formulamos todos nós ardentes votos pela felicidade, a paz, a liberdade, o progresso social e espiritual da nossa própria pátria, como faço eu mesmo pelo meu país natal? Oxalá todos respondamos, cada um no nosso lugar, à nossa sublime vocação de guardiães da paz que Deus confiou aos homens!

 

 

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