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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
NA SOLENE INAUGURAÇÃO
DO ANO JUDICIÁRIO DO TRIBUNAL
DA ROTA ROMANA

Sábado, 20 de Janeiro de 2005

 

1. Queridos Prelados Auditores do Tribunal Apostólico da Rota Romana, este encontro anual convosco põe em evidência o vínculo essencial do vosso precioso trabalho com o aspecto judicial do ministério petrino. As palavras do Decano do vosso Colégio expressaram o compromisso comum da plena fidelidade no vosso serviço eclesial.

É neste horizonte que, hoje, gostaria de inserir algumas considerações acerca da dimensão moral da actividade dos agentes jurídicos nos Tribunais eclesiásticos, sobretudo no que diz respeito ao dever de se adaptar à verdade sobre o matrimónio, da forma como ela é ensinada pela Igreja.

2. Desde sempre se levantou a questão ética com especial intensidade em qualquer género de processo judiciário. Com efeito, os interesses individuais e colectivos podem induzir as partes a recorrer a vários tipos de falsidade e até mesmo de corrupção, com a finalidade de alcançar uma sentença favorável.

Deste risco não estão imunes nem sequer os processos canónicos, em que se procura conhecer a verdade sobre a existência ou não de um matrimónio. A relevância indubitável que isto reveste para a consciência moral das partes torna menos provável a aquiescência a interesses alheios à busca da verdade. Não obstante, podem verificar-se casos em que se manifeste uma semelhante aquiescência, que compromete a regularidade do percurso processual. A reacção firme da norma canónica a tais comportamentos é bem conhecida (cf. Códico de Direito Canónico, cânn. 1389, 1391, 1457 e 1488-1489).

3. Todavia, nas actuais circunstâncias existe também outro risco incumbente. Em nome de presumíveis exigências pastorais, levantaram-se algumas vozes com a proposta de declarar nulas as uniões totalmente malogradas. Para obter este resultado, sugere-se que se recorra ao expediente de manter as aparências processuais e substanciais, dissimulando a inexistência de um verdadeiro juízo processual. Assim, há a tentação de prover a uma elaboração dos pontos de nulidade e a uma sua prova em contraste com os princípios mais elementares da normativa e do magistério da Igreja.

É evidente a gravidade jurídica e moral objectiva de tais comportamentos, que certamente não constituem a solução pastoralmente válida dos problemas levantados pelas crises matrimoniais. Graças a Deus, não faltam fiéis cuja consciência não se deixa enganar, e entre eles encontram-se também não poucos que, embora estejam envolvidos pessoalmente numa crise conjugal, não estão dispostos a resolvê-la, a não ser no seguimento do caminho da verdade.

4. Nos dicursos anuais à Rota Romana, recordei numerosas vezes o relacionamento essencial que o processo tem com a busca da verdade objectiva. Isto deve ser assumido em primeiro lugar pelos Bispos que, por direito divino, são os juízes das suas comunidades. É em nome deles que os Tribunais administram a justiça. Por conseguinte, eles são chamados a comprometer-se pessoalmente em vista de cuidar da idoneidade dos membros dos Tribunais diocesanos e interdiocesanos, dos quais eles são os Moderadores, e de verificar a conformidade das sentenças com a recta doutrina.

Os sagrados Pastores não podem pensar que os actos dos seus Tribunais são uma questão meramente "técnica", da qual eles podem desinteressar-se, confiando-a inteiramente aos seus juízes vigários (cf. Códico de Direito Canónico, cânn. 391, 1419 e 1423 1).

5. A deontologia do juiz encontra o seu critério inspirador no amor pela verdade. Portanto, ele deve estar sobretudo convencido de que a verdade existe. Por isso, é necessário procurá-la com o autêntico desejo de a conhecer, apesar de todos os inconvenientes que possam derivar de tal conhecimento. É preciso resistir ao medo da verdade, que por vezes pode nascer do temor de ferir as pessoas. A verdade, que é o próprio Cristo (cf. Jo 8, 32 e 36), liberta-nos de todas as formas de compromisso com as mentiras interessadas.

O juiz que verdadeiramente age como tal, ou seja, com justiça, não se deixa condicionar por sentimentos de falsa compaixão pelas pessoas, nem por falsos modelos de pensamento, mesmo que sejam difundidos no ambiente. Ele sabe que as sentenças injustas nunca constituem uma verdadeira solução pastoral e que o juízo de Deus acerca do próprio agir é o que conta para a eternidade.

6. Além disso, o juiz deve respeitar as leis canónicas, rectamente interpretadas. Por isso, ele jamais pode perder de vista a conexão intrínseca das normas jurídicas com a doutrina da Igreja. Com efeito, quantas vezes o homem pretende separar as leis da Igreja dos ensinamentos magisteriais, como se eles pertencessem a dois sectores distintos, dos quais o primeiro seria o único a ter uma força juridicamente vinculante, enquanto o segundo teria um valor meramente orientativo ou exortativo.

Um delineamente semelhante revela, em última análise, uma mentalidade positivista, que se encontra em contraste com a melhor tradição jurídica clássica e cristã sobre o direito. Na realidade, a interpretação autêntica da palavra de Deus, realizada pelo magistério da Igreja (cf. Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina Dei Verbum, 10 § 2), tem valor jurídico na medida em que diz respeito ao âmbito do direito, sem ter necessidade de uma outra passagem formal para se tornar jurídica e moralmente vinculante.

Além disso, para uma hermenêutica jurídica sadia é indispensável compreender o conjunto dos ensinamentos da Igreja, inserindo organicamente todas as afirmações na esteira da tradição. Desta maneira, poder-se-á evitar tanto as interpretações selectivas e deformadas, como as críticas estéreis a cada instante.

Por fim, um momento importante da busca da verdade é o da instrução da causa. Ela está ameaçada na sua própria razão de ser e degenera em puro formalismo, quando o êxito do processo se dá por certo. É verdade que também o dever de uma justiça tempestiva faz parte do serviço concreto da verdade e constitui um direito das pessoas. Todavia, uma pressa falsa que prejudique a verdade é ainda mais gravemente injusta.

7. Gostaria de concluir este encontro com um agradecimento do íntimo do coração a vós, Prelados Auditores, aos Oficiais, aos Advogados e a todos aqueles que trabalham neste Tribunal Apostólico, assim como aos membros do Estudo da Rota.

Vós sabeis que podeis contar com a oração do Papa e de numerosíssimas pessoas de boa vontade que reconhecem o valor do vosso trabalho ao serviço da verdade. O Senhor recompensará os vossos esforços quotidianos não só na vida futura, mas já a partir desta, com a paz e a alegria da consciência e com a estima e o apoio daqueles que amam a justiça.

Enquanto manifesto os bons votos para que a verdade da justiça resplandeça cada vez mais na Igreja e na vossa vida, concedo-vos a todos, do íntimo do coração, a minha Bênção.

 

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