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PAPA PAULO VI

AUDIÊNCIA GERAL

Quarta-feira, 12 de Agosto de 1970

 

Actualização da vida religiosa

Que havemos de dizer da religião? A religião deve ser renovada. Esta é a convicção de todos os que, ainda hoje, se ocupam da religião, quer estejam fora da sua expressão concreta: uma fé, uma observância e uma comunidade; quer professem uma religião ou, pelo menos, tomem parte numa discussão religiosa. Tudo está em ver o que se compreende por «renovação ».

É preciso renovar a própria consciência religiosa. Trata-se mais de uma questão do que de uma objecção. Mas é uma questão polimorfa, polivalente, uma questão que se apresenta sob aspectos muitos diversos, com princípios, métodos de estudo, conclusões diferentes e, muitas vezes, discordantes. A renovação religiosa pode ser concebida, ou como um contínuo processo de aperfeiçoamento, ou como um processo rápido de dissolução, ou, também, como uma tentativa de interpretação nova, segundo determinados critérios.

O tema é actual. Todos recebemos a prestigiosa palavra aggiornamento como um programa, o programa do Concílio e do pós-Concílio, um programa pessoal e comunitário. Isto é sinal evidente de que, exactamente no próprio coração da ortodoxia, devem agir, como um fermento vital (cfr. Mt 13, 33), o impulso da vida nova, o sopro animador da consciência, a tensão moral e a expressão de actualidade, sempre original como o amor.

A religião é vida e, como a nossa vida biológica, deve estar, subjectivamente, em contínua renovação, em contínua purificação, em contínuo crescimento. É o que nos recorda toda a disciplina do espírito. São Paulo não deixa de repetir que o homem «...interior renova-se diàriamente» (2 Cor 4, 16); aprendestes com Cristo «a despojar-vos do homem velho, no que diz respeito ao vosso passado, do homem corrompido pelas paixões enganadoras; a renovar espiritualmente a vossa inteligência e a revestir-vos do homem novo...» (Ef 4, 22-24); «mas, praticando a verdade, cresceremos em todas as coisas pela caridade n'Aquele que é a Cabeça, o Cristo» (Ibid 4, 15), sempre « ... crescendo no conhecimento de Deus » (Col 1, 10).

Renovação interior

Esta incessante exortação indica muitas realidades que nos oferecem a visão genuína do facto religioso. Indica que este facto nasce lentamente e que se deve desenvolver (recordais as parábolas da semente? [cfr. Lc 8, 5-15]). Indica que este facto está sujeito à decadência e à corrupção (recordais a polémica de Cristo com os fariseus? [cfr. Mt 23, 14 ss.]). Indica que, muitas vezes, tem necessidade de reforma, mas que tem sempre necessidade de aperfeiçoamento e que só na vida futura alcançará a sua plenitude.

Tudo isto é conhecido pelos discípulos da Palavra divina, da escola da liturgia e da vida eclesial. Por isso, de muito bom grado admitimos o aggiornamento, procuramos interpretar o seu significado e aceitamos as suas consequências renovadoras, primeiramente no interior das almas (cfr. Ef 4, 23) e depois, se for necessário, nas leis exteriores.

Esta renovação, porém, não está livre de riscos. Pelo contrário, comporta perigos. O primeiro perigo é o da mudança, quando é desejada por si mesma, ou para acompanhar o transformismo do mundo moderno. E o perigo da mudança que está em contraste com a tradição irrenunciável da Igreja. A Igreja é a continuidade de Cristo no tempo. Não podemos separar-nos dela, do mesmo modo que um ramo, para produzir novas flores na primavera, não pode separar-se da planta, da raiz de onde tira a sua vitalidade.

Este é um dos pontos capitais da história contemporânea do cristianismo. É um ponto decisivo: ou a adesão fiel e fecunda à tradição autêntica e autorizada da Igreja, ou a mortal separação dela. O contacto normal com Cristo não se pode verificar em quem se quer aproximar d'Ele pelos caminhos que determinou, com a criação de uma lacuna doutrinal e histórica, entre a Igreja presente e o anúncio primitivo do Evangelho. « O vento sopra de onde quer...» (Jo 3, 8), disse o Senhor. Mas o próprio Senhor instituiu, para o seu Espírito, um veículo condutor: «... Recebei o Espírito Santo — disse Ele aos seus discípulos depois da ressurreição —; àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos » (Jo 20, 22-23). Cristo é a única fonte, a única «videira autêntica». Mas a sua linfa chega até nós através dos sarmentos vivos que germinaram dela (cfr. Jo 15, 1 ss.; Lc 10, 16).

Fidelidade à Tradição

A Igreja não é um diafragma divisório, que interpõe uma distância, nem um impedimento dogmático e legal entre Cristo e o seu discípulo do século XX. É o canal, o trâmite, o desenvolvimento normal que une. É a garantia da autenticidade, da proximidade da presença de Cristo entre nós. «... Eu estarei sempre convosco — disse Cristo ao despedir-se dos Onze, abrindo diante deles a sucessão dos tempos — até ao fim do mundo » (Mt 28, 20).

Não se pode idealizar um cristianismo novo para renovar o antigo. E necessário ser-lhe fiel tenazmente. E esta estabilidade no ser, com a sua continuidade no movimento e no desenvolvimento, esta coerência existencial, própria de todos os seres vivos, não se pode qualificar reaccionária, obscurantista, arcaica, decrépita, burguesa, clerical, ou com outro epíteto depreciativo, com que, infelizmente, alguns livros modernos a definem, por causa da fobia que sentem por tudo o que é do passado, ou pela desconfiança de tudo o que o magistério da Igreja apresenta como objecto de fé. A verdade é assim: não morre. A Realidade divina, que está encerrada nela, não pode ser modelada segundo o gosto de cada um; é aqui que está o mistério. Quem tem a felicidade de o compreender, por meio da fé e da caridade, tem um prazer incalculável; possui, por assim dizer, uma certa experiência inefável da efusão do Espírito Santo.

Haverá quem diga: mas, então, não há nada para renovar, o imobilismo torna-se lei. Não, a verdade permanece, mas é exigente. E preciso conhecê-la e estudá-la; é preciso purificá-la nas suas expressões humanas. E tudo isto comporta uma grande renovação. A verdade permanece, mas é fecunda. Nunca ninguém pode dizer que a compreendeu inteiramente e a definiu com determinadas fórmulas, embora intangíveis no seu significado. A verdade pode apresentar aspectos que ainda podem ser objecto de investigação. Ilumina campos diversos que podem contribuir para o progresso da nossa doutrina. A verdade permanece, mas tem necessidade de ser divulgada, traduzida e formulada adequadamente, segundo a capacidade de compreensão dos seus discípulos, que são homens de todas as idades, de cultura diversa e de civilização diferente. A religião, portanto, admite aperfeiçoamento, incremento e aprofundamento; é uma ciência que está sempre vigilante, no sublime esforço de ser compreendida e formulada melhor.

Trata-se, então, de pluralismo? Sim, trata-se de um pluralismo que leve em consideração as recomendações do Concílio (cfr. Optatam Totius, n. 16; Gravissimum Educationis, n. 7 e 10) e que se refira aos modos com que as verdades da fé são enunciadas, e não ao seu conteúdo, como afirmou, com tanto vigor e tanta clareza, o Nosso venerado predecessor, João XXIII, na célebre alocução de abertura do Concílio (cfr. A.A.S., 1962, 790; 792), referindo-se tácita, mas claramente, à clássica fórmula do Commonitorium de São Vicente de Lérins ( 450): as verdades da fé podem ser expressas de modo diverso, desde que conservem «o mesmo significado» (cfr. DS. 2802).

O pluralismo, porém, não deve provocar dúvidas, equívocos ou contradições. Não deve legitimar um subjectivismo de opiniões em matéria dogmática, que comprometeria a identidade e, portanto, a unidade da fé. Progredir, enriquecer a cultura e favorecer a investigação, sim. Demolir, não.

Adesão ao Magistério

Deveríamos dizer muito mais sobre o tema da renovação religiosa; sobre o progresso da teologia, por exemplo, sobre as relações que existem entre a doutrina religiosa e o ambiente, quer histórico, quer cultural (assunto hoje em voga e muito delicado), sobre os ensinamentos morais da Igreja e os costumes mutáveis dos homens, e assim por diante. Mas é suficiente a alusão que acabámos de fazer a este grande tema da renovação religiosa, para que também ele seja objecto de algumas das vossas animadoras reflexões e faça com que aprecieis o esforço que a Igreja está a envidar nestes anos, com provada fidelidade e bondade pastoral, a fim de defender ciosamente a fé, a apresentar com amor e, também, para não faltar a vossa adesão e o vosso reconhecimento aos mestres da fé: Bispos, Teólogos a Catequistas. Para tanto, damo-vos a Nossa Bênção Apostólica.

 

 

 



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