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HOMILIA DO CARDEAL SARAIVA MARTINS NA
SOLENIDADE DO CORPUS CHRISTI REALIZADA EM TOLEDO (ESPANHA)
30 de Junho de 2002
A Criação é obra do amor de Deus, que
deseja tornar-nos participantes da sua própria vida; e esse amor não só não
se extingue quando nós o afastamos, antes, pelo contrário, se manifesta com
mais força. Os nossos primeiros pais quiseram elevar-se até à altura de Deus,
e Deus, na Pessoa do Verbo, baixou-se à nossa condição humana, fez-se homem
para nos redimir: "Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu
Filho Unigénito" (Jo 3, 16)
Esse amor, como nos diz São Paulo, não se
refere à humanidade em abstracto, mas a cada homem e a cada mulher em
particular, na sua singularidade: "[Jesus Cristo] me amou e se
entregou a Si mesmo por mim" (Gal 2, 20); somos, cada um, objecto da
sua predilecção e da sua entrega. Nasceu na pobreza de Belém e derramou por
mim o seu Sangue na Cruz.
1. Esse amor ultrapassa inclusivamente o que a
imaginação mais exaltada seria capaz de conjecturar. Jesus Cristo sabe que,
cumprida a sua missão redentora, terá de voltar ao Pai, para nos enviar o Espírito
Santo. Terá de voltar, mas, por sua vez, deseja permanecer connosco. É a situação,
descrita em tons vivos pelo Beato Josemaria Escrivá (Cf. B. Josemaria ESCRIVÁ,
La Eucaristía, misterio de fé y de amor, em "Es Cristo que
passa", n. 83), na qual se encontram duas pessoas que se amam e têm de se
separar. Anseiam por estar juntas e, não podendo realizar o seu desejo, deixam
uma à outra, como recordação, alguma coisa que seja símbolo do seu amor,
talvez uma fotografia, que de alguma maneira os faça presentes um ao outro. O
amor de Jesus Cristo unido à sua omnipotência divina realiza o que para nós não
é possível: tem de ir e, por sua vez, permanece, verdadeira, real e
substancialmente presente na Sagrada Eucaristia, para que possamos acudir a Ele
e recebê-lo não só como alimento que nos fortalece, mas também como fonte de
vida, que nos faz viver em Cristo e identificar-nos com Ele.
Vamos meditar neste prodígio de amor,
seguindo as palavras do Evangelho de S. João que acabamos de ouvir.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Se alguém
comer deste pão viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne
pela vida do mundo (6, 51).
Jesus Cristo comunica à multidão que se
tinha reunido à sua volta a loucura até onde o leva o seu amor pelos outros.
As palavras são claras e necessariamente temos de pensar que o Senhor esperava
do seus ouvintes um acolhimento cheio de admiração e agradecimento perante a
grandeza do dom que lhes oferece. Mas não foi assim: aqueles homens não
entenderam e, em vez de perguntar para pedir esclarecimentos, reagem com
desprezo e discutem entre si: "Como pode Ele dar nos a comer a sua carne?" (6,
52).
Uma vez mais o amor é rejeitado, até ao
ponto de como refere pouco mais adiante o mesmo capítulo sexto de São João,
de que hoje lemos um parte na Santa Missa inclusivamente muitos dos que até então
seguiam habitualmente Jesus se afastam d'Ele, comentando: Duras são estas
palavras (6, 60). Permanecem a seu lado unicamente os doze, que Jesus tinha
eleito como continuadores da sua missão; não se vão, porque à pergunta do
Senhor, também vós quereis retirar-vos? (6, 67), a fogosidade e a fé de Pedro
se adiantam aos outros e responde por todos: Senhor, para quem havemos nós
de ir? Tu tens palavras de vida eterna. (6, 68).
2. Jesus Cristo olha ao seu redor: está
só, o seu amor foi rejeitado. Sabe que um daqueles doze que O seguem será
traidor e o entregará à morte. A atitude céptica de quem fechou os ouvidos e
endureceu o seu coração teria desanimado um qualquer: é um verdadeiro
balde de água fria. A lógica humana teria levado o Senhor a concluir que não
valia a pena entregar-nos esse grande dom prometido, porque era patente a nossa
incapacidade para o receber. Apesar disso, na noite da Páscoa, Ele que amara os
seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles (Jo, 13,
1). E, na noite em que foi entregue, tomou o pão, e, depois de dar graças,
partiu-o e disse: "Isto é o Meu coprpo, que será entregue por vós;
fazei isto em Minha memória" Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice
e disse: "Este cálice é da Nova Aliança no Meu sangue: todas
as vezes que o beberdes, fazei-o em Minha memória" (1 Cor 11, 23-25).
Na obscuridade dessa noite de traição,
quando está para se realizar a debandada dos discípulos e junto da Cruz vão
permanecer só sua Mãe, o apóstolo João e umas poucas mulheres, o amor de
Jesus Cristo transborda e institui a Eucaristia. A partir de então, a Igreja
celebrará o Santo Sacrifício da Missa e, sob as espécies do pão e do vinho
como aprendemos no Catecismo estará realmente presente Jesus Cristo com o seu
Corpo, o seu Sangue, a sua Alma e a sua Divindade, o mesmo que por obra e graça
do Espírito Santo foi concebido no seio de Santa Maria sempre Virgem, quis
permanecer oculto trinta anos em Nazaré, divinizando e santificando a família
e as ocupações ordinárias dos homens, pregou o Evangelho da salvação,
derramou por nós, até à última gota, o seu sangue no Calvário, ressuscitou,
subiu aos céus, e está sentado à direita do Pai.
A celebração da Santa Missa torna presente a
morte de Jesus Cristo na Cruz e na comunhão dá-se-nos como alimento para o
caminho da nossa vida, de que é símbolo e figura o maná - recordado na
primeira leitura da Missa (Dt 8, 3.16) dado diariamente por Deus ao povo
de Israel durante a sua peregrinação no deserto, para nos fortalecer até
chegar à meta a que Deus nos destina: a glória para sempre.
Mais ainda: permanece nos nossos sacrários
em atitude de espera, para que vamos a Ele quantas vezes quisermos. Não lhe
basta tornar-se presente na Missa e ser nosso alimento; o seu amor leva-o a
permanecer connosco, mesmo sabendo que a nossa correspondência será muito
limitada e que, ao longo dos séculos se vai encontrar muitas vezes só e
abandonado, no coração de uma grande cidade ou num lugar remoto e quase
deserto, num sacrário talvez descuidado diante do qual só a luz ténue de uma
lâmpada indica a sua presença e as poucas pessoas que passam se limitam em
tantas ocasiões a uma genuflexão precipitada, sem se deter ao menos um momento
para lhe agradecer a sua presença e lhe expressar o desejo de corresponder ao
seu amor.
Fé, minhas irmãs e meus irmãos! Fé para
crescer nesse dom do amor que se nos entrega sem medida ou, melhor, segundo a
medida divina, de que só Deus é capaz. Fé, para nos alegrarmos por Jesus
Cristo ter querido vir até nós e se ter tornado presente no seu Sacrifício da
Cruz sob as espécies do pão e do vinho. Fé, para o receber com fome e sede na
Sagrada Comunhão, tendo-nos preparado bem, com a recepção frequente do
sacramento da Penitência, para o acolher com a maior dignidade que nos é possível.
Fé, para nos convencermos de que está nos sacrários das igrejas que assinalam
o nosso percurso habitual pelas ruas da cidade e espera que dirijamos para Ele o
nosso coração e façamos um acto de amor sem ruído de palavras quando
passamos perto do lugar onde Ele se encontra e lhe mostremos o nosso
agradecimento dedicando um momento do nosso dia a visitá-lo e ter um pouco de
conversa íntima com Ele.
3. Como prolongamento da Santa Missa,
acompanharemos hoje o Senhor que percorrerá as ruas desta cidade imperial,
espalhando bênçãos. O seu trono será essa grandiosa custódia processional,
objecto de legítimo orgulho porque, para além da sua riqueza de trabalho de
ourivesaria, expressa a fé e o amor dos nossos antepassados, que quiseram essa
jóia para manifestar a sua adoração a Jesus sacramentado. Nas ruas por onde
passarmos há tapetes de flores e as varandas estão engalanadas com colgaduras.
Vamos vestidos de festa para cantar o Amor dos amores: tudo nos parece
pouco para honrar o Senhor e para que o ambiente reflicta a alegria que nos
emociona.
Mas o aparato exterior há-de ser mostra e
manifestação das nossas disposições interiores. A entrega de Jesus Cristo é
incentivo para que tenhamos em consideração o que mais importa: o Senhor
deseja, acima de tudo, que o acompanhemos com o amor e com a alma limpa, em que
não haja recantos sem lhes tirar o pó. Na intimidade do diálogo pessoal com
Jesus, com sinceridade, de tu a tu, perguntemos-lhe: estás contente com o
meu modo habitual de comportamento? há alguma coisa em mim que te desagrada?
Talvez, no interior de nós mesmos, demos conta de que enquanto Jesus se dá sem
medida, nós medimos cada um dos nossos passos para não ultrapassarmos o razoável.
Esta festa do Corpus Christi não pode
reduzir-se a acompanhar o Senhor na sua passagem pelas ruas da cidade. Se fosse
essa a nossa atitude, assemelhar-nos-íamos às flores que atapetam as ruas, que
terão de ser retiradas uma vez terminada a procissão, porque hoje perfumam o
ambiente e alegram-no com as suas cores, mas amanhã estarão murchas.
Está na hora de tomar uma resolução firme e
duradoura, contando com a graça que nunca nos faltará: basta de meias
tintas, de navegar entre duas águas. A morte de Jesus Cristo na Cruz, essa
morte que se faz presente na Eucaristia, pede-nos uma resposta coerente. Jesus
Cristo não deu a sua vida para que nós nos contentemos em ir por diante com um
andar cansado; reclama que nos decidamos a viver de maneira radical as exigências
amáveis da nossa fé.
O Concílio Vaticano II proclamou com força a
chamada universal à santidade e o Papa João Paulo II propôs essa santidade
como objectivo fundamental e prioritário para o Milénio que ainda estamos a
começar (Cf. João Paulo II, Carta Apostólica Tertio millennio ineunte, 6-1-2001,
n. 30). Na Constituição sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II, lemos umas
palavras que convidam a reflectir. Diz assim o texto: "É, pois, bem
claro, que todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou condição, são
chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade" (40). O
chamamento de todos, sem excepção, à plenitude da vida cristã, quer dizer,
à santidade, é-nos proposto como verdade evidente. Mas, se olhamos à volta de
nós e olhamos para nós mesmos, podemos afirmar que essa evidência se
manifesta na realidade e nos factos concretos?
A solenidade de hoje leva-nos a expor, sem
dilações, a questão fundamental de nossa existência sobre a terra:
Deus dá-se a nós e quer-nos santos; e esse querer não é uma utopia, porque o
próprio Senhor nos dá os meios. Temos de formular, portanto, um propósito
decidido de tomar a sério esse chamamento e de procurar, com todas as nossas
forças, corresponder ao amor de Deus.
Para que não seja flor de um dia, esse propósito
há-se ser concreto e deve assentar firmemente na realidade da nossa existência.
Por isso, o dom da Eucaristia na Santa Missa, na comunhão e na presença de
Jesus Cristo no sacrário, não pode constituir um compartimento estanque, mas
deve projectar-se na procura de Deus na nossa vida ordinária, durante as vinte
e quatro horas de cada dia, na família, no trabalho profissional e nas relações
sociais que constituem o enredo da nossa existência quotidiana. Temos de
apontar sempre para esse "nível alto da vida cristã ordinária" que
o Papa nos propõe, acrescentando imediatamente: "toda a vida da
comunidade eclesial e das famílias cristãs e, permito-me glosar, a de cada um
de nós deve orientar-se nessa direcção" (Ibidem, n. 31).
Voltemos à consideração com que começámos:
o amor de Deus para connosco não conhece medidas. Jesus está morrendo na Cruz,
despojado até das suas vestes. Entregou-se-nos totalmente, mas parece como se não
estivesse satisfeito e olha à sua volta para comprovar se ainda resta alguma
coisa para nos dar. Os seus olhos encontram-se com os de sua Mãe e, voltando-se
para João que está junto d'Ela, diz-lhe: "Mulher, eis aí o teu
filho"; depois disse ao discípulo: "Eis aí a tua mãe" (Jo
19, 26-27). Dá-nos a sua Mãe como nossa Mãe. Ela, aquele que Toledo
venera como sua padroeira sob o título de Virgem do Sacrário, orienta sempre
os nossos passos para apreciar a grandeza do dom de Deus escondido nas Espécies
eucarísticas e ensina-nos a corresponder com alegria e com generosidade nas
circunstâncias ordinárias de cada um dos dias da nossa vida. Amen.
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