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PONTIFÍCIO CONSELHO « JUSTIÇA E PAZ »

PARA UMA MELHOR DISTRIBUIÇÃO
DA TERRA

O desafio da reforma agrária

 

APRESENTAÇÃO

O presente documento, « Para uma melhor distribuição da terra: o desafio da reforma agrária », propõe-se alertar, aos mais diferentes níveis, para uma profunda tomada de consciência relativamente aos dramáticos problemas humanos, sociais e éticos, que o fenômeno da concentração e apropriação indevidas da terra levanta.

Trata-se de um problema que atinge a dignidade de milhões de seres humanos e priva o nosso mundo de uma perspectiva de paz.

Diante de situações marcadas por tantas e inaceitáveis injustiças, o Pontifício Conselho « Justiça e Paz » oferece este documento para reflexão e orientação, fazendo-se intérprete de uma dupla pergunta: a dos próprios pobres e a dos pastores. Assim, o Pontifício Conselho « Justiça e Paz » deve pronunciar, urgentemente e de forma corajosa e evangélica, uma palavra acerca das situações escandalosas no que se refere ao domínio da terra, situação que se aplica à maior parte dos continentes.

O Pontifício Conselho, servindo-se do rico patrimônio da doutrina social da Igreja, considera seu dever irrevogável, chamar a atenção de todos, especialmente daqueles que têm responsabilidades políticas e econômicas, para empreenderem reformas apropriadas no domínio agrário em ordem a iniciar uma fase de crescimento e desenvolvimento.

Não se deve deixar passar o tempo em vão. O Grande Jubileu do ano 2000, proclamado pelo Santo Padre o Papa João Paulo II, para comemorar Jesus Cristo como o Unico Salvador, é um desafio à conversão, também no plano social e político. A conversão, aqui mencionada, destina-se a restabelecer o direito dos pobres e marginalizados, de forma a que possam, também eles, gozar da terra e dos seus bens, bens que o Senhor deu a todos e a cada um dos seu filhos e filhas.

PREMISSA

1. O modelo de desenvolvimento das sociedades industrializadas é capaz de produzir enorme quantidade de riqueza, mas evidencia graves insuficiências quando se trata de re-distribuir equitativamente os frutos e favorecer o crescimento das áreas menos desenvolvidas.

Não ficam isentos desta contradição as próprias economias desenvolvidas, todavia é nas economias em via de desenvolvimento que a gravidade desta situação atinge dimensões dramáticas.

Isto torna-se evidente no persistente fenômeno da apropriação indevida e da concentração da terra, isto é, do bem que, dado o carácter prevalentemente agrícola da economia dos países em vias de desenvolvimento, constitui, juntamente com o trabalho, o factor fundamental de produção e a principal fonte da riqueza nacional.

Tal estado de coisas è muitas vezes uma das causas mais importantes de situações de fome e miséria e representa uma negação concreta do princípio, derivado da origem comum e fraternidade em Deus (cf. Ef 4,6), que todos os seres humanos nasceram iguais em dignidade e direitos.

2. No limiar do Terceiro Milénio da era cristã, o Santo Padre João Paulo II convida toda a Igreja a « sublinhar com maior decisão a opção preferencial... pelos pobres e os marginalizados » e indica « o empenho pela justiça e pela paz num mundo como o nosso, marcado por tantos conflitos e por intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, ... um aspecto qualificante da preparação e da celebração do Jubileu ».(1)

Nesta perspectiva, o Conselho Pontifício Justiça e Paz pretende enfrentar, através do presente documento, o dramático problema da apropriação indevida e da concentração da terra no latifúndio,(2) solicitando uma solução e indicando o espírito e os objectivos que a devem orientar.

O documento apresenta em forma sintética:

– uma descrição do processo de concentração da propriedade da terra onde não está equitativamente distribuída;

– os princípios que devem inspirar as soluções de tal questão grave, segundo a mensagem bíblica e eclesial;

– a solicitação de uma eficaz reforma agrária, condição indispensável para um futuro de maior justiça.

O documento pretende chamar a atenção de quantos se preocupam com os problemas do mundo da agricultura e do desenvolvimento econômico geral, sobretudo dos responsáveis, aos vários níveis nacionais e internacionais, sobre os problemas ligados à propriedade da terra e impulsioná-los a uma acção necessária e cada vez mais urgente. Não é, todavia, um documento de proposta política, porque isso não compete à Igreja.

3. O Conselho Pontifício Justiça e Paz faz-se intérprete das solicitações chegadas de inúmeras Igrejas locais, que estão empenhadas em fazer frente quotidianamente aos problemas que aqui são tratados.

A preocupada atenção que a Igreja continua a dar a estes temas, na solicitude explícita de construir a sociedade sob o sinal evangélico da justiça e da paz, pode-se facilmente apreender através da leitura das numerosíssimas intervenções seja de Bispos particulares seja das Conferências Episcopais a propósito da terra e da sua distribuição equitativa.(3)

A estas intervenções, ainda que não sejam explicitamente mencionadas, faz-se constante referência. Elas constituem um contributo de grande valor e significado, muitas vezes expressão de sofridos testemunhos cristãos, realizados em situações difíceis e dolorosas.

Pretendemos confirmar o valor destes testemunhos e encorajar o seu empenho para o futuro.

CAPÍTULO I

PROBLEMAS LIGADOS À CONCENTRAÇÃO
DA PROPRIEDADE DA TERRA

A hipoteca do passado na situação actual

4. A estrutura agrária dos Países em via de desenvolvimento é muitas vezes caracterizada por uma distribuição de tipo bipolar. Um número exíguo de grandes proprietários rurais possui a maior parte da superfície cultivável, enquanto uma multidão de pequeníssimos proprietários, de arrendatários e de colonos cultiva a superfície restante que, muitas vezes, é de qualidade inferior. A grande propriedade caracteriza, ainda hoje, o regime fundiário de uma boa parte de tais Países.(4)

O processo de concentração da propriedade da terra tem origens históricas diversas segundo as regiões. Pelo particular interesse que representa para a nossa reflexão, assinala-se que, nas áreas que foram sujeitas ao domínio colonial, a concentração da terra em propriedades de grandes dimensões desenvolveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século passado, através da progressiva apropriação privada da terra, favorecida por leis que introduziram graves distorções no mercado fundiário.(5)

A apropriação privada da terra não teve como única consequência a formação e a consolidação de grandes propriedades rurais, mas ainda o efeito, diametralmente oposto, da pulverização da pequena propriedade.

O pequeno agricultor,(6) na melhor das hipóteses, podia adquirir uma exígua superfície de terra, para cultivar com a sua família. Quando esta aumentava, não lhe era possível aumentar a sua propriedade, a não ser que estivesse disposto a deslocar-se, com os seus familiares, para terras menos férteis e mais distantes, que requeriam um aumento de trabalho por cada unidade de produção.

Determinavam-se, deste modo, as condições para a ulterior fragmentação da já pequena extensão de terra possuída e, em todo o caso, em prejuízo da propriedade do agricultor e da sua família.

5. Nas últimas décadas, esta situação não mudou substancialmente, antes, em muitos casos, foi a pouco e pouco piorando, se bem que a experiência de todos os dias confirme a influência negativa do seu impacto sobre o crescimento da economia e sobre o desenvolvimento social.(7)

Na base de tudo isto, está a interacção de um complexo de fenômenos que são de particular gravidade e que, não obstante a diversidade específica das várias nacionalidades, apresentam traços marcadamente semelhantes entre os vários Países.

Os caminhos do desenvolvimento econômico percorridos pelos diversos Países em via de desenvolvimento nas últimas décadas incentivaram muitas vezes o processo de concentração da propriedade da terra. Em geral, tal processo parece ser consequência de medidas de política econômica e de vínculos estruturais não mutáveis em período breve e causa de custos econômicos, sociais e ambientais.

Uma avaliação crítica das opções de política econômica

A industrialização em detrimento da agricultura

6. Para realizar em breve tempo a modernização da economia nacional, muitos Países em via de desenvolvimento basearam-se prevalentemente na convicção, muitas vezes não justificada, de que a rápida industrialização pode produzir um melhoramento do bem-estar econômico geral, mesmo se acontece em detrimento da agricultura.

Adoptaram, por consequência, políticas de protecção das produções industriais internas e de manipulação das taxas de câmbio das moedas nacionais em prejuizo da agricultura; políticas de impostos sobre a exportação dos produtos agrícolas; políticas de apoio do poder de compra das populações urbanas baseadas no controlo dos preços dos produtos alimentares, ou outras formas de intervenção que, alterando o mecanismo distributivo dos mercados, levaram muitas vezes ao agravamento dos termos de câmbio da produção agrícola em confronto com a industrial.

A queda dos rendimentos agrícolas que deriva disso afectou gravemente os pequenos produtores, a ponto de muitos deles terem abandonado a actividade agrícola. Tudo isto incentivou o processo de concentração da propriedade da terra.

As experiências falhadas de reforma agrária

7. Em muitos Países em via de desenvolvimento, nestas últimas décadas, realizaram-se reformas agrárias tendentes a assegurar uma repartição mais equitativa da propriedade e do uso da terra. Só em alguns casos estas reformas atingiram os objectivos previstos. Em boa parte de tais Países, pelo contrário, desiludiram as expectativas.

Um dos erros principais foi convencer-se de que a reforma agrária consiste essencialmente na simples repartição e atribuição da terra.

Os insucessos podem ser atribuídos, em parte, a uma interpretação imprópria das exigências do sector agrícola em transição de uma fase de subsistência para uma de integração com os mercados nacionais e internacionais, em parte, à pouca profissionalidade no planejamento, na organização e na gestão da reforma.(8)

Em síntese, as intervenções de reforma agrária falharam nos seus objectivos: reduzir a concentração da terra no latifúndio, dar vida a empresas capazes de crescimento autônomo, impedir a expulsão da terra das grandes massas camponesas e a sua emigração para os centros urbanos ou para as terras ainda livres ou marginais e pobres em infra-estruturas sociais.

8. Em muitos casos os governos não se preocuparam suficientemente de dotar aszonas de reforma das infra-estruturas e dos serviços sociais necessários; de realizar uma eficiente organização de assistência técnica; de assegurar um acesso equitativo ao crédito a preços sustentáveis; de limitar as distorções a favor das grandes propriedades rurais; de pedir aos beneficiários preços e formas de pagamento das terras recebidas compatíveis com as exigências de desenvolvimento das suas empresas e com as exigências da vida das suas famílias. Os pequenos agricultores, obrigados a endividar-se, muitas vezes têm de vender os seus direitos e abandonar a actividade agrícola.

Uma segunda e importante causa do insucesso das reformas agrárias é derivada de não se ter considerado a história e as tradições culturais das sociedades agrícolas, o que levou muitas vezes a favorecer estruturas fundiárias em contraste com as formas tradicionais de propriedade da terra.

Outras duas realidades, enfim, concorreram para desestabilizar sensivelmente o processo de reforma: uma deplorável série de formas de corrupção, servilismo político e conluio que levou a conceder extensões enormes de terra aos membros dos grupos dirigentes, e a presença de importantes interesses estrangeiros, preocupados com as consequências de uma reforma para as suas actividades econômicas.

A gestão das exportações agrícolas

9. Em muitos Países em via de desenvolvimento, até as modalidades com que as políticas agrárias administraram a exportação dos produtos agrícolas favoreceram muitas vezes o processo de concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos.

Para alguns produtos foram adoptadas políticas de controle dos preços, favoráveis às grandes empresas agro-industriais e aos cultivadores de produtos para a exportação, mas que penalizaram os pequenos cultivadores de produtos agrícolas tradicionais.(9) Outras políticas orientaram todo o sistema das infra-estruturas e dos serviços prevalentemente segundo os interesses dos grandes agricultores. Em outros casos ainda, as políticas fiscais em relação à agricultura facilitaram os lucros de certos grupos de proprietários pessoas físicas particulares ou sociedades de capital e permitiram amortizar, em tempos relativamente breves, os investimentos fixos, sem prever impostos progressivos ou consentindo de qualquer maneira uma fácil evasão fiscal. Houve, finalmente, políticas que, facilitando o crédito da agricultura, distorceram as relações de preço entre capital fundiário e trabalho.

Encorajou-se, deste modo, um processo de acumulação baseado sobre o investimento em terra. Deste processo foram excluídos os pequenos agricultores, muitas vezes à margem do mercado da terra.

O aumento dos preços da terra e a diminuição da procura de trabalho, devido à mecanização das operações da cultura agrícola, tornam difícil aos pequenos agricultores, quando não estão associados, o acesso ao crédito de longo prazo e portanto a aquisição de terra.

10. O objectivo de prosseguir a redução do débito internacional através da exportação pode levar a uma diminuição do nível de bem-estar dos pequenos agricultores, que muitas vezes não cultivam produtos para exportar.

As carências do serviço público de formação agrícola não consentem a estes agricultores, que se dedicam por necessidade a uma agricultura prevalentemente de subsistência recorrendo a práticas tradicionais, adquirir a preparação técnica necessária para realizar correctamente as operações culturais requeridas pelos novos produtos. As dificuldades que os pequenos agricultores, escarsamente integrados com o mercado, encontram no acesso ao crédito limitam a sua possibilidade de adquirir os factores de produção que as novas técnicas exigem. O pouco conhecimento do mercado não lhes permite ser informados sobre o andamento dos preços dos produtos e obter a qualidade que a exportação exige.

Nas pequenas propriedades, o cultivo dos produtos para a exportação, incentivada pelo mercado, acontece muitas vezes em detrimento dos produtos destinados em grande parte ao auto-consumo e, por isso, expõe a família agrícola a fortes riscos. Se o andamento da estação ou as condições de mercado são desfavoráveis, a família do pequeno agricultor pode entrar na espiral da fome e acumular dívidas que a constringem a perder a propriedade da sua terra.

A expropriação das terras das populações indígenas

11. Nestas últimas décadas registrou-se uma intensa e contínua expansão das várias formas de actividade econômica baseadas no uso dos recursos naturais em direção das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.

Na maioria dos casos, a difusão das grandes empresas agrícolas, a realização de empreendimentos hidro-eléctricos, a exploração dos recursos minerais, do petróleo e das madeiras das florestas nas áreas de expansão da fronteira agrícola foram decididas, planificadas e implementadas ignorando os direitos dos habitantes indígenas.(10)

Tudo isto acontece no âmbito da legalidade, mas o direito de propriedade sancionado pela lei está em conflito com o direito ao uso do solo derivante de uma ocupação e de uma pertença cujas origens se perdem no tempo.

As populações indígenas, que na sua cultura e na sua espiritualidade consideram a terra a base de todos os valores e o factor que une e alimenta a sua identidade, perderam o direito legal à propriedade das terras nas quais viviam há séculos, já no momento da construção dos grandes latifúndios. Por isso, podem ser privadas improvisamente destas terras, sempre que os detentores de velhos ou novos títulos legais de propriedade queiram tomar concretamente posse delas, ainda que durante décadas se tenham desinteressado disso.

Pode ainda acontecer que os indígenas corram o risco, tão absurdo quanto concreto, de serem considerados invasores das suas terras.

A única alternativa à possibilidade de serem expulsos das propriedades rurais é a disponibilidade a trabalhar na dependência das grandes empresas ou a emigrar. Estes povos, em qualquer caso, são despojados da sua terra e da sua cultura.

Violência e cumplicidade

12. A história de muitas áreas rurais tem sido caracterizada frequentemente por conflitos, injustiças sociais e formas de violência não controladas.

A élite fundiária e as grandes empresas empenhadas na exploração dos recursos minerais e das madeiras não hesitaram, em muitas ocasiões, em instaurar um clima de terror para abafar os protestos dos trabalhadores, obrigados a ritmos de trabalho desumanos e remunerados com salários que muitas vezes não cobrem as despesas de transporte, alimentação e alojamento. O mesmo clima se tem instaurado para vencer os conflitos com os pequenos agricultores que cultivam há muito tempo terras do Estado ou outras terras, ou para se apropriar das terras ocupadas pelos povos indígenas.

Nestas lutas utilizam-se métodos intimidatórios, provocam-se prisões ilegais e, em casos extremos, pagam-se grupos armados para destruir os bens e as colheitas, para tirar poder aos líderes das comunidades e desembaraçar-se de pessoas em vista, como aqueles que tomam a defesa dos débeis, entre os quais se devem recordar também muitos responsáveis da Igreja.

Os representantes do poder público, muitas vezes, são directamente cúmplices destas violências. A impunidade aos executores e aos mandatários dos crimes é garantida por deficiências na administração da justiça e pela indiferença de muitos Estados para com os instrumentos jurídicos internacionais relativos ao respeito dos direitos humanos.

Dificuldades institucionais e estruturais a resolver

13. Os Países em via de desenvolvimento podem combater eficazmente o actual processo de concentração da propriedade da terra, se afrontarem algumas situações que se podem classificar como verdadeiros nós estruturais. Tais são as carências e os atrasos a nível legislativo quanto ao reconhecimento do título de propriedade da terra e em relação ao mercado de crédito; o desinteresse pela investigação e formação em agricultura; a negligência a propósito de serviços sociais e de infra-estruturas nas áreas rurais.

O reconhecimento legal do direito de propriedade

14. O quadro normativo e a frágil ordem das instituições administrativas, como os cadastros, de muitos Países agrava frequentemente as dificuldades que os pequenos agricultores encontram em obter o reconhecimento legal do direito de propriedade sobre a terra que cultivam há muito tempo e da qual são proprietários de facto. Acontece frequentemente que eles sejam destituídos porque esta terra cai, por lei, nas mãos daqueles que, graças a maiores meios financeiros e às informações de que dispõem, conseguem obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre elas.

O pequeno agricultor fica penalisado em todo o caso: a incerteza acerca do título de posse da terra constitui, de facto, um forte desincentivo ao investimento, faz aumentar os riscos para o cultivador caso ele aumente a extensão da sua propriedade e reduz a possibilidade de aceder ao crédito utilizando a terra como garantia. Além disso, esta incerteza constitui um incentivo a explorar em excesso os recursos naturais do terreno, sem considerar os riscos ligados à defesa ambiental e sem se preocupar com a continuidade entre gerações da propriedade da família.

O mercado do crédito

15. A tradição normativa em relação ao mercado do crédito concorre para produzir os efeitos apenas considerados. O pequeno agricultor encontra grandes dificuldades em aceder ao crédito necessário para melhorar a tecnologia produtiva, para aumentar a propriedade, para enfrentar as dificuldades, por causa do papel atribuído à terra como instrumento de garantia e dos maiores custos que o financiamento de consistência limitada comportam para os institutos de crédito.(11)

Nas áreas rurais o mercado legal do crédito está, muitas vezes, ausente. O pequeno agricultor é induzido a recorrer à usura para os empréstimos de que tem necessidade, expondo-se a riscos que o podem levar à perda parcial ou mesmo total da própria terra. O usurário, de facto, costuma finalizar a sua actividade com a especulação fundiária. Acontece deste modo uma absorção de pequenas propriedades que acresce o número dos sem terra e que, ao mesmo tempo, aumenta o patrimônio dos grandes proprietários, dos agricultores mais ricos ou dos comerciantes locais.

Nas economias pobres, substancialmente, o acesso ao crédito a longo prazo tende a ser directamente proporcional à propriedade dos meios de produção, em particular da terra, e a ser, portanto, prerrogativa exclusiva dos grande proprietários rurais.

A investigação e a formação agrícola

16. Outras importantes carências referem-se à investigação e à formação agrícola,(12) ou seja, às actividades de estudo e de desenvolvimento de técnicas de produção novas e apropriadas às diversas realidades, à obra de informação dos produtores agrícolas sobre a existência destas técnicas e às modalidades de emprego aptas a tirar delas a máxima vantagem.

Muitas vezes, nos Países em via de desenvolvimento, o empenho econômico para dar vida a estruturas e centros de investigação é bastante limitado e resulta inadequada a preparação daqueles que são prepostos para a formação.

Determinam-se, portanto, as condições que tornam possíveis dois fenômenos, estreitamente relacionados, de particular relevo econômico-social:

– a difusão de técnicas resultantes da actividade de investigação e de desenvolvimento de particulares, os quais, por razões de mercado, voltam a sua atenção para as empresas de grandes dimensões;

– a insuficiente atenção à compatibilidade das técnicas novas com as características da agricultura das diversas áreas e, particularmente, com as condições sócio-econômicas locais. Nestes casos, é alto o risco que os efeitos da difusão das novas técnicas sejam negativos para o bem-estar dos pequenos agricultores e para a própria sobrevivência das suas empresas.

A carência de infra-estruturas e de serviços sociais

17. Assume grande relevo o desinteresse pelas infra-estruturas e serviços sociais indispensáveis nas áreas rurais.

O sistema escolar nestas áreas, pelas suas profundas insuficiências quantitativas e qualitativas, não proprociona aos jovens os meios necessários para desenvolverem as suas capacidades pessoais e para adquirirem a consciência da sua dignidade de seres humanos e dos próprios direitos e deveres.

Analogamente, a escassez e a baixa qualidade dos serviços sanitários traduzem-se, frequentemente, por uma efectiva negação do direito à saúde dos pobres das áreas rurais, com todas as consequências que isto comporta para a vida das pessoas.

Por sua vez, as carências dos sistemas de transporte, além de tornarem mais difícil o acesso aos outros serviços sociais, concorrem para reduzir sensivelmente aos pequenos agricultores o rendimento da prática da agricultura. A falta de estradas ou as más condições da sua manutenção e a escassez de meios de transporte público aumentam o custo dos factores de produção e reduzem, por isso, o incentivo a melhorar as técnicas de produção.

A consequência mais grave da carência nas infra-estruturas viárias é a dependência obrigatória dos pequenos agricultores do mercado local para a comercialização dos seus produtos. No mercado local as informações úteis são escassas e torna-se, portanto, difícil adequar a qualidade dos produtos às exigências da procura. Nele dominam operadores que dispõem de um poder de carácter monopolista, de tal modo que os agricultores são constrangidos a aceitar o preço que lhes é oferecido, ou então a não vender.

Consequências das políticas econômicas relativas à propriedade fundiária

Consequências econômicas

18. Os desequilíbrios na repartição da propriedade da terra e as políticas que lhes dão origem e os alimentam são fonte de graves obstáculos ao desenvolvimento econômico.

Tais desequilíbrios e tais políticas podem gerar consequências econômicas que recaem sobre a maioria da população. Podemos apontar pelo menos cinco:

a) as distorções no mercado da terra. As políticas de intervenção sobre o mercado favorecem muitas vezes as grandes propriedades rurais, implícita ou explicitamente, através de subsídios indirectos, medidas fiscais e créditos privilegiados. Tais vantagens produzem novos investimentos no valor da terra e, por isso, o aumento do seu preço. Os pequenos agricultores vêem assim reduzida a sua capacidade de adquirir terra e, portanto, a sua possibilidade de aumentar, através das normais operações de compra e venda, a eficiência e a equidade do mercado fundiário;

b) a redução da produção agrícola geral do País. Nos Países com uma economia agrícola pouco desenvolvida, existe, normalmente, uma relação inversa entre dimensões da empresa agrícola e produtividade. A produção por unidade de superfície realizada pelos pequenos agricultores é mais elevada do que a obtida pelos grandes proprietários rurais. Pelo contrário, o produto obtido pelos grandes proprietários fundiários, que possuem a maior parte da terra, é inferior. Consequentemente, reduz-se assim a produção agrícola total do País;

c) a gestão dos salários agrícolas a níveis baixos. Tal refreamento é devido ao aumento da oferta, à simultânea diminuição da procura de trabalho na agricultura e à falta das condições que garantam aos trabalhadores a possibilidade de negociar o seu trabalho, a nível colectivo e individual;

d) o reduzido rendimento das pequenas empresas. Quando o rendimento das pequenas empresas se reduz, tornam-se difíceis os investimentos necessários para o seu desenvolvimento. Trata-se, portanto, de um processo em espiral, de sinal negativo;

e) a subtracção das economias acumuladas no sector agrícola. Estas não são utilizadas proficuamente para investimentos produtivos em infra-estruturas e tecnologias úteis à agricultura, mas são-lhe retiradas para serem destinadas ao consumo ou a outros sectores da economia.

Consequências sociais e políticas

19. Elevadas e graves são as consequências sociais. O mundo agrícola está envolto num processo que aumenta e difunde a pobreza.(13) Onde ela domina e não existem nem segurança social nem segurança para a velhice, os filhos representam para os pais uma garantia para o próprio futuro. As taxas de aumento da população, por isso, são muito altas, enquanto os problemas da educação e protecção da saúde não encontram respostas adequadas.

O tradicional equilíbrio na distribuição territorial da população é quebrado, nas comunidades rurais, por processos de desestruturação, que originam um movimento migratório em direcção às periferias das grandes cidades, cada vez mais megalópoles, onde mais graves se tornam os contrastes sociais, a violência e a criminalidade.

Os povos indígenas, submetidos a contínuas pressões que têm em mira afastá-los das suas terras, têm de assistir à dissolução das suas instituições econômicas, sociais, políticas e culturais e à destruição do equilíbrio ambiental dos seus territórios.

20. Para muitos Países, mesmo se ricos de terrenos cultiváveis e de recursos naturais, são ainda a fome e a desnutrição que representam o problema principal.(14) A fome é, hoje, um fenômeno de dimensões crescentes. Não depende apenas das carestias, mas também das escolhas políticas que não melhoram a capacidade das famílias de terem acesso aos recursos. A defesa dos privilégios de uma minoria leva frequentemente a pôr obstáculos e a impedir de facto, se não legalmente, o desenvolvimento da produção agrícola. O facto de se destinarem as terras a produtos de exportação, enquanto se reduzem os preços da alimentação nos Países de economia desenvolvida, pode ter efeitos mesmo muito negativos na maior parte das famílias que vivem da agricultura. Este paradoxo é intolerável para todas as inteligências e consciências.

A acumulação dos problemas econômicos e sociais aumenta a complexidade dos problemas políticos, provocando instabilidade e conflitos que atrasam o desenvolvimento democrático. Tudo isto penaliza a agricultura e representa um gravíssimo obstáculo para qualquer programa de crescimento econômico.

Consequências ambientais

21. As desigualdades na distribuição da propriedade da terra desencadeiam enfim um processo de degradação ambiental dificilmente reversível,(15) para o qual concorrem a degradação do solo, a redução da sua fertilidade, a elevada exposição ao risco de aluviões, o abaixamento das faldas freáticas, a diminuição do nível dos rios e dos lagos e outros problemas ecológicos.

É frequentemente incentivada, com facilidades fiscais e de crédito a desarborização de amplas áreas para se dar lugar a formas de criação extensivas e a actividades mineiras ou ao aproveitamento das madeiras, mas não são previstos planos de re-sistemação ambiental, ou então não são postos em prática, caso existam.

Também a pobreza está ligada à degradação do ambiente, num círculo vicioso, quando os pequenos agricultores, expropriados pela grande propriedade, e os pobres sem terra são obrigados, na sua busca de novas terras, a ocupar as terras estruturalmente frágeis, como as terras em declive e a desgastar o patrimônio florestal para trabalharem na agricultura.

CAPÍTULO II

A MENSAGEM BÍBLICA E ECLESIAL
SOBRE A PROPRIEDADE DA TERRA E SOBRE
O DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA

A mensagem bíblica

O cuidado da criação

22. A primeira página da Bíblia narra a criação do mundo e da pessoa humana: « Deus criou o homem a sua imagem: à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou » (Gen 1,27). Palavras solenes exprimem a tarefa que Deus lhes confia: « Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra; sujeitai-a e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem sobre a terra » (Gen 1,28).

A primeira tarefa que Deus lhes atribui — trata-se, evidentemente, de uma tarefa fundamental — refere-se à atitude que devem assumir em relação à terra e a todas as criaturas. « Sujeitar » e « dominar » são verbos que podem ser facilmente mal entendidos e podem até parecer uma justificação para aquele domínio despótico e prepotente, que não se importa com a terra e os seus frutos, mas estraga-os para vantagem própria. Na realidade, « sujeitar » e « dominar » são verbos que, na linguagem bíblica, servem para descrever o domínio do rei sábio, que cuida do bem-estar de todos os seus súbditos.

O homem e a mulher devem cuidar da criação, para que esta sirva para eles e fique à disposição de todos, não somente de alguns.

23. A natureza profunda da criação é ser um dom de Deus ao ser humano, um dom para todos, e Deus quer que assim permaneça. Por isso a primeira ordem dirigida por Deus é conservar a terra na sua natureza de dom e bênção, e de não a transformar, pelo contrário, em instrumento de poder ou em motivo de divisão.

O direito-dever da pessoa humana de dominar a terra deriva do seu ser imagem de Deus: cabe a todos, não só a alguns, a responsabilidade da criação. No Egipto e na Babilônia esta prerrogativa era atribuída a alguns. No texto bíblico, pelo contrário, o domínio pertence à pessoa humana enquanto tal e, por isso, a todos. Antes, é a humanidade no seu conjunto que se deve sentir responsável pela criação.

O homem é colocado no jardim para o cultivar e guardar (cf. Gen 2,15), para poder nutrir-se dos seus frutos. No Egipto e na Babilônia, o trabalho é uma dura necessidade imposta aos homens para proveito dos deuses: de facto, para proveito do rei, dos funcionários, dos sacerdotes e dos grandes proprietários. Na narração bíblica, ao contrário, o trabalho é para a realização da pessoa humana.

A terra é de Deus que a dá a todos os seus filhos

24. O israelita tem direito à propriedade da terra, que a lei protege de muitos modos. Prescreve o Decálogo: « Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem nada que lhe pertença » (Dt 5,18).

Pode-se dizer que o israelita se sente verdadeiramente livre, plenamente israelita, só quando possui o seu pedaço de terra. Mas a terra é de Deus, insiste o Antigo Testamento, e Deus deu-a em herança a todos os filhos de Israel. Portanto, deve ser dividida entre todas as tribos, clãs e famílias. E o homem não é o verdadeiro dono da sua terra, mas antes um administrador. O verdadeiro dono é Deus. Lê-se no Levítico: « As terras não se poderão vender definitivamente, porque a terra é minha e vós sois como estrangeiros e inquilinos na minha casa » (25,23).

No Egipto, a terra pertencia ao faraó e os camponeses eram seus servos e sua propriedade. Na Babilônia vigorava uma estrutura feudal: o rei entregava as terras a troco de fidelidade e serviços. Nada de semelhante em Israel. A terra é de Deus que a dá a todos os seus filhos.

25. Daqui derivam consequências precisas. Por um lado, a ninguém é lícito privar da posse da terra a pessoa que a tem em uso, de outro modo violar-se-ia um direito divino; nem sequer o rei o pode fazer.(16) Por outro lado, é negada qualquer forma de posse absoluta e arbitrária exclusivamente para vantagem própria: não se pode fazer o que se quer dos bens que Deus deu a todos.

É com base nisto que a legislação introduz de vez em quando, e sempre sob o impulso de situações concretas, muitas limitações ao direito de propriedade. Alguns exemplos: a proibição de colher frutos de uma árvore durante os primeiros quatro anos (cf. Lv 19,23-25); o convite a não ceifar até às extremidades do campo e a proibição de colher frutos e espigas esquecidos ou caídos no chão, porque pertencem aos pobres (cf. Lv 19,9-10; 23,22; Dt 24,19-22).

À luz desta visão da propriedade, compreende-se a severidade do juizo moral expresso pela Bíblia sobre as prevaricações dos ricos, que obrigam os pobres e os camponeses a ceder os seus terrenos familiares. São particularmente os Profetas a condenar com energia estas injustiças. « Ai de vós, os que ajuntais casas e mais casas, e que acrescentais campos e campos », grita Isaías (5,8). E o seu contemporâneo Miquéias: « Cobiçam as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas. Fazem violência ao homem e à sua família, ao dono e à sua herança » (2,2).

A perspectiva de liberdade do Jubileu

26. O esforço de ligar estável e perpetuamente a propriedade da terra ao seu dono e, ao mesmo tempo, o esforço de distribuir equitativamente as terras entre todas as famílias de Israel estão na origem de uma das instituições sociais mais singulares daquele povo: o Jubileu (cf. Lv 25).17 Esta instituição traduz directamente no plano social e econômico a senhoria de Deus e pretende afirmar, ou defender, três liberdades.

A primeira liberdade diz respeito aos campos e às casas que, no ano jubilar, devem voltar aos antigos proprietários. Campos e casas podem-se vender, mas a venda é simplesmente uma passagem dos direitos de utilização permanecendo firme o direito do proprietário (ou de um parente) de resgatar em qualquer momento o seu fundo. Em todo o caso, de cinquenta em cinquenta anos, as propriedades alienadas voltarão às antigas famílias.

A segunda liberdade diz respeito às pessoas que, no ano do Jubileu, devem regressar livres às suas famílias e às suas propriedades.

A terceira liberdade diz respeito à terra que, no ano do Jubileu e no ano sabático, deve ser deixada a repousar por um ano.

Particularmente interessante é a motivação destas três liberdades: « Porque eu sou o Senhor vosso Deus » (Lv 25,17); « A terra é minha e vós sois como estrangeiros e inquilinos na minha casa » (Lv 25,23). A motivação básica, portanto, é o senhorio de Deus, um senhorio que se manifesta no dom aos homens: « Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos fez sair do país do Egipto, para vos dar o país de Canaan, para ser o vosso Deus » (Lv 25,38).

A propriedade da terra segundo a doutrina social da Igreja

27. Na perspectiva delineada pela Sagrada Escritura, a Igreja elaborou ao longo dos séculos a sua doutrina social. Documentos autorizados e significativos ilustram os seus princípios fundamentais, os critérios para o juízo e discernimento, as indicações e orientações para escolhas oportunas.

Na doutrina social, o processo de concentração da propriedade da terra é julgado um escândalo porque em nítido contraste com a vontade e o desígnio salvífico de Deus, enquanto nega a grande parte da humanidade o benefício dos frutos da terra.

As perversas desigualdades na distribuição dos bens comuns e das oportunidades de desenvolvimento de cada pessoa e os desequilíbrios desumanizantes nas relações individuais e colectivas, provocados por semelhante concentração, são a causa de conflitos que minam as bases da convivência civil e provocam a ruptura do tecido social e a degradação do ambiente natural.

A destinação universal dos bens e a propriedade particular

28. As consequências da actual desordem confirmam a exigência, para toda a sociedade humana, de se chamar continuamente a atenção para os princípios de justiça, particularmente o princípio da destinação universal dos bens.

A doutrina social da Igreja, de facto, funda a ética das relações de propriedade da pessoa humana a respeito dos bens da terra sobre a perspectiva bíblica, que indica a terra como dom de Deus a todos os seres humanos. « Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos os homens e povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, sob as regras da justiça, inseparável da caridade. Por isso... deve-se atender sempre a esta destinação universal dos bens ».(18)

O direito ao uso dos bens terrenos é um direito natural, primário, de valor universal, enquanto compete a cada ser humano: não pode ser violado por nenhum outro direito de conteúdo econômico;(19) dever-se-á antes proteger e tornar efectivo por meio de leis e instituições.

29. Enquanto afirma a exigência de assegurar a todos os seres humanos, sempre e em qualquer circunstância, o gozo dos bens da terra, a doutrina social apoia também o direito natural à apropriação individual destes bens.(20)

O homem, cada ser humano, faz frutificar, de modo efectivo e eficaz, os bens da terra que foram postos ao seu serviço, e, portanto, afirma-se a si mesmo, se está em condições de poder usar livremente destes bens, tendo adquirido a propriedade deles.(21)

Esta é condição e defesa de liberdade; é pressuposto e garantia da dignidade da pessoa. « A propriedade particular ou algum domínio sobre os bens exteriores conferema cada um a extensão absolutamente necessária à autonomia pessoal e familiar, e devem ser consideradas como um prolongamento da liberdade humana. Enfim, porque aumentam o estímulo no desempenho do trabalho e das responsabilidades, constituem uma das condições das liberdades civis ».(22)

Sem o reconhecimento do direito de propriedade particular mesmo sobre bens produtivos, como atestam a história e a experiência, chega-se à concentração do poder, à burocratização dos vários âmbitos de vida da sociedade, ao descontentamento social, a comprimir e sufocar « as fundamentais expressões da liberdade ».(23)

30. O direito à propriedade particular, segundo o Magistério da Igreja não é, porém, incondicionado mas, ao contrário, é caracterizado por vínculos bem precisos.

A propriedade particular, de facto, quaisquer que sejam as formas concretas das suas instituições e das suas normas jurídicas, é, na sua essência, um instrumento para a realização do princípio da destinação universal dos bens, portanto um meio e não um fim.(24)

O direito à propriedade particular, válido e necessário por si mesmo, deve ser circunscrito dentro dos limites de uma substancial função social da propriedade. Cada proprietário, por isso, deve ser constantemente sabedor da hipoteca social que pesa sobre a propriedade particular: « Por esta razão, usando aqueles bens, o homem que possui legitimamente as coisas materiais não as deve ter só como próprias dele, mas também como comuns, no sentido em que elas possam ser úteis não somente a ele mas também aos outros ».(25)

31. A função social directa e naturalmente inerente às coisas e à sua destinação, permite à Igreja afirmar no seu ensino social: « Aquele que se encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto às riquezas dos outros ».(26) O limite ao direito de propriedade particular é posto pelo direito de cada ser humano ao uso dos bens necessários para viver.

Esta doutrina, já elaborada por S. Tomás de Aquino,(27) ajuda na avaliação de algumas situações complexas de grande relevo ético-social, tais como a expulsão dos camponeses das terras que trabalharam, sem que tenha sido assegurado o seu direito de receber a parte dos bens necessários para viver, e os casos de ocupação de terras incultas por parte de camponeses que não são proprietários delas e vivem num estado de extrema indigência.

A condenação do latifúndio

32. A doutrina social da Igreja, com base no princípio da subordinação da propriedade particular à destinação universal dos bens, analisa as modalidades de exercício do direito de propriedade da terra como espaço cultivável e condena o latifúndio como intrinsecamente ilegítimo.

Assim é a grande propriedade de terra, muitas vezes mal cultivada, ou mesmo guardada em reserva sem ser cultivada por motivos especulativos, enquanto se deveria aumentar a produção agrícola para satisfazer a crescente procura de alimentos pela maior parte da população, desprovida de terras para cultivar ou com terras muito limitadas à sua disposição.

Para a doutrina social da Igreja, o latifúndio contrasta nitidamente com o princípio que « a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos », de tal modo que « ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supéfluo, quando a outros falta o necessário ».(28)

O latifúndio, de facto, nega a uma multidão de pessoas o direito de participar, com o seu trabalho, no processo produtivo e de satisfazer as necessidades próprias, da família, da comunidade e da nação de que fazem parte.(29)

Os privilégios assegurados pelo latifúndio são causa de lutas escandalosas e de situações de dependência e de opressão, tanto à escala nacional quanto internacional.

33. O ensino social da Igreja denuncia também as insuportáveis injustiças provocadas pelas formas de apropriação indevida da terra por obra de proprietários ou de empresas nacionais e internacionais, às vezes apoiadas por organismos do Estado, os quais, pisando todos os direitos adquiridos e, não raramente, até os títulos legais à posse do solo, despojam os pequenos agricultores e os povos indígenas das suas terras.

São formas de apropriação particularmente graves, porque, além de aumentar a desigualdade na distribuição dos bens da terra, conduzem, em geral, à destruição de uma parte destes mesmos bens, empobrecendo toda a humanidade. Elas determinam modos de exploração da terra que quebram equilíbrios entre o homem e o ambiente construídos durante séculos e provocam uma forte degradação ambiental.

Isto deve aparecer como o sinal da desobediência do homem ao mandamento de Deus de agir como guardião e sábio administrador da criação (cf. Gen 2,15; Sab 9,2-3). O preço desta desobediência pecaminosa é altíssimo. Com efeito, ela causa uma grave e vil forma de falta de solidariedade entre os seres humanos porque afecta os mais fracos e as gerações futuras.(30)

34. À condenação do latifúndio e da apropriação indevida da terra, contrários aos princípios da destinação universal dos bens, a doutrina social acrescenta a condenação das formas de exploração do trabalho, especialmente quando ele é remunerado com salários ou outras modalidades que são indignas do ser humano.

Com a injusta remuneração pelo trabalho realizado e com outras formas de exploração nega-se aos trabalhadores a possibilidade de percorrer « um meio concreto, pelo qual a grande maioria dos homens pode ter acesso àqueles bens que estão destinados ao uso comum, quer se trate dos bens da natureza, quer dos bens que são fruto da produção ».(31)

Reforma agrária: indicações de um percurso

Realizar uma reforma agrária efectiva, justa e eficiente

35. Acontece frequentemente que as políticas tendentes a promover um uso correcto do direito de propriedade particular da terra não servem para impedir que ela continue a ser exercida, em vastas áreas, como um direito absoluto, sem limites provenientes de correspondentes obrigações sociais.

Sobre este ponto, a doutrina social da Igreja é muito explícita e indica a reforma agrária como uma das mais urgentes, a ser empreendida sem demora: « Em muitas situações, portanto, são necessárias mudanças radicais e urgentes para restituir à agricultura — e aos homens dos campos — o seu justo valor como base de uma sã economia, no conjunto do desenvolvimento da comunidade social ».(32)

Particularmente dramático, a este propósito, o apelo que João Paulo II lançou em Oaxaca, no México, aos homens de governo e aos grandes proprietários rurais: « A vós, responsáveis dos povos, a vós, classe no poder, que às vezes mantendes improdutivas as terras e escondeis o pão às famílias a que ele falta, a consciência humana, a consciência dos povos, o grito dos pobres abandonados, e, sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja repetem comigo: não é justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações claramente injustas. É necessário pôr em prática medidas concretas, eficazes, a nível local, nacional e internacional segundo as amplas linhas traçadas pela encíclica Mater et magistra.

E é claro que quem mais deve colaborar para isto é quem tem mais poder ».(33)

36. A doutrina social da Igreja afirma, por várias vezes, que deve ser garantida a maior valorização possível das potencialidades produtivas agrícolas nos lugares onde uma percentagem relevante da população se dedica ao trabalho dos campos e dele depende. No caso dos terrenos não suficientemente cultivados, ela justifica, com uma conveniente indemnização aos proprietários,(34) a expropriação da terra para a entregar àqueles que dela são privados ou a possuam em medida muito limitada.(35)

Todavia, é oportuno sublinhar que, segundo a doutrina social, uma reforma agrária não se deve limitar só à distribuição dos títulos de propriedade entre os beneficiários.

A expropriação das terras e a sua redistribuição são somente um dos aspectos, e não o mais complexo, de uma justa e eficiente política de reforma agrária.(36)

Promover a difusão da propriedade particular

37. A doutrina social da Igreja vê na reforma agrária um instrumento adequado para difundir a propriedade particular da terra desde que os poderes públicos procedam segundo três directivas de acção distintas, mas complementares:

a) a nível jurídico, para que se façam leis adequadas para se manter e proteger a difusão efectiva da propriedade particular;(37)

b) a nível de políticas econômicas, para facilitar « uma mais larga difusão da propriedade particular de bens de consumo duráveis, da habitação, da pequena propriedade, dos instrumentos próprios da empresa artesanal e agro-familiar, das acções nas médias e nas grandes empresas »;(38)

c) a nível de políticas fiscais e tributárias, para assegurar a continuidade da propriedade dos bens no âmbito da família.(39)

Favorecer o desenvolvimento da empresa agro-familiar

38. Condenando quer o latifúndio, porque expressão de um uso socialmente irresponsável do direito de propriedade e porque grave obstáculo à mobilidade social, quer a propriedade estatal da terra, porque leva a uma despersonalização da sociedade civil, a doutrina social da Igreja, embora consciente de que « não é possível fixar a priori qual seja a estrutura mais conveniente à empresa agrícola »,(40) sugere que se valorize largamente a empresa familiar proprietária da terra que cultiva directamente.(41)

A empresa agrícola a que se faz referência utiliza prevalentemente na própria administração o trabalho familiar e pode-se integrar com o mercado do trabalho externo assumindo trabalho assalariado.

A dimensão administrativa de tal empresa deveria ser tal que consentisse a obtenção de rendimentos familiares adequados, a continuidade da família na empresa, o acesso ao mercado do crédito fundiário e a defesa do ambiente rural mesmo através duma utilização apropriada dos factores.

Graças à eficiência da sua gestão e à riqueza social que assim é produzida, uma tal empresa cria novas oportunidades de trabalho e de crescimento humano para todos.

Ela, de facto, pode oferecer um contributo altamente positivo não só ao desenvolvimento duma estrutura agrária eficiente, mas também à realização do próprio princípio da destinação universal dos bens.

Respeitar a propriedade comunitária dos povos indígenas

39. O Magistério social da Igreja não considera a propriedade individual como a única forma legítima de posse da terra. Tem em particular consideração também a propriedade comunitária, que caracteriza a estrutura social de numerosos povos indígenas.

Com efeito, esta forma de propriedade incide tão profundamente na vida econômica, cultural e política destes povos que constitui um elemento fundamental da sua sobrevivência e do seu bem-estar, oferecendo também um contributo não menos basilar à protecção dos recursos naturais.(42)

Todavia, a defesa e a valorização da propriedade comunitária não deve excluir a consciência do facto de que este tipo de propriedade está destinado a evoluir. Se se agisse de modo a garantir somente a sua simples conservação, correr-se-ia o risco de a ligar ao passado e, desta forma, de a destruir.(43)

Conduzir uma justa política do trabalho

40. A protecção dos direitos humanos que derivam do trabalho é outra fundamental directriz de acção que a doutrina social da Igreja propõe para garantir um correcto exercício do direito de propriedade particular da terra. Dadas as relações que o ligam à propriedade, o trabalho representa um meio de importância crucial para assegurar a destinação universal dos bens.

Daí o dever de os poderes públicos(44) intervirem para que estes direitos sejam respeitados e realizados, segundo três directivas essenciais:

a) promover as condições que garantam o direito ao trabalho;(45)

b) garantir o direito à justa remuneração do trabalho;(46)

c) defender e promover o direito dos trabalhadores a constituir associações, que tenham como fim a defesa dos seus direitos.(47) O direito de associação representa, de facto, a condição necessária para se atingir o equilíbrio nas relações de poder contratual entre os trabalhadores e os seus dadores de trabalho e para garantir, por isso, o desenvolvimento de uma correcta dialética entre as partes sociais.

Realizar um sistema de instrução capaz de produzir um efectivo crescimento cultural e profissional da população

41. O factor cada vez mais decisivo em vista do acesso aos bens da terra já não é, como no passado, a posse da terra, mas o patrimônio de conhecimentos que a pessoa humana sabe e pode acumular. Afirma João Paulo II, « Mas existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber ».(48)

Quanto mais o agricultor conhecer a capacidade produtiva da terra e dos outros factores de produção e as múltiplas modalidades com que possam ser satisfeitas as necessidades dos destinatários dos frutos do seu trabalho, tanto mais frutuoso se torna o seu trabalho, sobretudo como instrumento de realização pessoal, pelo qual ele exerce a sua inteligência e a sua liberdade.

É necessário e urgente, por isso, dar prioridade ao objectivo da realização de um sistema de instrução capaz de proporcionar, a vários níveis escolares, uma ampla bagagem de conhecimentos e de capacidades técnicas e científicas.

CAPÍTULO III

A REFORMA AGRÁRIA: UM INSTRUMENTO
DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL

A reforma agrária: um instrumento necessário ...

42. Uma estrutura agrícola caracterizada pela apropriação indébita e pela concentração da terra no latifúndio obsta gravemente ao desenvolvimento econômico de um País. A falta de crescimento da produção agrícola e do emprego é um efeito a curto prazo. A longo prazo, ela é causa de pobreza e de estragos que tendem a perpetuar-se, agravando-se.

De fronte a esta realidade, uma reforma agrícola, que assegure uma diversa repartição da terra, representa um importante objectivo sobre o qual centrar a atenção, porque se trata de uma intervenção necessária para o desenvolvimento harmônico da economia e da sociedade.

A qualidade e o sucesso dos programas de desenvolvimento trazem, de facto, substanciais benefícios pela mobilidade dos recursos internos de um País e pela sua distribuição entre os diversos sectores e grupos sociais. É este o objectivo de uma reforma agrária que garanta o acesso à terra, o seu uso eficiente e o aumento do número de empregos.

43. Uma reforma agrária deste tipo é cada vez mais vista como medida de política de desenvolvimento necessária e inadiável.

Uma agricultura em desenvolvimento aumenta o rendimento dos agricultores, faz aumentar a procura de bens e de serviços produzidos pela indústria e pelo terciário e reforça o poder de compra mesmo daqueles que, embora vivendo nas áreas rurais, não trabalham na agricultura.

Um efeito importante deste desenvolvimento é o refreamento do impulso migratório em direcção às cidades, da passagem de mão de obra para outros sectores e das repercussões sobre a urbanização e sobre o nível dos salários.

O aumento da produção agrícola permitiria garantir a segurança alimentar da população e promover o crescimento qualitativo e quantitativo dos produtos alimentares a preços acessíveis.

A experiência concreta demonstra, além disso, que o crescimento agrícola significa expansão da indústria e dos serviços e, portanto, desenvolvimento geral da economia.

Nota-se, enfim, que uma reforma agrária que dê origem a empresas familiares contribui sensivelmente para o fortalecimento da família, valorizando as capacidades e as responsabilidades dos seus membros.

44. Nos lugares onde subsistem condições iníquas e de pobreza, a reforma agrária representa não só um instrumento de justiça distributiva e de crescimento econômico, mas também um acto de grande sabedoria política.

Ela constitui a única resposta concretamente eficaz e possível, a resposta da lei ao problema da ocupação das terras. Esta última, na sua vária e complexa casuística, mesmo quando provocada por situações de extrema necessidade,(49) continua a ser um acto não conforme aos valores e às regras de uma convivência verdadeiramente civil. O clima de emotividade colectiva que gera pode facilmente levar a uma sucessão de actos e de realizações tais que se coloquem fora de qualquer controle. Os actos de instrumentalização que podem facilmente verificar-se têm bem pouco a ver com o problema da terra.

Manifestação, muitas vezes, de situações intoleráveis e deploráveis no plano moral, a ocupação das terras é um sinal alarmante que exige a actuação, a nível social e político, de soluções eficazes e justas. São, sobretudo, os Governos a ser interpelados, na sua vontade e determinação, a fim de fornecerem urgentemente estas soluções. O retardamento e adiamento da reforma agrária tiram toda a credibilidade às suas acções de denúncia e de repressão da ocupação das terras.

... mas também particularmente complexo e delicado

45. Todavia, os benefícios de uma tal reforma só podem ser conseguidos se forem correctamente implantados os seus programas. É essencial, para que haja sucesso, evitar o erro de julgar que as intervenções de reforma agrária se identifiquem e se esgotem com a expropriação das grandes propriedades rurais, a sua sucessiva subdivisão em unidades produtivas compatíveis com a capacidade de trabalho de uma família e, por fim, a distribuição da terra pelos beneficiários dos títulos de propriedade.

Um programa de reforma agrária deve certamente prever objectivos a curto prazo para obter resultados imediatos diante da gravidade dos problemas sociais, garantindo que o acesso à terra satisfaça plenamente esta exigência. A médio-longo prazo, se a reforma agrária se limitar a uma simples distribuição, o problema da luta contra a miséria e o problema do desenvolvimento não ficam todavia solucionados.

Para uma reforma agrária capaz de dar uma resposta concreta e durável aos graves problemas econômicos e sociais do mundo agrícola dos Países em via de desenvolvimento, o empenho em assegurar o acesso à terra constitui só a primeira parte do programa. Este deve-se desenvolver no tempo, prevendo intervenções oportunas para garantir o acesso seja aos factores e às infra-estruturas que tornam possível um contínuo melhoramento da produtividade da agricultura e da comercialização dos seus produtos, seja ao uso dos serviços sociais que melhorem a qualidade da vida e a capacidade de auto-promoção das pessoas, e, portanto, também o respeito pelas populações indígenas. Indispensável para o sucesso da reforma agrária é, enfim, a plena coerência com ela das políticas nacionais e a dos organismos internacionais.

Uma adequada oferta de tecnologias apropriadas e de infra-estruturas rurais

46. A investigação é uma componente essencial de uma reforma agrária verdadeiramente efectiva e eficaz, porque permite conseguir três objectivos essenciais: a oferta de tecnologias apropriadas, o crescimento da produção e a protecção do ambiente. É possível, hoje, eliminar o contraste entre o emprego de tecnologias adaptadas às empresas, a exigência de estas últimas intensificarem a produção agrícola e a necessidade de conservar os recursos naturais. É actualmente riquíssima a série de casos concretos a demonstrarem que o aumento de produtividade da terra e do trabalho realizado com o emprego de tecnologias relativamente simples, mas inovativas, é geralmente, o mais eficiente e eficaz, mesmo sob o aspecto da sua compatibilidade com o ambiente.

Estas mesmas experiências atestam que a eficiência e a compatibilidade estão ligadas de modo bastante estreito com inovações no trabalho e no uso do solo, em geral fortemente condicionadas pelas características do ambiente físico e econômico local.

As actividades de investigação e de experimentação tornam possível individuar inovações a adoptar, caso por caso.

47. A prestação de um serviço de assistência técnica não é menos essencial para uma efectiva reforma. A assistência técnica representa o necessário complemento das actividades de investigação e experimentação, porque os seus resultados podem ser introduzidos na prática corrente somente se os produtores agrícolas forem informados da sua existência e convencidos da sua eficácia.

A actividade de informação e educação torna-se, por isso, necessária e deve ser constante para adequar o nível dos conhecimentos profissionais dos agricultores às exigências da reforma agrária.

O serviço de assistência técnica é indispensável, sobretudo, para educar os agricultores a afrontarem o mercado de forma associada, a única capaz de lhes conferir um efectivo poder de mercado e de orientar oportunamente as escolhas produtivas.

48. É necessário, além disso, que os programas de reforma agrária prevejam os recursos para o desenvolvimento das infra-estruturas rurais, que representam uma terceira área de intervenção, decisiva para o sucesso da reforma.

Uma agricultura em desenvolvimento leva consigo um contínuo aumento da procura de energia, de estradas, de telecomunicações, de água para a irrigação. A oferta destes serviços deve ser adequada à procura.

Para este fim, além de se prever o fornecimento das infra-estruturas, é preciso preocupar-se com a sua correcta gestão. Especialmente no caso da água para a irrigação, põe-se frequentemente o problema da re-orientação da sua posse e a adopção de mecanismos que assegurem uma apropriada colocação dos recursos de modo a evitar o seu mau uso.

A remoção dos obstáculos para o acesso ao crédito

49. O acesso concreto ao crédito legal é outro problema que os programas de uma reforma agrária devem enfrentar e resolver. Àqueles que receberam as terras deve ser garantida a possibilidade de dispor dos modernos factores de produção a preços razoáveis.

Os beneficiários da reforma, em geral, não possuem recursos suficientes para a aquisição de tais factores e, por isso, devem recorrer ao crédito, mas o alto custo dos empréstimos para os pequenos clientes impede os Institutos de crédito de os conceder. Aos beneficiários apresenta-se, portanto, a única alternativa do recurso ao mercado informal do crédito, com os custos e os riscos que isso implica. Para remediar a estes riscos, devem ser encorajadas as iniciativas tendentes a promover a constituição de bancos cooperativos locais.

Os programas duma reforma agrária incisiva devem prever o apoio da procura de crédito pelas novas empresas nascidas da reforma. Devem ser previstas intervenções aptas a favorecer a oferta de formas complementares de garantia e a reduzir os custos das operações de crédito.

Às várias formas de associação das empresas nascidas da reforma, que têm o fim de administrar em comum os serviços produtivos, de aquirir colectivamente os factores de produção, de comercializar unitariamente os produtos, o crédito deve ser facilitado e encorajado.

Os investimentos em serviços e infra-estruturas públicos

50. Contemporaneamente à realização de serviços e de infra-estruturas de interesse directo para a produção agrícola, os programas de reforma agrária devem prever significativos investimentos na saúde, na instrução, nos transportes públicos, no abastecimento de água potável.

Nas áreas rurais dos Países pobres, estes serviços e infra-estruturas sociais apresentam profundas carências, em termos quantitativos e qualitativos. As suas possibilidades de desenvolvimento são bastante limitadas pela insuficiente capacidade da população destas áreas de influenciar as opções políticas e pelo facto de que uma quota relevante dos custos deveria pesar, directa ou indirectamente, isto é, através do instrumento fiscal, sobre a propriedade rural.

Estes serviços, fundamentais num sistema de vida moderno, são, por outro lado, uma componente indispensável e um factor de desenvolvimento do bem-estar. Eles representam, por isso, um factor-chave do desenvolvimento sustentável.

A sua utilidade não se limita aos agricultores e seus familiares, mas beneficia toda a população, criando as condições necessárias para uma diferenciação das actividades produtivas, por um crescimento do rendimento geral produzido localmente e por uma consequente contenção do fenómeno do despovoamento.

A presença adequada destes serviços é, portanto, uma condição necessária para a luta contra a pobreza das áreas rurais e para limitar os custos econômicos e sociais da urbanização. Através da reforma agrária deve-se, portanto, realizar todos os esforços para aumentar nos campos a acessibilidade, a disponibilidade, a aceitabilidade e a conveniência dos serviços públicos e das infra-estruturas de utilidade pública.

Isto vale em particular para a saúde: o acesso às estruturas sanitárias de base e aos hospitais, uma vasta educação sanitária e a disponibilidade dos remédios simples e econômicos são de extrema importância para reduzir a mortalidade e o índice de doenças.

51. A propósito de serviços, deve-se reservar a máxima prioridade às intervenções tendentes a garantir, por igual aos homens e às mulheres, o acesso à escola elementar e a extensão da escolarização até aos níveis secundário e superior.

Nestas condições, de facto, a instrução e a formação profissional não só oferecem a cada indivíduo os meios para poder desenvolver o máximo possível as suas próprias potencialidades, mas tornam-se também os factores determinantes da mudança de atitudes e comportamentos, necessária para poder enfrentar, sem custos excessivos, a complexidade do mundo de hoje. Poder-se-ia superar assim a ideia que leva a considerar a instrução como uma despesa de simples consumo e não como um investimento social.

Uma particular atenção ao papel da mulher

52. As políticas tendentes a favorecer o acesso às modernas tecnologias e aos serviços públicos devem prestar uma atenção particular à posição crucial que a mulher ocupa na produção agrícola e na economia alimentar dos Países em via de desenvolvimento.

Nestes Países, embora com sensíveis diferenças de lugar para lugar, as mulheres fornecem mais da metade do trabalho empregado na agricultura; além disso, é sobre elas que recai, geralmente, a plena responsabilidade da produção dos alimentos para o sustento da família.(50)

Não obstante isto, acontece que estejam bastante marginalizadas por graves formas de injustiça econômica e social. Os próprios programas de reforma agrária consideram as mulheres pelo trabalho doméstico que desenpenham, e não como sujeitos de actividade produtiva. As leis privilegiam o homem ao conferir-lhe o direito de propriedade da terra. O sistema educativo tende a antepor a formação dos rapazes à das moças.

Considerando esta realidade, é essencial para o sucesso dos programas de reforma agrária a preocupação de garantir à mulher um direito efectivo à terra, uma atenção concreta às suas exigências por parte dos serviços de assistência técnica, uma maior e melhor educação escolar, um mais fácil acesso ao crédito, a fim de melhorar a qualidade do seu trabalho, de reduzir a sua vulnerabilidade às mudanças na tecnologia, na economia e na sociedade, e de aumentar as ocasiões alternativas de ocupação.(51)

Um apoio efectivo à cooperação

53. Nos programas de reforma agrária deve-se prestar grande atenção à função decisiva desempenhada pela cooperação no apoio ao início e desenvolvimento das empresas agrícolas originadas pela re-distribuição da terra.

Estas empresas têm de enfrentar, muitas vezes em relação ao mercado, problemas complexos. Por causa da grande multidão de pessoas que estão em condições de poder aspirar à atribuição da terra, na grandíssima maioria dos casos a dimensão das empresas não permite um emprego profícuo de algumas tecnologias, tais como, por exemplo, as tecnologias necessárias para aliviar o trabalho dos campos. É difícil para estas empresas poder dispor dos principais factores de produção, dos quais muitas vezes não existe um mercado local, ou então, quando há uma sua oferta, têm preços particularmente elevados. Graves são, sobretudo, as dificuldades que tais empresas encontram na comercialização dos seus produtos. Na maior parte dos casos a comercialização é controlada por poucos comerciantes locais ou não é possível porque, como acontece com os produtos novos, especialmente se destinados a serem transformados, não existe localmente uma procura para eles.

54. Numa tal realidade, a cooperação representa um instrumento de solidariedade capaz de oferecer soluções eficazes. Nas suas várias formas — cooperativas de serviço, de provisão, de transformação, de comercialização — a cooperação permite realizar, conforme as necessidades, uma mais completa utilização das máquinas, uma eficaz concentração da procura de factores de produção e da oferta de produtos. Ela torna-se, por isso, fonte de economia de escala e de formas de poder de mercado que conferem uma importante vantagem competitiva às empresas associadas e pode conduzir à abertura de novos mercados para os seus produtos.

A cooperação constitui um instrumento precioso para permitir às empresas, particulares ou cooperativas, nascidas da reforma, a mudança da composição da sua produção e, particularmente, a produção de produtos para a exportação sem desvantagens para a economia local.

É muito necessário, além disso, prever, no âmbito de uma reforma agrária, a promoção e o apoio à construção de bancos locais cooperativos que se proponham a concessão de empréstimos às famílias de baixos rendimentos e às mulheres, para favorecer a prática da agricultura, as actividades artesanais e também o consumo. Uma rica experiência demonstra que estes micro-bancos podem representar um instrumento eficaz para o fortalecimento das novas empresas e para a luta contra a pobreza.

O respeito pelos direitos dos povos indígenas

55. A reforma agrária não concorre apenas para a solução do problema do latifúndio. Ela é de grande valor também para as políticas orientadas a reconhecer e a fazer respeitar os direitos dos povos indígenas.

Por causa das estreitíssimas relações existentes entre a terra e os modelos de cultura, de desenvolvimento e de espiritualidade destes povos, a reforma agrária representa uma componente determinante do projecto sistemático e coordenado de acções que os governos devem desenvolver para proteger os direitos e para garantir o respeito pela integridade das populações indígenas.

Através duma reforma agrária devem-se especificar as modalidades para enfrentar, de forma justa e racional, o problema da restituição aos povos indígenas das terras que eles tradicionalmente ocupavam, sobretudo as que lhes foram subtraídas, mesmo em tempos recentíssimos, com várias formas de violência ou de discriminação. Neste caso, a reforma agrária deve indicar os critérios para reconhecer as terras que eles ocupavam e as formas da sua re-integração no uso destas terras, garantindo uma efectiva protecção dos seus direitos de propriedade e de posse.

A reforma deve-lhes oferecer, com a possibilidade de aceder aos serviços produtivos e sociais, os meios necessários para promover o desenvolvimento das suas terras e para beneficiar de um tratamento equivalente ao que é dado aos outros sectores da população.

Em síntese, a reforma agrária deve ajudar as comunidade indígenas a proteger e a reconstruir os recursos naturais e os eco-sistemas de que dependem a sua sobrevivência e o seu bem-estar; a manter e desenvolver a sua identidade, a sua cultura e os seus interesses; a apoiar as suas aspirações pela justiça social e a assegurar um ambiente que permita a participação activa na vida social, econômica e política do País.

56. Para realizar o conjunto de tais objectivos, os programas de reforma agrária devem respeitar duas condições.

a) Dever-se-á realizar, de forma adequada, o delicado e necessário equilíbrio entre a exigência de conservar a propriedade comum e a de privatizar a terra. Os sistemas tradicionais de posse da terra, fudamentados sobre a propriedade comum, ou seja, sobre uma forma de propriedade que pouco se presta ao emprego dos modernos factores de produção e às inovações tecnológicas, manifestam a tendência de se transformarem em propriedade particular à medida que a agricultura se desenvolve. Razões bem fundamentadas levam a prever, mesmo no caso dos povos indígenas, o desenvolvimento de uma política de atribuição individual da propriedade da terra.(52)

b) Os programas de reforma devem ser definidos e adoptados com a participação e a cooperação das comunidades interessadas. A reforma agrária deve garantir às comunidades indígenas, por um lado, usufruir dos serviços produtivos e sociais que elas julgarem conformes à sua organização social e à sua visão dos problemas ambientais, e, por outro lado, deve orientar para outras direcções os factores de carácter econômico e social que possam ser causa de desvantagens.

O empenho institucional do Estado

57. O empenho requerido ao Estado é de grande relevo porque implica a modificação de organismos, institutos e normas que estão muitas vezes na base da organização política, econômica e social. Na maior parte dos casos, este empenho coincide com o desenvolvimento de quatro principais directivas de acção a nível institucional:

a) o formação e a modernização do quadro jurídico que regula o direito de propriedade, a posse e o uso da terra, com uma atenção particular em dar apoio e estabilidade à família enquanto sujeito de direitos e de deveres;

b) a elaboração de políticas e de leis que protejam os direitos fundamentais das pessoas e que garantam, por isso, o direito dos trabalhadores de poder negociar livremente as suas condições de trabalho, seja a nível individual seja colectivo;

c) a actuação dum processo de descentralização administrativa tal que permita e promova a participação activa das comunidades locais no planejamento, realização, gestão financeira, controle e avaliação dos programas concernentes à população, no desenvolvimento do território que lhes diz respeito;

d) a adopção de políticas macro-econômicas que respeitem o princípio de que os direitos dos agricultores a gozar dos frutos do seu trabalho não são menos importantes do que os direitos dos consumidores, especialmente no que diz respeito aos problemas de natureza fiscal, monetária e aos problemas derivados das trocas comerciais com o exterior. A falta de respeito pelos direitos econômicos dos agricultores tem inevitavelmente efeitos perversos sobre os mecanismos de mercado e sobre toda a economia.

A responsabilidade das organizações internacionais

58. A reforma agrária, enquanto instrumento duma agricultura em desenvolvimento, envolve directamente a competência e a responsabilidade de numerosas organizações internacionais. Estas organizações, ao determinarem os modelos de desenvolvimento que tencionam promover, devem preocupar-se com o facto de que tais modelos sejam adaptados às necessidades e aos problemas de cada país.

Para este fim é importante evitar que a preocupação pela redução da dívida internacional, que se traduz frequentemente pelo incentivo a uma agricultura prevalentemente orientada a produções para a exportação, conduza os Países em via de desenvolvimento a adoptar políticas que determinam graves deteriorizações dos serviços públicos, especialmente da instrução, e uma acumulação de problemas sociais.

59. A reforma agrária exige que as organizações chamadas a promover o comércio internacional prestem uma atenção particular às relações existentes entre políticas comerciais, distribuição dos rendimentos e satisfação das necessidades elementares das famílias.

O desenvolvimento das trocas comerciais costuma ter um impacto positivo no crescimento econômico de um País: aumenta a dimensão do mercado, estimula a uma maior eficiência e produz novos conhecimentos.

Em determinadas condições, todavia, tal desenvolvimento pode também ter efeitos pejorativos das condições de vida daqueles que são economicamente débeis.

Isto acontece, por exemplo, se o aumento da produção agrícola para exportar leva a reduzir a oferta de alimentos para o consumo interno e a aumentar os preços. Tem um efeito pejorativo se, como consequência do facto de que os produtos exportados requerem menos trabalho que os produtos consumidos localmente, é prejudicado o emprego.

Além disso, pode acontecer que os pequenos agricultores sejam duplamente penalizados. Em primeiro lugar, porque, devido aos obstáculos que encontram ao querer ter acesso aos factores necessários para o cultivo dos produtos destinados à exportação, não podem beneficiar das vantagens dela provenientes. Em segundo lugar, porque o desenvolvimento das exportações provoca um aumento de certos custos da produção na agricultura e do preço da terra, e tais aumentos tornam menos conveniente a produção de bens tradicionais.

Tal complexo de efeitos, todavia, não é devido exclusivamente à lógica das trocas comerciais, do que é apenas uma consequência indirecta. É, na realidade, também a resultante directa da concentração do capital fundiário em poucas mãos, da difusa desigualdade social e da insuficiência dos serviços de assistência técnico-administrativa em favor dos pequenos produtores. É evidente que esta realidade, pelas suas consequências negativas no plano da luta contra a pobreza e a fome, empenha as organizações internacionais a tomá-la em grande consideração no momento em que definem as suas estratégias de intervenção.

CONCLUSÃO

60. A Igreja está-se preparando para o novo Milênio através duma experiência de conversão espiritual que encontra o seu centro de inspiração no Grande Jubileu do Ano 2000. Este extraordinário acontecimento eclesial deve impelir todos os cristãos a um sério exame de consciência sobre o próprio testemunho no presente e também a um reconhecimento mais vivo dos pecados do passado, daquele « espectáculo de modos de pensar e de agir que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo ».(53)

Enfrentando o tema, emblemático na tradição bíblica do Jubileu, da redistribuição equitativa da terra, o Conselho Pontifício Justiça e Paz propõe-se fazer voltar o olhar de todos para um dos cenários mais sombrios e dolorosos da co-responsabilidade, mesmo de tantos cristãos, em graves formas de injustiça e de marginalização social e de consentimento de muitos deles diante da violação dos direitos humanos fundamentais.(54)

61. O consentimento ao mal, que é um sinal preocupante de degeneração espiritual e moral não só para os cristãos, está produzindo, em numerosos contextos, um desconcertante vazio cultural e político, que torna incapazes de mudar e renovar. Enquanto as relações sociais não mudarem e a justiça e solidariedade permanecerem ausentes e invisíveis, as portas do futuro fecham-se e o destino de tantos povos fica aprisionado num presente cada vez mais incerto e precário.

O espírito do Jubileu nos impulsione a dizer: « Basta! » aos muitos pecados individuais e sociais que provocam situações de pobreza e de injustiça dramáticas e intoleráveis! Chamando a atenção para o significado peculiar e essencial que a justiça tem, na mensagem bíblica, de protecção aos débeis e ao seu direito, enquanto filhos de Deus, às riquezas da criação, desejamos vivamente que o ano jubilar, como na experiência bíblica, sirva também hoje para o restabelecimento da justiça social, através duma distribuição da propriedade da terra orientada por um espírito de solidariedade nas relações sociais.

62. Dá-nos força e ilumina o nosso difícil caminho a luz de Cristo, imagem do Deus invisível que procura a pessoa humana, sua particular propriedade, impelido pelo seu coração de Pai.(55)

O conhecimento aprofundado e a prática coerente das directivas da Igreja ajudarão concretamente toda a humanidade a criar as condições para gozar da salvação a que é chamada pela graça de Deus e a dirigir a Ele uma grande oração de acção de graças e de louvor.

Invocamos a intercessão de Maria, Mãe do Redentor, Estrela que guia com segurança os passos, ao encontro do Senhor, de todos os cristãos que abandonam os caminhos errados, as vias do mal, e se tornam dóceis à acção do Espírito, para participar na vida íntima de Deus e chamá-lo: « Abba, Pai! » (Gal 4,6).

Roma, 23 de Novembro de 1997
Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo

Roger Card. Etchegaray
Presidente do Pontifício Conselho « Justiça e Paz »

S.E. Mons. François-Xavier Nguyen Van Thuan
Vice-Presidente do Pontifício Conselho « Justiça e Paz »

Diarmuid Martin
Secretário do Pontifício Conselho « Justiça e Paz »


(1) João Paulo II, Carta Apost. Tertio millennio adveniente, 1994, n. 51.

(2) Por « latifúndio » entende-se uma grande propriedade rural, cujos recursos são geralmente insuficientemente utilizados e pertencente habitualmente a um proprietário sistematicamente ausente, que emprega trabalho assalariado e utiliza tecnologias agrícolas atrazadas.

(3) Um quadro claro desta preocupação emerge dos numerosos documentos que o Episcopado Católico, sobretudo da América Latina, tem dedicado aos problemas da agricultura nestes últimos anos. Veja-se, por exemplo, além dos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano realizadas nas cidades de Rio de Janeiro (1955), Medellin, La Iglesia en la actual transformación de América Latina a la luz del Concilio (1968), Puebla, La evangelización en el presente y en el futuro de América Latina (1979) e Santo Domingo, Nueva evangelización, promoción humana, cultura cristiana (1992): Conferencia Episcopal de Paraguay, La tierra, don de Dios para todos, Asunción, 12 de Junho de 1983; Obispos del Sur Andino, La tierra, don de Dios - Derecho del pueblo, 30 de Março de 1986; Conferencia Episcopal de Guatemala, El clamor por la tierra, Guatemala de la Asunción, 29 de Fevereiro de 1988; Vicariato Apostólico de Darien, Panama, Tierra de todos, tierra de paz, 8 de Dezembro de 1988; Conferencia Episcopal de Costa Rica, Madre Tierra. Carta pastoral sobre la situación de los campesinos y indígenas, San José, 2 de Agosto de 1994; Conferencia Episcopal de Honduras, Mensaje sobre algunos temas de interés nacional, Tegucigalpa, 28 de Agosto de 1995. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e, de modo particular, a Comissão Pastoral da Terra pronunciaram-se diversas vezes sobre o tema da reforma agrária: Manifesto pela terra e pela vida a CPT e a reforma agrária hoje, Goiânia, 1 de Agosto de 1995; Pro-Memória da Presidência e Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB sobre as consequências do Decreto n. 1.775 de 8 de Janeiro de 1996, Brasília, 29 de Fevereiro de 1996; Exigências Cristãs para a paz social, Itaici, 24 de Abril de 1996.

(4) Esta forma de organização da agricultura está em declínio apenas nos países onde se realizaram reformas agrárias.

(5) Entre estas distorções, merecem ser recordadas:

a) uma distribuição da terra realizada muitas vezes com métodos arbitrários e exclusivamente em favor de membros dos grupos dominantes e das classes abastadas;

b) a constituição de reservas para as populações indígenas, muitas vezes em áreas pouco férteis ou situadas longe do mercado ou pobres em infra-estruturas, fora das quais não era permitido adquirir e nem de qualquer maneira ocupar terra a nenhum membro destas populações;

c) a adopção de sistemas fiscais diferenciados em benefício dos grandes proprietários fundiários e a imposição de taxas discriminatórias sobre os produtos dos camponeses indígenas;

d) a constituição de organizações de mercado e a adopção de sistemas de preços tendentes a privilegiar os produtos das grandes propriedades, chegando, em alguns casos, a proibir a aquisição dos produtos dos pequenos agricultores;

e) a imposição de barreiras à importação, para proteger da competição internacional os produtos das grandes propriedades rurais;

f) a oferta de crédito, de serviços e de subsídios públicos dos quais, concretamente, podia fruir apenas a grande propriedade fundiária.

(6) Por « pequeno agricultor » entende-se o sujeito econômico que opera nas margens da produção agrícola e está envolvido no processo de pulverização da terra. Tal processo é projecção especular e consequência da concentração e apropriação indevida desse bem.

(7) Cf. FAO, Landlessness: A Growing Problem, « Economic and Social Development Series », Rome 1984.

(8) Sobre os diversos factores do insucesso, veja-se: FAO, Lessons from the Green Revolution -Towards a New Green Revolution, Rome 1995, p. 8.

(9) Para uma análise destas políticas que apoiam exportações agrícolas e grandes empresas e das suas consequências sobre a pobreza, veja-se: World Bank, World Development Report 1990, Washington D.C., p. 58-60; World Bank, World Development Report 1991, Washington D.C., p. 57.

(10) Sobre esta problemática, veja-se: Conseil Pontifical Justice et Paix, Les peuples autochtones dans l'enseignement de Jean-Paul II, Cité du Vatican 1993, p. 22.

(11) Sobre a estreita correlação que existe na maior parte das economias agrárias tradicionais entre propriedade da terra, acesso ao crédito e distribuição da riqueza, veja-se: World Bank, World Development Report 1991, cit., pp. 65-66.

(12) Há uma substancial unanimidade de consensos acerca do impacto fortemente negativo que as carências dos serviços de formação profissional agrícola de muitos Países em via de desenvolvimento têm sobre a pobreza do mundo agrícola. Veja-se, entre outros: World Bank, World Development Report 1991, cit., pp. 73-75.

(13) Cf. UNDP, World Human Development Report 1990, New York.

(14) Cf. João Paulo II, Discurso à Cúpula mundial sobre a Alimentação, organizada pela FAO, nos dias 13-17 de Novembro de 1996, L'Osservatore Romano em português, 23 de Novembro de 1996; FAO, Rome Declaration on World Food Security and World Food Summit Plan of Action, Rome 1996; Pont. Cons. Cor Unum, A fome no mundo. Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário, Cidade do Vaticano 1996; FAO, Dimensions of Need: An Atlas of Food and Agriculture, Rome 1995, p. 16; World Bank, Poverty and Hunger, Washington D.C. 1986.

(15) Sobre as relações entre concentração da propriedade fundiária, pobreza dos campos e degradação do ambiente, cf. World Bank, World Development Report 1990, cit., pp. 71-73; World Bank, World Development Report 1992, Washington D.C., pp. 134-138, 149-153; FAO, Sustainable Development and the Environment, FAO Policies and Actions, Rome 1992.

(16) Emblemático a este propósito é o episódio da vinha de Nabot (cf. 1 Re 21).

(17) Cf. João Paulo II, Tertio millennio adveniente, cit., nn. 12-13.

(18) Conc. Ecum. Vat. II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 1965, n. 69.

(19) Cf. João XXIII, Carta Enc. Mater et magistra, 1961, n. 69. Na Radio-mensagem de Pentecostes, 1941, Pio XII, tratando do direito aos bens materiais, afirmava que « Cada homem, como ser vivo dotado de razão, tem de facto, por natureza, o direito fundamental de usar os bens materiais da terra, sendo embora deixado à vontade humana e às formas jurídicas dos povos regular mais particularmente a sua actuação prática. Tal direito individual não pode ser de nenhum modo suprimido, nem mesmo por outros direitos certos e pacíficos sobre os bens materiais » (n. 13).

(20) Direito natural porque, segundo o Magistério da Igreja, ele deriva da natureza peculiar do trabalho humano e da « prioridade ontológica e finalística de cada ser humano perante a sociedade », João XXIII, Mater et magistra, cit., n. 96.

(21) E para poder fazer com que frutifiquem tais recursos, mediante o seu trabalho, o homem apossa-se de pequenas porções das variadas riquezas da natureza: do subsolo, do mar, da terra e do espaço. De tudo isso ele se apropria, para aí assentar o seu ?banco' de trabalho. E apropria-se disso mediante o trabalho e para poder ulteriormente ter trabalho », João Paulo II, Carta Enc. Laborem exercens, 1991, n. 12.

(22) Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 71b.

(23) João XXIII, Mater et magistra, cit., n. 96.

(24) « A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável. Pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito do uso comum, subordinado à destinação universal dos bens », João Paulo II, Laborem exercens, cit., n. 14.

(25) Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 69a.

(26) Ibid.

(27) Cf. Summa Theologiae, II-II, q. 66 art. 7.

(28) Paulo VI, Carta Enc. Populorum progressio, 1967, n. 23.

(29) A posse dos meios de produção no campo agrícola « justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação e da rotura da solidariedade no mundo do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens », João Paulo II, Carta Enc. Centesimus annus, 1991, n. 43.

(30) A degradação do ambiente material conduz, substancialmente, à degradação do « quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim para o dia de amanhã um ambiente global que poderá tornar-se-lhe insuportável. Problema social de envergadura, este, que diz respeito à inteira família humana », Paulo VI, Carta Apost. Octogesima adveniens, 1971, n. 21. Pelo contrário, o homem deve trabalhar sabendo ser « herdeiro do trabalho de gerações e, ao mesmo tempo, co-artífice do futuro daqueles que virão depois dele no suceder-se da história », João Paulo II, Laborem exercens, cit., n. 16.

(31) João Paulo II, Laborem exercens, cit., n. 19.

(32) Ibid., n. 21.

(33) João Paulo II, Discurso aos Índios do México, Cuilapan - Oaxaca, 29 de Janeiro de 1979. Sobre o tema da reforma agrária, o Santo Padre João Paulo II interveio em diversas ocasiões: no Recife, no Brasil, a 7 de Julho de 1980; em Cuzco, no Perú, a 3 de Fevereiro de 1985; em Iquitos, no Perú, a 5 de Fevereiro de 1985; em Lucutanga, no Equador, a 31 de Janeiro de 1985; a Quito, no Equador, a 30 de Janeiro de 1985; no Discurso aos Bispos Brasileiros em visita « ad limina », a 24 de Março de 1990; em Aterro do Bacanga - São Luís, no Brasil, a 14 de Outubro de 1991; no Discurso aos Bispos Brasileiros em visita « ad limina », a 21 de Março de 1995.

(34) Cf. Pio XII, Radio-mensagem, 1 de Setembro de 1944, n. 13; Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 71f.

(35) O bem comum exige por vezes a expropriação se, certos domínios formam obstáculo à prosperidade colectiva, pelo facto da sua extensão, da sua exploração fraca ou nula, da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável causado aos interesses do país », Paulo VI, Populorum progressio, cit., n. 24. « As reformas são necessárias para ... a distribuição das terras insuficientemente cultivadas com aqueles que consigam torná-las mais produtivas », Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 71f.

(36) Cf. João XXIII, Mater et magistra, cit., nn. 110-157.

(37) « Importantíssimo é isto: os governos devem por meio de leis sábias assegurar a propriedade particular », Leão XIII, Carta Enc. Rerum novarum, 1891, n. 30.

(38) João XXIII, Mater et magistra, cit., n. 102.

(39) A autoridade pública não pode usar arbitrariamente o seu direito de determinar os deveres da propriedade violando o direito natural de propriedade particular e de transmissão hereditária dos próprios bens e não pode « esgotar a propriedade particular com excessivas contribuições », Pio XI, Carta Enc. Quadragesimo anno, 1931, n. 49.

(40) João XXIII, Mater et magistra, cit., n. 128.

(41) « ...quando se tem do homem e da família um conceito humano e cristão, não se pode deixar de considerar ideal a empresa cuja configuração e funcionamento se assemelha à duma comunidade de pessoas, nas relações internas e nas estruturas correspondentes aos critérios de justiça e ao espírito já indicados, e, mais ainda, a empresa de dimensões familiares; nem é possível deixar de preocupar-se por que uma e outra cheguem a ser realidade de acordo com as condições ambientais », ibid., n. 128.

(42) « Nas sociedades economicamente menos desenvolvidas não raro a destinação comum dos bens é em parte satisfeita pelos costumes e tradições próprias da comunidade, fornecendo-se deste modo a cada membro os bens absolutamente necessários », Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 69b.

(43) Cf. ibid., n. 69.

(44) « É o Estado, efectivamente, que deve conduzir uma justa política do trabalho », João Paulo II, Laborem exercens, cit., n. 17.

(45) É dever do Estado « actuar contra o desemprego, que é sempre um mal e, quando chega a atingir determinadas dimensões, pode tornar-se uma verdadeira calamidade social », ibid., n. 18. Para tornar possível a todos o emprego, o Estado deve promover uma correcta organização do trabalho mediante « uma coordenação justa e racional, no quadro da qual deve ficar garantida a iniciativa das pessoas, dos grupos livres, dos centros e dos complexos de trabalho locais, tendo em conta aquilo que foi dito acima a respeito do carácter subjectivo do trabalho humano », ibid., n. 18.

(46) A remuneração do trabalho é justa se, além do salário, o trabalhador pode beneficiar das « subvenções sociais que têm como finalidade assegurar a vida e a saúde dos trabalhadores e a das suas famílias », ibid., n. 19.

(47) « A experiência histórica ensina que... a união dos homens para se assegurarem os direitos que lhes cabem, nascida das exigências do trabalho, permanece um factor construtivo de ordem social e de solidariedade, factor do qual não é possível prescindir », ibid., n. 20.

(48) João Paulo II, Centesimus annus, cit., n. 32.

(49) Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, cit., n. 69a.

(50) Acerca da importância da posição que, nos Países em via de desenvolvimento, a mulher ocupa nos processos de produção e transformação dos produtos agrícolas, veja-se: FAO, Socio-Political and Economic Environment for Food Security, Rome 1996, par. 4.3.

(51) Cf. João Paulo II, Carta às mulheres, 29 de Junho de 1995.

(52) Não devem ser sub-estimadas, todavia, as vantagens da propriedade comum, especialmente no caso da presença duma população relativamente numerosa em relação aos recursos da terra. Neste caso, a propriedade comum garante a todos os membros da comunidade, mesmo aos mais pobres, o ter acesso à terra; motiva os camponeses a conservarem a capacidade produtiva do solo que cultivam; não permite, como acontece frequentemente no caso da propriedade particular, que os pequenos agricultores sejam obrigados a vender as suas minúsculas propriedades. Por outras palavras, a propriedade comum permite evitar a pobreza extrema e o constituir-se massas de pessoas sem-terra que frequentemente caracterizam as zonas dominadas pelo latifúndio.

(53) João Paulo II, Tertio millennio adveniente, cit., n. 33.

(54) Cf. ibid., n. 36.

(55) Cf. ibid., n. 7.

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