The Holy See
back up
Search
riga

PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ"

APRESENTAÇÃO À IMPRENSA DA MENSAGEM
DE JOÃO PAULO II PARA O DIA MUNDIAL DA PAZ 2003 

 

D. Renato Raffaele MARTINO
Presidente do Pontifício Conselho "Justiça e Paz"


Premissa


Considero uma graça especial do Senhor, começar o meu mandato de Presidente do Pontifício Conselho "Justiça e Paz", apresentando a Mensagem do Santo Padre João Paulo II para o próximo Dia Mundial da Paz, que é totalmente dedicada a comemorar e a chamar de novo a atenção de todos para o ensinamento da histórica Encíclica Pacem in terris, do Beato João XXIII. Com efeito, a Mensagem tem o seguinte título:  "Pacem in terris:  um compromisso permanente", e deseja recordar o 40º aniversário da Encíclica, que foi promulgada no dia 11 de Abril de 1963, precisamente na Quinta-Feira Santa desse ano, durante a Semana em que a Igreja celebra o Mistério da Crucifixão, da Morte e da Ressurreição do seu Senhor, Mistério este que é uma inesgotável fonte de salvação para todo o homem, de autêntica libertação para cada homem e de verdadeira paz para a família dos homens.

O contexto histórico da Pacem in terris

A Mensagem do Santo Padre começa com duas referências históricas específicas que, de certa forma, oferecem o contexto em que se inseriu a Pacem in terris (cf. n. 2). Depois de ter constatado que "o mundo ao qual João XXIII se dirigia se encontrava em profundo estado de desordem", o Santo Padre recorda que, somente dois anos antes, em 1961, tinha sido erigido o "muro de Berlim", que não apenas dividiu a cidade de Berlim, mas representou para a humanidade a expressão de duas concepções diferentes de compreensão e de construção da cidade terrestre:  "Quer como visão do mundo, quer como concreto delineamento de vida, aquele muro atravessou a humanidade no seu conjunto e penetrou no coração e na mente das pessoas, criando divisões que pareciam destinadas a durar para sempre" (n. 2).

O muro de Berlim ensina-nos que as divisões e as rivalidades levam à segregação, à discriminação, ao desprezo dos direitos humanos e mesmo aos conflitos nacionais e internacionais.
A outra referência histórica recordada pelo Santo Padre é a da crise dos mísseis em Cuba, que levou a humanidade à beira de uma guerra nuclear e tornou igualmente manifesto o perigo constante da condição de "Guerra Fria", em que a humanidade estava condenada a viver, "sujeita constantemente ao pesadelo que uma agressão ou um desastre pudesse desencadear de um dia para o outro a pior guerra de toda a história humana" (Ibidem).

A crise dos mísseis em Cuba realçou a exortação cada vez mais urgente ao desarmamento nuclear e convencional. Neste contexto, a recente decisão de Cuba, de assinar tanto o Tratado de Não-Proliferação Nuclear como o Tratado de Tlaltelolco, é de bom auspício e constitui mais um incentivo para a eliminação total das armas nucleares, que são "incompatíveis com a paz que procuramos para o século XXI". Com o ingresso de Cuba, agora 188 Estados fazem parte do Tratado de Não-Proliferação. Entre os Estados Membros da Organização das Nações Unidas, agora só Israel, a Índia e o Paquistão devem aceder ao Tratado.

No contexto deste cenário histórico, repleto de perspectivas dramáticas para a paz no mundo, a Encíclica Pacem in terris constitui um momento decisivo de ruptura, porque voltou a confirmar o valor fundamental da paz como aspiração das pessoas de todas as regiões da terra, a viver em segurança, justiça e esperança. João XXIII vislumbrou sobretudo que, na história do seu tempo, estava em acto uma série de profundos impulsos de sinal positivo e novo:  "Apesar das guerras e ameaças de guerra, algo mais estava actuando na história humana, algo que o Papa identificou como o início promissor de uma "revolução espiritual"" (n. 3)

Com esta firme confiança no valor da paz e na possibilidade de a realizar, o Beato João XXIII expôs as suas condições essenciais em quatro exigências específicas da alma humana:  a verdade, a justiça, o amor e a liberdade, que o Santo Padre João Paulo II analisa, oferecendo de cada uma delas uma definição exacta e pontual, que resulta extremamente útil para compreender o significado da proposta cristã sobre o tema da paz (cf. n. 3).

Os ensinamentos da Mensagem de João Paulo II

Depois de ter explicado o contexto histórico em que foi publicada a Encíclica Pacem in terris, e de ter proposto de novo os quatro pilares sobre os quais se deve fundamentar a convivência humana, a Mensagem de João Paulo II debruça-se sobre alguns temas sobre a paz, que são particularmente actuais. E fá-lo com uma abordagem temática e metodológica da Encíclica Pacem in terris que lhe permite, por um lado, sublinhar a influência que a mesma Encíclica exerceu sobre os processos históricos que se seguiram à sua publicação e, por outro, actualizar a sua Mensagem, segundo as exigências do mundo presente. Nesta minha apresentação, desejo analisar alguns destes pontos, que constituíram a expressão de uma "revolução espiritual" que ainda deve ser continuada e completada.

A) Em primeiro lugar, parece-me muito relevante a conexão que o Santo Padre faz entre a consciência dos valores espirituais (o Papa chega a falar de "sensibilidade espiritual") e as consequências públicas e políticas que esta consciência pode ter. Esta conexão demonstrou toda a sua relevância histórica, sobretudo no campo dos direitos humanos. A crescente consciência espiritual da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamentais, que se tinha manifestado no tempo de João XXIII teria, poucos anos mais tarde, uma confirmação pública e histórica naquilo que aconteceria na Europa Central e Oriental. A mesma "sensibilidade espiritual" de que "cada ser humano é igual em dignidade" estaria na origem daqueles movimentos pelos direitos do homem, que deram uma expressão política concreta a uma das grandes dinâmicas da história contemporânea" (n. 4). O ensinamento que nos é proposto neste n. 4, extremamente importante pelos critérios de discernimento que apresenta e pela original e inovadora hermenêutica da história contemporânea que elabora é, em síntese, o seguinte:  a convicção de que a paz só é possível, se a sua promoção passa através da consciência da dignidade de cada ser humano e do valor dos direitos humanos:  "Paz e progresso só podem ser alcançados através do respeito da lei moral universal, inscrita no coração do homem".

B) O segundo ponto que a Mensagem de João Paulo II realça em toda a sua importância profética é a elaboração de um conceito de bem comum - princípio clássico da doutrina social - no contexto de um horizonte mundial, propondo assim o conceito de "bem comum universal". Cada um de nós que, quotidianamente, se confronta com o fenómeno da globalização, pode relevar o alcance moral e cultural que tiveram a nível histórico as felizes intuições de João XXIII. Estas intuições comportavam a evidente exigência de uma autoridade pública a nível internacional, que pudesse "dispor da capacidade efectiva de promover este bem comum universal" e que levava a considerar com esperança o possível papel da Organização das Nações Unidas, fundada em 1945, e da Declaração dos Direitos do Homem, de 1948.

O fenómeno da globalização exige também uma maior atenção à multilateralidade e à independência dos Estados nas vicissitudes sócio-políticas. Isto contribuirá também para o aumento da confiança nas relações multilaterais, que poderá levar a uma paz mais sólida e duradoura, nascida da convicção autêntica de que a paz é sobretudo um bem comum universal. É daqui que poderá brotar o respeito pelos compromissos assumidos pelos Estados a nível internacional.

Em Outubro de 1965, por ocasião da sua visita à Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, o Papa Paulo VI fez referência à Encíclica Pacem in terris, afirmando que a própria Organização das Nações Unidas está fundamentada no dever de promover o amor fraterno entre todos os povos, de fomentar os ideais da humanidade, assentes na esperança, e de levar a sociedade humana a desenvolver-se. Com efeito, para comemorar aquela visita do Papa, a Organização das Nações Unidas publicou um volume intitulado "Never Again War! - The Visit of His Holiness Pope Paul VI to the United Nations - 4 October 1965", em que incluiu também o texto da Encíclica Pacem in terris. Isto faz ver como a Organização das Nações Unidas valoriza a mensagem desta Encíclica! Efectivamente, também o Papa João Paulo II, no seu discurso à Organização das Nações Unidas, no dia 2 de Outubro de 1979, fez referência ao ensinamento contido na Encíclica Pacem in terris.

Nesta perspectiva, o Santo Padre João Paulo II, recolhendo a rica herança do ensinamento da Encíclica Pacem in terris e, ao mesmo tempo, actualizando-o segundo as exigências presentes, propõe à nossa consideração três questões particularmente relevantes: 

1) O convite à Comunidade internacional, a ultrapassar as hesitações em ordem a dar plena eficácia a uma autoridade pública internacional ao serviço dos direitos humanos, da liberdade e da paz;

2) O convite a promover todos os direitos humanos fundamentais para todos os homens, reduzindo o leque entre "uma série de novos "direitos" promovidos nas sociedades tecnologicamente desenvolvidas e os direitos humanos elementares que ainda não são satisfeitos em situações de "subdesenvolvimento";

3) O convite a cultivar não apenas a consciência dos direitos, mas também a consciência dos deveres:  "Uma maior consciência dos deveres humanos universais seria de grande benefício para a causa da paz, porque lhe daria a base moral do reconhecimento compartilhado de uma ordem das coisas, que não depende da vontade de um indivíduo ou de um grupo" (n. 5). Este convite  parece-me  mais  interessante  do que nunca, rico de significativas implicações e promissores desenvolvimentos futuros.

C) O terceiro âmbito, bastante articulado, que a Mensagem do Santo Padre João Paulo II analisa, é aquele que poderíamos referir à "questão moral", ou melhor, a ultrapassar, a todos os níveis nacionais e internacionais, a separação entre as exigências morais e políticas. A este propósito, confirmando o valor do ensinamento da Igreja sobre a paz, compreendido com Santo Agostinho como tranquillitas ordinis, o Santo Padre João Paulo II levanta duas interrogações provocatórias:  "Que existe uma grande desordem na situação do mundo contemporâneo é uma constatação que todos facilmente compartilham. A interrogação que se impõe é, por isso, a seguinte:  que tipo de ordem pode substituir esta desordem, para dar aos homens e às mulheres a possibilidade de viver em liberdade, justiça e segurança? E dado que o mundo, apesar da sua desordem, está a "organizar-se" nos vários sectores (económico, cultural e mesmo político), surge outra pergunta igualmente urgente:  sobre que princípios estão a desenvolver-se estas novas formas de ordem mundial?".

A partir destas duas interrogações, o Santo Padre João Paulo II pede respostas adequadas para uma série de exigências difundidas: 

1) O problema da paz rectamente compreendida não pode prescindir de questões ligadas aos princípios morais, sobretudo aos princípios vinculados à afirmação da dignidade e dos direitos humanos;
2) A constituição de uma nova organização de toda a família humana, que não deve ser confundida com a constituição de um superestado global mas, ao contrário, há-de identificar-se com a consistência da exigência moral presente no "pedido universal de modos democráticos no exercício da autoridade política, tanto nacional como internacional, assim como no pedido de transparência e de credibilidade a todos os níveis da vida pública" (n. 6).

3) Um vínculo mais vigoroso entre a moral e a política:  "A política é uma actividade humana; por isso, também ela está sujeita ao juízo moral. E isto é verdade também para a política internacional". Inclusivamente as políticas internacionais não podem pôr-se numa espécie de "zona franca" em que a lei moral não teria qualquer poder (n. 7). O vínculo entre a moral e a política é particularmente relevante e actual, se for considerado a partir da situação de luta fratricida presente na Terra Santa. João Paulo II faz-nos compreender que a solução desta luta, além de ser política, deve ser, em primeiro lugar e sobretudo moral:  "Enquanto aqueles que ocupam posições de responsabilidade não aceitarem pôr corajosamente em questão o seu modo de gerir o poder e de procurar o bem-estar dos seus povos, será difícil que se possa verdadeiramente progredir rumo à paz. A luta fratricida, que em cada dia atinge a Terra Santa, opondo entre si as forças que tecem o futuro imediato do Médio Oriente, apresenta a urgente exigência de homens e de mulheres convictos da necessidade e dos direitos da pessoa. Tal política é, para todos, incomparavelmente mais vantajosa do que a continuação das situações de conflito em acto" (Ibidem).

Infelizmente, nós cristãos, que estamos a preparar-nos para a celebração do nascimento do Príncipe da Paz, que veio para dar à humanidade inteira uma paz assente sobre a verdade, a justiça, o amor e a liberdade, como a descreve o Beato João XXIII, vemos com dor que a Cidade de Belém, escolhida pelo Príncipe da Paz como lugar predilecto do seu nascimento neste mundo, ainda continua a ser ameaçada pelo violência e pelo terror. Por conseguinte, fazemos votos a fim de que a mensagem-apelo que o Santo Padre João Paulo II lança no dia de hoje aos homens de boa vontade possa sensibilizar o coração de todos aqueles que são chamados a tornar-se operadores e artífices da paz, com vista a promover e a consolidar uma cultura da paz neste novo milénio, fundamentada no respeito pela vida, nos direitos humanos e nas liberdades fundamentais, assim como o termo de todos os tipos de violência e de terror, e sobre um renovado compromisso em benefício de uma solução pacífica dos conflitos no mundo.

4) A afirmação do vínculo inseparável entre o compromisso em prol da paz e o respeito pela verdade, sobretudo o respeito pelos compromissos assumidos. A este propósito, o Santo Padre realça a exigência de assumir os compromissos assumidos em relação aos pobres:  "Com efeito, seria particularmente frustrante, no que lhes diz respeito, não cumprir as promessas que eles ouviram como de vital interesse. Nesta perspectiva, não cumprir os compromissos assumidos com as nações em vias de desenvolvimento constitui uma séria questão moral e realça ainda mais a injustiça das desigualdades existentes no mundo. O sofrimento causado pela pobreza resulta dramaticamente aumentada pela perda da confiança. O resultado final é a queda de toda a esperança. A presença da confiança nas relações internacionais constitui um capital social de valor fundamental" (n. 8).

Se o novo nome da paz é o desenvolvimento, o desarmamento para o progresso deveria tornar-se cada vez mais necessário. É suficiente recordar que, a nível global, mais de oitocentos biliões de dólares norte-americanos são gastos actualmente para os armamentos, também por parte de vários países em vias de desenvolvimento. Sem dúvida, não se poderá pôr termo à fome enquanto no mundo se continuar a investir tantos biliões de dólares por ano em despesas militares. Os países desenvolvidos, que são os que mais gastam em armas e os que vendem as armas aos países pobres, têm a responsabilidade de fazer com que estes recursos sejam destinados para o desenvolvimento, e não para a guerra. Com efeito, se não se der início ao desarmamento, é a paz que será desarmada!

Depois do dia 11 de Setembro, a paz é ameaçada também pelo "cancro" do terrorismo internacional, que agora põe em perigo de modo imprevisível a estabilidade e a segurança a níveis nacional, regional e internacional. Porém, a luta contra o terrorismo jamais deverá ser combatida em detrimento dos direitos humanos e humanitários. Recentemente, recebendo sete novos Embaixadores, o Papa João Paulo II lançou um apelo preocupante:  "A resposta ao terrorismo  e  à  violência  nunca  é  outra violência. A paz não é fraqueza, mas força!".

Conclusão

A Mensagem conclui-se com um convite a cultivar uma adequada cultura e espiritualidade da paz, porque ela não é tanto uma questão de estruturas, embora estas sejam necessárias, mas sim de pessoas. Trata-se de um cultivo para o qual são chamados todos os homens e mulheres do nosso tempo, com os seus inúmeros gestos de paz. Pedindo gestos concretos de paz, o Santo Padre João Paulo II faz a todos o convite para oferecer uma contribuição eficaz para a construção da paz. Com efeito, na perspectiva cristã, a realização da paz não diz respeito unicamente às instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade de cada homem e de cada mulher, de maneira pessoal. Por conseguinte, cada um de nós, no seu próprio ambiente profissional, deve sentir o grave dever de incrementar a paz com gestos pessoais de paz. Também as religiões, no espírito de Assis, são convidadas a concentrar-se naquilo que lhes é próprio:  "A abertura a Deus, o ensinamento de uma fraternidade universal e a promoção de uma cultura de solidariedade" (n. 9).

No começo de um novo ano, o Santo Padre João Paulo II faz seu o convite da Encíclica Pacem in terris que exortava todos os homens e mulheres para o dever de assumir o "ofício nobilíssimo" da paz, embora ele seja "imenso", e de "restabelecer as relações de convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade" (n. 10).

Além disso, o Santo Padre pede que o 40º aniversário da Encíclica Pacem in terris seja para todas as comunidades eclesiais uma ocasião propícia para organizar celebrações e iniciativas adequadas, também de natureza ecuménica e inter-religiosa, que permitam um desenvolvimento da consciência acerca da inadiável necessidade de realizar a paz. A este propósito, também o Pontifício Conselho "Justiça e Paz" desempenhará a parte que lhe compete.

 

 

 

 

top