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 Pontifical Council for the Pastoral Care of Migrants and Itinerant People

People on the Move

N° 100 (Suppl.), April 2006

 

 

 

ORIENTAÇÕES

PARA UMA PASTORAL DOS CIGANOS  

 

 

 

CIDADE DO VATICANO

2005

 

 

Siglas e abreviações 

 

AAS      Acta Apostolicae Sedis

AG       concílio ecuménico vaticano ii, Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad Gentes

CCEO  Codex Canonum Ecclesiarum Orientalium

CD       concílio ecuménico vaticano ii, Decreto sobre o ministério pastoral dos Bispos Christus Dominus

CIC      Codex Iuris Canonici

IM         joão paulo ii, Bula de proclamação do Grande Jubileu do Ano 2000 Incarnationis Mysterium

LG         concílio ecuménico vaticano ii, Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium

PG         joão paulo ii, Exortação Apostólica pós-sinodal sobre o Bispo servidor Pastores Gregis

PL         Patrologia Latina, Migne

RM        joão paulo ii, Carta Encíclica sobre a validade permanente do mandato missionário Redemptoris Missio

UR        Concílio ecuménico vaticano II, Decreto sobre o ecumenismo Unitatis Redintegratio

 

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ÍNDICE

 

APRESENTAÇÃO 

INTRODUÇÃO

 

Capítulo I

POPULAÇÕES NÃO BEM CONHECIDAS E FREQUENTEMENTE MARGINALIZADAS

Um longo caminho

A rejeição: oposição de culturas

Uma mentalidade particular

Uma grande mudança

Uma realidade que interpela 

Capítulo II

SOLICITUDE DA IGREJA

Aliança de Deus e itinerância dos homens

Vida itinerante e perspectiva cristã

Catolicidade da Igreja e pastoral para os Ciganos

 

Capítulo III

EVANGELIZAÇÃO E INCULTURAÇÃO

Evangelização dirigida à inculturação

Purificação, elevação e realização da cultura cigana em Cristo

Interacção cultural 

Capítulo IV

EVANGELIZAÇÃO E PROMOÇÃO HUMANA

Unidade da família humana

Direitos humanos e civis dos Ciganos

Minoria particular entre as minorias

Condições de desenvolvimento integral

Perspectiva cristã da promoção 

Capítulo V

ASPECTOS PARTICULARES DA PASTORAL PARA OS CIGANOS

Aspectos específicos desta pastoral

Abordagem e formas de comunicação

Pastoral sacramental

As peregrinações

Os desafios da pastoral dos Ciganos

Passagem da suspeita à confiança

Das várias crenças à fé

Eclesialidade, ecumenismo e diálogo inter-religioso

A secularização

 

Capítulo VI

ESTRUTURAS E AGENTES PASTORAIS

O Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes

As Conferências Episcopais e as correspondentes Estruturas Hierárquicas   das Igrejas Orientais Católicas

O Episcopado e a pastoral dos Ciganos

Possíveis estruturas pastorais de jurisdição pessoal

O Promotor episcopal

A Direcção nacional

As Capelanias/Missões

Os Capelães/Missionários

Agentes pastorais ao serviço das comunidades ciganas

As Comunidades-ponte

Agentes pastorais ciganos

APELO FINAL

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APRESENTAÇÃO 

Com a Constituição Apostólica Pastor Bonus[1], João Paulo II confiou ao Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes a tarefa de “empenhar-se para que nas Igrejas locais seja oferecida uma eficaz e apropriada assistência espiritual, se necessário também mediante oportunas estruturas pastorais, quer aos prófugos e aos exilados, quer aos migrantes, aos nómadas e às pessoas que exercem a arte circense”. Portanto, a Igreja, considera que os Ciganos têm necessidade de uma pastoral específica, dirigida à sua evangelização e promoção humana.

Se – no que diz respeito ao cumprimento desta tarefa – tomamos em consideração só o passado recente, recordamos, pela sua importância, o V Congresso Mundial da Pastoral dos Ciganos[2], realizado em Budapeste no ano de 2003 e organizado pelo nosso Dicastério. Ele deu a oportunidade de ampliar e aprofundar os aspectos teológicos e eclesiológicos de um tal ministério. Desde então, os Lineamenta do presente documento passaram pelas mãos de peritos, entre os quais alguns Ciganos, Agentes pastorais, Bispos, e naturalmente também os nossos Membros e Consultores. Finalmente, vários Dicastérios da Cúria Romana puderam examinar o texto e apresentar as suas observações e os seus pareceres, de modo a situar esta pastoral específica no enquadramento mais amplo da missão universal da Igreja. 

A necessidade de Orientações tornou-se evidente desde o início da obra de evangelização renovada, mas só agora está maduro o tempo para esta publicação. Todavia, o Documento dirige-se não somente àqueles – Ciganos e os que o não são – que estão envolvidos neste campo pastoral específico, mas também a toda a Igreja (cf. Orientações 4).

Embora se refira aos Ciganos (Rom, Sinti, Manouches, Kalé, Gitanos, Yéniches, etc.), o Documento é igualmente válido, mutatis mutandis, também para outros tipos de nómadas que partilham condições de vida semelhantes. De todas as formas, o nomadismo não é a única característica dos Ciganos, também porque muitos deles são hoje sedentários, de maneira permanente ou semi-permanente. Com efeito, deve-se levar em consideração a sua diversidade étnica, a cultura e as antigas tradições. Por isso, os Pastores das Igrejas locais das nações nas quais os Ciganos vivem, poderão encontrar inspiração pastoral nestas Orientações, mas deverão adaptá-las às circunstâncias, às necessidades e exigências de cada grupo (ib. 5). 

Por outro lado, queremos recordar que muitos são os sinais de evolução positiva no modo tradicional de viver e de pensar dos Ciganos, como o são o crescente desejo de instruir-se e obter uma formação profissional, a maior consciência social e política que se exprime na formação de associações e também de partidos políticos, a participação nas administrações locais em alguns países, o aumento da presença da mulher na vida social e civil, o número cada vez maior de vocações ao diaconato permanente, ao presbiterado e à vida religiosa, etc. Nesta perspectiva, é consolador ter presente a contribuição, nos decénios passados, da promoção social e da pastoral específica iniciada pela Igreja Católica, particularmente graças aos estímulos de Paulo VI e de João Paulo II. Foi certamente, com orgulho colectivo que, em 4 de Maio de 1997, os Ciganos assistiram à beatificação do mártir espanhol Ceferino Jiménez Malla[3], o primeiro Cigano na história da Igreja a ser elevado às honras dos altares (ib. 21). 

“Do nascimento à morte, a condição de cada indivíduo é a do Homo viator”[4] – afirmou o Servo de Deus João Paulo II –, e isso é expresso, como um ícone no tipo de vida dos Ciganos. Contudo existe indiferença ou oposição face a estas populações: passa-se das discriminações habituais a sinais de rejeição que, frequentemente, não suscitam reacções ou protestos por parte daqueles que os testemunham. Isso tem causado indizíveis sofrimentos e tem alimentado as perseguições nos confrontos com eles, especialmente durante o século passado. No entanto, esta situação deveria despertar a consciência e suscitar a solidariedade para com esta população, enquanto a Igreja reconhece o seu direito de ter uma identidade própria e se ocupa em obter uma maior justiça para com eles, respeitando, ela mesma, a cultura e as sãs tradições. Direitos e deveres, porém, estão estritamente ligados e por isso também os Ciganos têm deveres em relação a outras populações. 

Estas Orientações são, portanto, um sinal da preocupação da Igreja para com os Ciganos, que necessitam de uma pastoral específica, considerando a sua cultura, a qual, obviamente, deve passar através do ministério pascal de morte e ressurreição. Aliás, tal é necessário para todas as culturas. A história universal da evangelização testemunha, de facto, que a difusão da mensagem cristã foi sempre acompanhada por um processo de purificação das culturas, vista como uma elevação necessária. Portanto, uma defesa indiscriminada de todos os aspectos da cultura cigana, sem as devidas distinções e os relativos juízos evangélicos, não convém. Todavia, purificação não significa esvaziamento, mas também uma certa integração com a cultura circunstante: trata-se de um processo intercultural (ib. 39). Logo, reconciliação e união entre os Ciganos e aqueles que não o são conduzem a uma legítima interacção da cultura. 

Além disso, os elementos de promoção humana como a educação, a formação profissional, as iniciativas e a responsabilidade pessoal são requisitos indispensáveis para uma qualidade de vida digna para os Ciganos. Nas comunidades ciganas deveria igualmente ser promovida a igualdade de direitos entre homens e mulheres, com a eliminação de toda a forma de discriminação; com efeito, ela exige o respeito pela dignidade da mulher, a elevação da cultura feminina e a promoção social, sem prejudicar o forte sentido de família que existe entre os Ciganos (ib. 40). Neste sentido, toda a tentativa de assimilação da cultura deles, e a sua dissolução na cultura maioritária, devem ser rejeitadas (ib. 53). 

Neste contexto, o Documento realça que se o lançamento de projectos para a promoção humana é, principalmente, responsabilidade do Estado, pode ser conveniente, e também necessário, que a Igreja se envolva em iniciativas concretas neste âmbito, dando oportunidade aos Ciganos de serem protagonistas. Contudo, compete à missão fundamental da Igreja informar as instâncias públicas sobre as condições e as dificuldades desta população. No entanto, é necessário não esquecer que “o desenvolvimento de um povo não depende primeiramente nem do dinheiro, nem das ajudas materiais, nem das estruturas técnicas, mas da formação das consciências, da maturidade das mentalidades e dos costumes. O homem é o protagonista do desenvolvimento, não o dinheiro ou a técnica”[5] (ib. 55-56). 

Voltando à evangelização dos Ciganos, nestas Orientações ela aparece como uma missão de toda a Igreja, porque nenhum cristão deveria ficar indiferente perante situações de marginalização relativamente à comunhão eclesial. Portanto, precisamente pela sua especificidade, a pastoral para os Ciganos requer uma formação atenta e profunda daqueles que nela estão directamente envolvidos, enquanto as comunidades cristãs devem mostrar uma atitude de acolhimento (ib. 57). E esta combinação de especificidade e universalidade é fundamental. 

O anúncio da Palavra de Deus será acolhido com mais facilidade se for proclamado por alguém que se tenha mostrado solidário com os Ciganos, em situações da vida quotidiana. Além disso, na catequese, é importante incluir um diálogo que permita aos Ciganos exprimir como é que eles entendem e vivem a relação com Deus. Por isso, é necessário traduzir textos litúrgicos, a Bíblia e livros de oração no idioma usado pelos vários grupos étnicos nas diversas regiões. Da mesma forma, a música – muito apreciada e praticada pelos Ciganos – é suporte extremamente válido para a pastoral e que convém promover e desenvolver nos encontros e nas celebrações litúrgicas. O mesmo se diga de todos os meios audiovisuais, oferecidos pela técnica moderna (ib. 60-61). 

Segundo as Orientações, as peregrinações revestem uma importância especial na vida dos Ciganos, enquanto apresentam oportunidades ideais para reuniões das famílias. Frequentemente os “lugares sagrados”, metas da peregrinação, estão, de facto, ligados à história familiar. Por isso, um acontecimento, uma promessa, um caminho de oração, são vividos como um encontro com o “Deus do (seu) Santo”, o que cimenta, também, a fidelidade de um grupo. Além disso, as peregrinações oferecem a quem nelas participa, uma experiência de catolicidade que conduzirá do “Santo” a Cristo e à Igreja (ib. 70-71). 

Finalmente, ao considerar o risco – infelizmente confirmado por factos desagradáveis – de que os Ciganos caiam vítimas das seitas, o Documento exprime a convicção que os novos Movimentos eclesiais poderiam desempenhar um papel particular nesta pastoral específica. Com o seu forte sentido comunitário e de abertura, a disponibilidade e a cordialidade particular dos seus membros, eles deveriam efectivamente oferecer acolhimento concreto e também favorecer a evangelização. Neste sentido, as Associações católicas dos Ciganos, tanto nacionais como internacionais, podem desenpenhar um papel de particular relevo, mantendo-se em constante relacionamento e comunhão com os Pastores das Igrejas locais e  com o Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes (ib. 77-78). Esperamos que estas Orientações correspondam às expectativas de todos aqueles que desejavam a publicação de um Documento pastoral de conjunto, a propósito do ministério a favor dos nossos irmãos e das nossas irmãs nómadas.   

 

Stephen Fumio Cardeal Hamao
       Presidente 

 

Agostino Marchetto
Arcebispo titular de Astigi
Secretário


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INTRODUÇÃO 

1.        A missão confiada por Cristo à sua Igreja estende-se «a todos os homens e povos, para conduzi-los com o exemplo da vida, com a pregação, os sacramentos e os outros meios da graça, à fé, à liberdade e à paz de Cristo, oferecendo-lhes a possibilidade livre e segura de participar plenamente no mistério de Cristo» (AG 5). Esta universalidade da missão impele a Igreja a abranger também os povos geograficamente mais distantes e a preocupar-se com aqueles que, habitando em terras de antiga tradição cristã, ainda não receberam o Evangelho ou o receberam apenas parcialmente, ou não entraram ainda plenamente na comunhão eclesial. 

2.        Entre estes, inclui-se certamente uma grande parte da população cigana, desde há séculos presente em terras tradicionalmente cristãs, mas frequentemente marginalizada. Marcada pelo sofrimento, pela discriminação e frequentemente também pela perseguição, ela não foi, todavia, abandonada por Deus, «que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade» (1 Tm 2, 4). De facto, a Providência divina soube suscitar, especialmente no decurso das últimas décadas, uma atenção crescente para com esta população, tocando o coração e a mente de muitos Agentes pastorais que generosamente se consagraram à sua evangelização, sofrendo também, eles próprios, uma certa incompreensão. 

Esta atenção estendeu-se pouco a pouco às várias regiões habitadas pelos Ciganos, com um gradual envolvimento dos Pastores das Igrejas particulares, organizando-se, sucessivamente, a nível nacional e também diocesano. Além disso, foram realizados numerosos Convénios internacionais com o fim de estudar e promover a pastoral a favor dos Ciganos, enquanto também no âmbito civil se desenvolveu uma maior atenção relativamente a eles. Surgiu assim uma realidade pastoral inserida, sem dúvida, no esforço missionário da Igreja. Esta, estimulada pelo Espírito de Deus, pretende imprimir um impulso decisivo a esta realidade, empenhando-se em sustentá-la e encorajá-la, dedicando-lhe os recursos materiais, humanos e espirituais que são necessários. 

3.        A partir do esforço pastoral que tem sido desenvolvido e da troca de experiências e de ideias, foi delineado um conjunto de atitudes, objectivos a alcançar, dificuldades a superar e recursos a obter, de que resultou um “instrumentum laboris” realizado pelo Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes. Esse documento foi notavelmente enriquecido e transformado pelos contributos e pareceres solicitados aos vários Agentes pastorais, incluindo Ciganos, que se empenham na evangelização desta população. Seguidamente, após uma longa sondagem, procedeu-se à redacção definitiva, tendo também presentes as estruturas eclesiais não directamente envolvidas, de modo a situar adequadamente a pastoral a favor dos Ciganos no enquadramento mais amplo da missão universal da Igreja. 

4.        Com a publicação deste documento pretende-se reafirmar, sem hesitações, o empenho da Igreja a favor desta população. Além disso, propõe-se que sejam traçados novos caminhos no seio das sociedades nacionais e das Igrejas particulares, de modo a abrir as comunidades a estes irmãos. São, também, estabelecidos alguns critérios pastorais gerais para a acção e as metas a alcançar. O presente documento marca, portanto, um momento importante na história de evangelização e promoção humana a favor dos Ciganos, após o seu encontro com Paulo VI em Pomezia[6].

Deste modo, o documento destina-se não apenas aos Pastores e aos Agentes de uma pastoral específica, mas também a toda a comunidade eclesial – que não pode ficar indiferente nesta matéria – e aos próprios Ciganos. Dado que o caminho de plena comunhão entre Ciganos e não Ciganos apenas começou, ou até, em numerosos países, ainda falta percorrer, pede-se a todos uma grande conversão da mente, do coração e das atitudes: este é o primeiro motor de uma tal comunhão, consciente de que na raiz de cada situação de rejeição e de injustiça se encontra a dolorosa realidade do pecado. 

5.        Tendo em consideração que a população cigana está profundamente marcada pela diversidade, cabe às Igrejas locais adequar os critérios, as indicações e as sugestões aqui contidas à situação geográfica e temporal concreta. Além disso, no plano cognitivo, é necessária uma grande prudência para não uniformizar facilmente uma realidade em si própria variada. Por esta razão, neste documento também quando nos referimos ao povo cigano, se entendem as populações ciganas, constituídas por diversos clãs.

Consequentemente, seria conveniente usar habitualmente o plural quando se fala da língua, da tradição, e dos outros elementos que configuram a identidade cigana; porém, isto nem sempre é possível e poderia até ser redutor, dado que, de facto, existem vários elementos comuns que confluem num modo de ser específico (Weltanschauung) e configuram fundamentalmente esta identidade.

Deste modo, para indicar estas populações na sua globalidade e complexidade, usa-se aqui o termo “Ciganos”, que no entanto deve permitir uma referência ao conjunto dos nossos irmãos nómadas ou sedentários, com respeito pela sua pessoa e pela sua cultura. Importa, porém, não esquecer que a realidade concreta subjacente não é, portanto, um todo homogéneo, genérico, mas indica vários grupos ou clãs, nomeadamente os Rom, Sinti, Manouches, Kalé, Gitanos, Yéniches, etc. Muitos deles preferem mesmo ser reconhecidos e identificados segundo o próprio clã. Pelo contrário, com o termo gadjé (gadjó no singular) os Ciganos designam todos aqueles que não o são, e neste sentido se usa aqui a palavra, sem discriminação. 

6.        Por fim, deve-se ter em conta que em vários países vivem numerosos Nómadas, cujas origens remontam a grupos de pastores ou pescadores, ou caçadores nómadas e outros (“Travellers”, por exemplo), para quem o seu modo de vida e as características antropológicas são diferentes das pertencentes às populações ciganas propriamente ditas. Todavia, as Igrejas locais dos países onde existem Nómadas poderão encontrar igualmente inspiração pastoral nestas Orientações, que certamente devem ser adaptadas às circunstâncias, necessidades e exigências de cada grupo. 

CAPÍTULO I

Populações mal conhecidas e frequentemente marginalizadas 

Um longo caminho

7.        Os Ciganos constituem uma “população em movimento”, cuja visão do mundo tem as suas próprias origens na civilização nómada, sendo que numa situação sedentária não é fácil compreendê-la em profundidade. O mundo cigano movimenta-se ainda, em grande parte, na tradição oral; a sua cultura não é escrita e não existe memória da sua errância. Eles não pertencem à categoria clássica dos migrantes, na qual geralmente se corre o risco de os classificar. Os testemunhos da sua origem e das suas movimentações são de facto externos e marginais e só recentemente a realidade cigana se tornou objecto de estudo. A sua resistência ancestral aos recenseamentos – frequentemente prelúdio de uma deportação – e o facto mais sistemático de que os Ciganos sedentários são geralmente excluídos dos recenseamentos, enquanto Ciganos, torna mais difícil enumerá-los e conhecer a sua distribuição geográfica. 

8.        Não obstante, pode-se dizer que a população cigana está em contínuo aumento graças a famílias numerosas, revelando, contudo, uma certa tendência actual para a diminuição do número dos seus membros.

Além disso, em geral as comunidades caracterizam-se pela sua fixação em bairros degradados, em terrenos abandonados, em bidonvilles, em áreas de estacionamento pouco organizadas, ou em bairros periféricos das cidades e das povoações dos gadjé. Pelo contrário, as famílias que dispõem de maiores recursos estabelecem-se em terrenos adquiridos, onde acampam com as suas caravanas. Existem também os sedentarizados, com maiores instruções e habilitações literárias, que podem estar bem integrados na sociedade. 

Por outro lado, assistimos actualmente a uma nova migração, a dos Ciganos provenientes dos países mais pobres da Europa Central e dos Balcãs que chegam aos países mais industrializados. Em geral, desencadeiam reacções de rejeição por parte dos habitantes, criam embaraço aos responsáveis pela administração pública e recebem um acolhimento tímido, quando não de rejeição, por parte dos seus irmãos ocidentais. De qualquer modo, hoje em dia existe uma maior capacidade de acolhimento em comparação com o passado e uma maior sensibilidade social por parte das autoridades públicas. 

A rejeição: oposição de culturas

9.        A predisposição para a itinerância abarca o conjunto destas populações e subsiste como mentalidade também entre aqueles que há muito se sedentarizaram e que são, de facto, a maioria. Porém, este modo de vida, legítimo por natureza, tem suscitado oposição por parte da sociedade de acolhimento, a qual se traduz em muitos países por uma incompreensão tenaz, alimentada também pela falta de conhecimento das características e da história ciganas.

Embora usufruindo da cidadania do país no qual se estabeleceram, os Ciganos são, na realidade, frequentemente considerados e tratados como cidadãos de segunda classe. Os estereótipos com os quais são classificados são tomados como verdades evidentes e esta persistente ignorância ou desconhecimento alimenta uma rejeição latente e perigosa que impede e adultera o necessário diálogo das etnias nacionais.

10.      Por serem vistos por muitos como estrangeiros nocivos e mendigos insistentes, a opinião pública em geral frequentemente apoiou a proibição do nomadismo e a sua segregação. No decurso da história, tal também deu origem a perseguições que foram justificadas quase como medidas sanitárias. A história destas populações ficou, assim, tristemente marcada por punições corporais, detenções, deportações, sedentarização forçada, escravidão, ou por outras medidas utilizadas para conseguir finalmente o seu aniquilamento.

11.      Por outro lado, a perseguição dos Ciganos coincide, em grande parte, com a formação dos grandes Estados nacionais. Além disso, o século XX ficou marcado pela perseguição racial que os afectou juntamente com os Judeus e foi perpetrada pelo nazismo, mas não só. A sua deportação para campos de concentração, bem como a eliminação física de milhares e milhares de pessoas, suscitaram, em geral, apenas protestos isolados. Numa época mais recente, também a instabilidade política de vários países contribuiu para prejudicar os Ciganos. Prova disso foi a guerra dos Balcãs, a qual mostrou, em circunstâncias dramáticas, que esta população continua a ser rejeitada por grande parte dos cidadãos. De facto, em várias nações registaram-se também agressões físicas contra esta população, que alimentam ainda, num trágico círculo vicioso, incompreensão e violência. 

Uma mentalidade particular

12.      A identidade cigana não se revela facilmente, sem dúvida porque é dinâmica, e até variável, e porque é vista à luz de relações atribuladas entre Ciganos e gadjé. Nem sequer é possível apontar um território ancestral onde teria as suas próprias raízes. É também difícil identificar uma unidade étnica abrangente e relativamente uniforme a partir da qual se possa chegar à origem desta população. No entanto, pode-se falar correctamente de um conjunto de elementos que, tomados na sua globalidade, configuram um certo modo característico de ser, talvez não regulamentado nem possuindo contornos definidos, antes compreendido como uma mentalidade e uma atitude existencial.

Pode-se assim verificar que esta população é essencialmente caracterizada por uma propensão para a viagem e para a vida errante que o gadjó, mesmo quando migrante, não possui. Estes podem desenraizar-se momentaneamente, para basear a sua existência noutro lugar que julgam ser melhor. Em geral, o gadjó não tende a repetir esta experiência de desenraizamento e migração. Por sua vez, o Cigano está por natureza disponível para a viagem, o movimento.  

13.      Isto continua a ser verdadeiro mesmo se grande parte dos Ciganos, como já se mencionou, são hoje sedentários ou semi-sedentários. Estas novas formas de vida não afectam nos Ciganos a percepção da sua diversidade face aos gadjé. O temor de serem absorvidos, de perderem a sua identidade, reafirma neles a resistência à assimilação, mas também, de certo modo, à sua própria integração. 

A longa história do isolamento e do contraste com a cultura circundante, as perseguições sofridas e a incompreensão por parte dos gadjé influenciaram a identidade cigana, que se traduz por uma atitude de desconfiança relativamente aos outros, com tendência a fecharem-se sobre si próprios, na consciência de poderem contar somente com as próprias forças para sobreviver no seio de uma sociedade hostil. 

14.      No centro da vida da população cigana está, de qualquer modo, a família. Ser Cigano significa estar radicado de forma vital na família, onde a consciência e a memória colectiva modelam cada pessoa e educam o jovem, até no meio do mundo dos gadjé que o envolve e ao mesmo tempo o mantém à distância. Os anciãos da família são, pois, muito respeitados e venerados, dado que possuem a sabedoria da vida. Os defuntos permanecem por muito tempo na memória e, de certo modo, a sua presença conserva-se sempre viva. Além disso, no seio do povo cigano é honrada a “família alargada” constituída por uma rede de múltiplas famílias aparentadas, o que dá origem a uma atitude de grande solidariedade e de hospitalidade, particularmente em relação aos membros do próprio clã. 

A vontade de ser e permanecer livres, de dispor do espaço e do tempo para a sua própria realização na família e na própria etnia, está assim profundamente enraizada na mentalidade cigana. O desejo e o apreço pela liberdade como condição fundamental de existência podem de facto ser considerados como fundamentais na sua Weltanschauung

15.      Além disso, a religiosidade desempenha um papel muito relevante na identidade desta população. De facto, o relacionamento com Deus é dado como adquirido e traduz-se numa relação afectiva e imediata com o Omnipotente, que cuida da vida familiar e a protege, especialmente nas situações dolorosas e inquietantes da existência. Esta religiosidade insere-se habitualmente na religião ou na confissão maioritária do país onde os Ciganos se encontram, seja ela luterana, reformada, católica, ortodoxa, muçulmana ou outra, frequentemente sem muitas interrogações quanto às suas diferenças. 

Uma grande mudança

16.      No decurso do século XX acentuou-se a tendência para a sedentarização e, em várias regiões, tal tem facilitado a escolarização das crianças e o consequente aumento da população cigana alfabetizada. O maior contacto com o mundo dos gadjé, daí resultante, contribuiu, além disso, para uma progressiva adopção dos novos meios técnicos da sociedade contemporânea, como por exemplo o transporte motorizado, a televisão, a comunicação telemática, a informática, etc.

Consequentemente, a passagem do carro tradicional para a roulotte puxada por um automóvel tem, paradoxalmente, aumentado o fenómeno da semi-sedentarização. O automóvel permite percorrer livremente longas distâncias no decurso de um dia apenas, sem que a mulher e os filhos tenham necessariamente de acompanhar o chefe de família ou os homens que exercem a sua actividade profissional. Uma estadia prolongada permite, além disso, que os filhos frequentem a escola com regularidade, nas famílias cujos pais compreenderam o desenvolvimento do mundo e experimentaram a inferioridade de serem analfabetos.

Além disso, em alguns países assiste-se agora à incorporação bastante generalizada dos Ciganos no trabalho até agora exclusivo dos gadjé, especialmente no campo artístico. Tornaram-se também mais frequentes os matrimónios entre Ciganos e gadjé e também no âmbito da promoção da mulher se regista uma significativa mudança, embora exista ainda muito a fazer no caminho de uma igual dignidade em relação ao homem. 

17.      Apesar das tensões que muitas vezes existem entre os diferentes grupos e da falta de hábitos de mobilização e congregação das próprias forças com o fim de alcançar um objectivo, com perseverança e precisão, em alguns países os Ciganos criaram Associações que têm em vista negociações colectivas para seu benefício. Com alguma frequência, gadjé amigos colocam igualmente à sua disposição as suas competências para que eles façam ouvir a própria voz e assumam o futuro nas suas mãos. Estas Associações reagem com cada vez maior eficácia às legislações que limitam a liberdade de movimento ou que ignoram a sua identidade, restringindo direitos legítimos. Naturalmente, o associativismo não tem a mesma força em toda a parte, mas é um movimento que existe, está em crescimento e carece de apoio. 

18.     Todavia, esta evolução está ainda numa fase inicial e varia muito de país para país, ou seja, a situação geral da população cigana, marcada por um isolamento multissecular, está ainda muito atrasada em relação às grandes mudanças que caracterizaram a sociedade dos gadjé durante o último século. Tal tem pesadas consequências também no campo económico-laboral. De facto, o anterior contexto de uma sociedade predominantemente rural tinha permitido uma espécie de simbiose dos Ciganos com a sociedade dos gadjé, graças às suas profissões ligadas à criação de cavalos, à laboração dos metais, ao pequeno artesanato, à música e ao espectáculo ambulante. Hoje, pelo contrário, a transformação técnico-industrial da sociedade de acolhimento deixa pouco espaço económico, e eles são obrigados a abandonar as profissões tradicionais, agora obsoletas, e a procurar meios de subsistência em actividades de escasso lucro, frequentemente no limite da legalidade ou fora do seu âmbito. 

19.      Além disso, não se deve subvalorizar a influência da secularização, que depois da sociedade dos gadjé, atinge progressivamente também a cigana. A religiosidade tradicional encontra-se assim submetida à pressão dominadora de uma cultura que volta as costas a Deus ou O nega e, quando não encontra acolhimento numa comunidade cristã, a população cigana facilmente cai nas malhas das seitas ou dos chamados “novos movimentos religiosos”. Tal constitui um apelo adicional e urgente para abrir os braços a uma população, apesar de tudo, sempre desejosa do encontro com Deus. 

Por outro lado, a actual idolatria do bem-estar, prevalecente entre os gadjé, não constitui, certamente, um estímulo a abandonar as próprias comodidades e a ir ao encontro destes nossos irmãos necessitados de sair da pobreza e do isolamento e de encontrar o seu lugar na sociedade contemporânea. 

Uma realidade que interpela

20.      Tudo isto torna particularmente dolorosa a indiferença ou a oposição face a estas populações nómadas. Só gradualmente, e muito lentamente, algumas comunidades se abriram ao acolhimento; porém, o seu número é ainda demasiado reduzido para que os Ciganos possam descobrir o rosto materno e fraterno da Igreja. Assim, os sinais de rejeição persistem e perpetuam-se, suscitando, em geral, poucas reacções e protestos por parte daqueles que os testemunham.

No entanto, esta situação deveria despertar a consciência dos católicos, suscitando sentimentos de solidariedade para com esta população. A Igreja sente-se, por isso, chamada a reconhecer o itinerário cigano no decurso da história e é interpelada pela sua cultura. Ela deve reconhecer o seu direito a “querer viver em conjunto”, provocando e sustentando uma sensibilização com vista a uma maior justiça face a eles, no respeito recíproco das culturas, orientando os próprios passos segundo o exemplo de Cristo, em resposta às expectativas desta população na sua busca do Senhor.

 

CAPÍTULO II

Solicitude da Igreja 

21.      Não se pode esquecer, todavia, que a partir da segunda metade do século passado houve por parte dos Pastores uma aproximação progressiva aos Ciganos, tendo início em alguns países uma pastoral específica em favor desta população. Além disso, o Concílio Vaticano II exortou os Bispos para que tivessem «um interesse particular por aqueles fiéis que, devido às suas condições de vida, não podem usufruir de forma suficiente do cuidado pastoral comum e ordinário dos Párocos, ou que dele são totalmente privados» (CD 18), e entre estes fiéis incluem-se também «os nómadas». Um tal interesse particular foi confirmado por Paulo VI quando, no célebre encontro de Pomezia, já referido, se dirigiu aos Ciganos nestes termos: «vós estais no coração da Igreja»! A dignidade cristã, na condição dos Ciganos, recebeu um reconhecimento posterior com a beatificação de Ceferino Giménez Malla (1861-1936), chamado “o Pelé”, um cigano espanhol pertencente ao grupo nómada dos Calós.

A estrada da evangelização, de uma autêntica reconciliação e de comunhão Ciganos-gadjé não pode, contudo, deixar de partir da reflexão bíblica, à luz da qual também o seu mundo encontra uma razão cristã. Neste âmbito, é necessária uma leitura atenta da Sagrada Escritura, para que nos conduza a uma correcta inserção da pastoral dos Ciganos no contexto da missão da Igreja.  

Aliança de Deus e itinerância dos homens

22.      A figura do pastor e da sua vida predominantemente itinerante tem um lugar privilegiado na revelação bíblica. Na origem do povo de Israel salienta-se a figura de Abraão, que recebe como primeira indicação de Deus a seguinte: «sai da tua terra, do meio dos teus parentes e da casa de teu pai, e vai para a terra que Eu te mostrar» (Gn 12,1). Abraão «partiu sem saber para onde ia» (Hb 11,8), e, daquele momento em diante, a sua vida foi marcada por contínuas deslocações, «de acampamento em acampamento» (Gn 13,3), «morando em tendas» (Hb 11,9) como estrangeiro (cf. Gn 17,8), sabendo que também os seus descendentes imediatos seriam «estrangeiros numa terra que não é deles» (Gn 15,13). Nas confirmações do pacto da aliança de Deus com Abraão, a imagem do itinerante aparece como sinal privilegiado da contraparte humana: «anda na minha presença e sê perfeito» (Gn 17,1). 

23.      O povo eleito é posteriormente confiado à orientação de Moisés, que «na idade adulta, recusou ser chamado filho da filha do faraó, preferindo ser maltratado com o povo de Deus a gozar por pouco tempo do pecado» (Hb 11,24-25). Moisés recebeu do Senhor o dever de libertar os israelitas da escravidão do Egipto para os levar à Terra prometida e isto realizou-se através de uma longa caminhada durante a qual eles «erravam pelo deserto solitário, sem achar o caminho para uma cidade habitada» (Sl 107,4).

É precisamente neste contexto itinerante que se deu a confirmação da aliança de Deus com o seu povo, no monte Sinai. Ela ficou representada pela arca contendo os símbolos da aliança, arca que se desloca com o povo e o acompanha no caminho rumo à Terra prometida. Nestas condições, mesmo quando são acometidos pela fome e pela sede, pela inimizade e pelo não acolhimento por parte dos povos circundantes, os hebreus encontram a protecção e a predilecção de Deus, o que será posteriormente recordado e cantado nos salmos, do seguinte modo: «ó Deus, quando saías à frente do teu povo, caminhando pelo deserto, a terra tremeu e o céu dissolveu-se diante de Deus do Sinai, diante de Deus, o Deus de Israel» (Sl 68,8-9). A nostalgia destes tempos que forjaram a alma de Israel é conservada sempre viva nos tempos posteriores, e evocada pelas peregrinações que os Hebreus deviam fazer à Cidade onde, no Templo, se guardava a arca da aliança. 

24.      A itinerância é, por outro lado, uma característica da atitude de cada homem no seu relacionamento com Deus. Para os salmos «o homem de conduta íntegra» é aquele «que caminha na lei do Senhor», que «anda nos seus caminhos» (Sl 119,1-3), «na terra da (...) peregrinação» (Sl 119,54). «O que vive sem culpa» (Sl 15,2) experimenta até que ponto Deus o «alenta» e o «guia por caminhos justos» (Sl 23,3). Neste sentido, Paulo nos recordará que «enquanto habitamos neste corpo, estamos longe do Senhor» (2 Cor 5,6).

Também o mistério de Cristo é apresentado pela Sagrada Escritura como um êxodo, o do Filho do Pai, ao mundo, e do seu regresso ao Pai. A vida terrena de Jesus é marcada, já desde o seu início, pela itinerância, na fuga da perseguição de Herodes rumo ao Egipto e no regresso a Nazaré. Além disso, o Evangelho de Lucas testemunha as suas peregrinações anuais ao Templo de Jerusalém (cf. Lc 2,41), e todo o seu ministério público é caracterizado pelas deslocações de uma região para outra, até ao ponto de que «o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8,20). O próprio mistério pascal é, precisamente, introduzido pelo Evangelho de João, como a sua hora «de passar deste mundo para o Pai» (Jo 13,1). Jesus sabia que saíra de junto de Deus e que voltava para Deus (cf. Jo 13,3). Também o homem é interpelado por este êxodo do Filho enviado pelo Pai por obra do Espírito Santo a pôr-se a caminho num “êxodo pascal” rumo ao Pai.

25.      Deste modo, o êxodo não está ainda concluído visto que «a história da Igreja é o diário vivo de uma peregrinação nunca terminada» (IM 7). Na continuação da tradição veterotestamentária e da vida de Cristo, que «consumou a sua obra de redenção através da pobreza e das perseguições», também a Igreja, Povo de Deus a caminho rumo ao Pai, «é chamada a tomar o mesmo caminho para comunicar aos homens os frutos da salvação» (LG 8). Como «novo Israel da era presente que caminha em busca da cidade futura e perene (cf. Hb 13,14)» (LG 9), ela «prossegue a sua peregrinação entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus»[7]e «no seu caminho através das tentações e das tribulações é apoiada pela força da graça de Deus» (LG 9). Definitivamente, a Igreja revela uma mobilidade testemunhada pela sua índole escatológica, que nela alimenta as tensões polares rumo ao eschaton da sua realização. Também a condição do cristão individual é, por consequência, como uma grande peregrinação rumo ao Reino de Deus: «do nascimento até à morte, a condição de cada um é a que é própria do homo viator» (IM 7).  

Vida itinerante e perspectiva cristã

26.      Daqui resulta que a condição de itinerante, quer na sua realização objectiva, quer como visão de vida, se torna uma vocação permanente através da qual «não temos aqui uma cidade permanente, mas buscamos a cidade futura» (Hb 13,14). Ela configura-se como um sinal eclesial solidamente ancorado na revelação bíblica, encontrando na estrutura viva da Igreja as suas várias formas existenciais. Entre todas estas inclui-se, certamente, aquela que é encarnada na vida dos Ciganos, tanto nas suas diversas realizações históricas como nas circunstâncias actuais. 

27.      Entre os valores que, de certo modo, definem o seu estilo de vida, sobressaem, de facto, alguns semelhantes aos traços bíblicos. Marcada, pois, pela perseguição, pelo exílio, pelo não acolhimento, ou até pela rejeição, pelo sofrimento e pela discriminação, a história cigana forjou-se como uma permanente caminhada, que distingue o cigano dos outros e o conserva na sua tradição nómada, de tal modo que ele não se deixa arrastar, em geral, pela influência do ambiente circundante. Configurou-se assim uma identidade, com a sua cultura, as próprias línguas, a sua religiosidade e os próprios hábitos, e com um sentido forte de pertença e de vínculo com os outros. Graças aos Ciganos e às suas tradições, a humanidade enriquece-se, pois, com um verdadeiro património cultural, transmitido sobretudo através da vida nómada. De facto, «a sua sabedoria não está escrita em nenhum livro, mas nem por isso é menos eloquente»[8]

28.       Frequentemente abandonados pelos homens mas não por Deus, os Ciganos colocaram a sua confiança na Providência, com uma convicção tão profunda de a poderem qualificar como parte da sua “natureza”. A vida cigana é, no fundo, um testemunho vivo de uma liberdade interior face às dependências do consumismo e das falsas seguranças baseadas na suposta auto-suficiência do homem. Além disso, não se deve esquecer o dito popular: “Ajuda-te que Deus te ajudará”. 

A sua itinerância é, assim, um chamamento simbólico e permanente ao caminho da vida rumo à eternidade. De um modo muito especial eles vivem aquilo que toda a Igreja deveria viver, ou seja, estar continuamente a caminho rumo a uma outra Pátria, a verdadeira, a única, devendo, pois, cada um empenhar-se no seu trabalho quotidiano e no seu dever. 

Catolicidade da Igreja e pastoral para os Ciganos

29.      Tudo isto deveria ter como consequência uma solicitude específica da Igreja para com esta população. Como grupo particular do Povo peregrinante de Deus, ela merece, com efeito, uma atitude pastoral especial e um apreço pelos seus valores. Mais ainda, uma tal pastoral é referida e solicitada como exigência interna da catolicidade da Igreja e da sua missão. De facto, com Cristo, do qual ela procede, desaparece todo o tipo de discriminação. Ele «é a nossa paz. Dos dois povos, Ele fez um só, tendo derrubado o muro de separação: a inimizade (…) para, dos dois, criar em si mesmo, um só homem novo, estabelecendo a paz, e para reconciliar a ambos com Deus num só corpo, por meio da cruz, destruindo em si mesmo a inimizade» (cf. Ef 2,14 - 16). 

30.           Portanto, na Igreja, instrumento da missão do Senhor, que nela continua presente, «todos os homens são chamados a formar o Povo de Deus» (LG 13). É vocação da Igreja estar presente em todas as nações da Terra, uma vez que é do meio de todos os povos que o Senhor toma os cidadãos do seu Reino que, pela sua natureza, não é da terra mas do céu (cf. LG 13). Nela, cada pessoa deve encontrar acolhimento, sem espaço para a marginalização para ser estrangeira. Com efeito, a Igreja dirige-se de modo particular «aos pobres e sofredores, dedicando-se a eles de boa vontade (cf. 2 Cor 12, 15). De facto, ela compartilha as suas alegrias e as suas dores, conhece as aspirações e os problemas da vida, sofre com eles na angústia da morte» (AG 12). 

31.      Além disso, a catolicidade da Igreja, embora contenha a vocação para abranger todo o homem, de qualquer condição, não é apenas extensiva, mas, mais interior e decisivamente, é qualitativa, isto é, tem capacidade para penetrar nas diversas culturas e para fazer suas as angústias e esperanças de todos os povos, de modo a evangelizar, enriquecendo-se, ao mesmo tempo, com as diversas riquezas culturais da humanidade. O Evangelho, um e único, é, portanto, anunciado de modo adequado tendo também em conta as diversas culturas e tradições, prosseguindo assim no «movimento pelo qual o próprio Cristo, através da sua encarnação, se ligou ao ambiente sócio-cultural concreto dos homens com os quais conviveu» (AG 10). 

32.      Um tal enraizamento católico faz com que qualquer eventual forma de discriminação, no desenvolvimento da sua missão, resulte numa traição da própria identidade eclesial. Nas pegadas do seu Fundador – o Enviado de Deus «para anunciar a Boa Nova aos pobres, para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor» (Lc 4, 18-19) –, a Igreja procura, assim, meios cada vez mais adequados para anunciar o Evangelho aos Ciganos, de modo vivo e eficaz. Trata-se assim de uma nova evangelização, à qual nos convidava com frequência o Papa João Paulo II. 

33.      Da dimensão católica da missão nasce, de facto, aquela capacidade eclesial de encontrar e desenvolver os recursos necessários para ir ao encontro das múltiplas formas sociais nas quais as comunidades humanas organizam a sua existência. Deste modo, a salvação está à disposição de todos. Tendo em conta a advertência paulina «ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16), a Igreja não poupa, portanto, esforços e sacrifícios para alcançar, de facto, todos os homens. É uma história marcada, também, pela iniciativa e pela criatividade, para tornar mais incisivo o anúncio, desafiando frequentemente mentalidades e estruturas que o tempo tornou obsoletas.

As circunstâncias actuais em que os Ciganos se encontram, submetidos às mudanças vertiginosas da sociedade contemporânea, ao materialismo selvagem e a falsas propostas que, no entanto, se justificam com o Transcendente, imprimem um impulso urgente à acção pastoral, de modo a evitar quer o seu encerramento passivo em si mesmos, quer a fuga para as seitas ou a dispersão do próprio património religioso, engolido por um materialismo que sufoca todo o chamamento ao Divino. 

 

CAPÍTULO III

Evangelização e Inculturação 

34.      Tendo em vista a desejada nova evangelização e a reconciliação e comunhão entre Ciganos e gadjé, deve-se valorizar adequadamente a “diversidade cigana”, reconhecendo de pleno direito a sua existência, sem todavia cortar as pontes de encontro com a cultura dos gadjé. O equilíbrio salutar e justo desta valorização é, de facto, indispensável para uma correcta equação do relacionamento entre evangelização, inculturação e promoção humana. 

Evangelização dirigida à inculturação

35.      Uma vez que a salvação atinge o homem por inteiro, a evangelização não pode, certamente, descurar aqueles aspectos culturais, linguísticos, tradicionais, artísticos e ainda outros, que modelam o ser humano e os povos na sua integridade. Ao fazê-lo, a Igreja «nada retira ao bem temporal de qualquer povo, mas, pelo contrário, fomenta e acolhe todas as riquezas, os recursos e modos de vida dos povos, naquilo que têm de bom e, acolhendo-os, purifica-os, consolida-os e eleva-os» (LG 13). Além disso, o espírito genuinamente católico da evangelização conduz a um enriquecimento recíproco, visto que «cada uma das partes leva os seus próprios dons às outras partes e a toda a Igreja, de maneira que o todo e cada uma das partes se incrementam com um intercâmbio mútuo universal» (LG 13). 

36.      Portanto, nesta visão, alguns critérios orientadores encontram a sua compreensão adequada à animação da acção pastoral com os Ciganos, ou seja, não apenas a aceitação da sua legítima reivindicação de uma identidade específica e do direito à sua inserção, enquanto tal, na estrutura vital da sociedade civil e eclesial, mas também a apreciação real – afectiva e efectiva – pelos valores autênticos da sua tradição, que deve ser não só respeitada, mas também defendida. Mais ainda, nesta perspectiva soteriológica, é necessário compreender a cultura desta população a partir do seu interior, enquanto elemento a integrar no desígnio salvífico divino. 

37.      A peculiaridade da Weltanschauung cigana e da sua forma de vida característica não é facilmente comparável com a de outras realidades sociais da humanidade. A realidade cigana enquadra-se, pois, plenamente, nas práticas missionárias, em que a Igreja, especialista em humanidade, aplicou o axioma segundo o qual «a qualquer condição ou estado devem corresponder actos apropriados e instrumentos adequados» (AG 6). Daqui advém a necessidade e a conveniência de uma assistência pastoral específica para os Ciganos, não reduzida à solução fácil de simplesmente os pressionar para a “integração” no conjunto dos restantes fiéis; ela deve ser dirigida sobretudo à sua evangelização e promoção.

Deste modo, deve-se ter em conta que a estrutura eclesiástica ordinária e territorial para a pastoral das almas não permite, em geral, a esta população uma inserção efectiva e duradoura na vida e na comunidade eclesial. Torna-se assim necessário um discernimento cauteloso com o objectivo de encontrar o justo equilíbrio também na adaptação das plataformas pastorais comuns às particularidades exigidas por cada situação. 

38.      Com efeito, a especificidade da cultura cigana exige que não se lhes ofereça uma evangelização simplesmente “desde o exterior”, a qual facilmente seria considerada uma invasão. Na esteira da verdadeira catolicidade, a Igreja deve tornar-se, num certo sentido, ela própria cigana entre os Ciganos, para que eles possam participar plenamente na vida da Igreja. Isto leva a procurar uma atitude pastoral caracterizada pela partilha e pela amizade, para o que se torna importante que os Agentes pastorais específicos se integrem na sua forma de vida e partilhem a sua condição, pelo menos durante algum tempo. Para tal contribui, portanto, de um modo muito especial, aquilo que a Igreja exige a quantos estão empenhados nos territórios missionários, ou seja, que «devem conhecer os homens com quem convivem e levar as relações com eles a um diálogo sincero e compreensivo, para que venham a conhecer quantas riquezas Deus na sua magnanimidade deu aos povos» (AG 11).  

Purificação, elevação e realização da cultura cigana em Cristo

39.      Um encontro autêntico entre Evangelho e cultura cigana não pode, todavia, legitimar indiscriminadamente todos os seus aspectos particulares. A história universal da evangelização testemunha, de facto, que a difusão da mensagem cristã foi sempre acompanhada por um processo de purificação das culturas a que se dirige, purificação que é vista, na realidade, como um aspecto necessário à sua elevação cristã. Não é pois de admirar que, a par da “aceitação” de uma tal cultura, a Igreja oriente a pastoral também para a superação daqueles aspectos não partilhados pela visão cristã da vida ou que, de um modo ou de outro, constituem obstáculos ao caminho da reconciliação e da comunhão entre Ciganos e gadjé. Uma atitude minimalista face a estes obstáculos ou uma defesa indiscriminada de tudo aquilo que está presente nas tradições ciganas, sem as devidas distinções e os relativos juízos evangélicos, não pode, pois, ajudar à causa da própria evangelização. 

40.      Neste contexto, é necessário acrescentar que a custódia das próprias tradições não deveria tornar-se um álibi para justificar uma atitude de isolamento, fechado também ao justo progresso das sociedades dos gadjé. Assim, a reconciliação e a comunhão entre Ciganos e gadjé incluem a interacção legítima das culturas, e neste processo, a iniciativa deve partir também da parte cigana. Deste modo, deve-se outrossim ter em conta que a actual configuração geral da sociedade não permite o necessário progresso das culturas que ficam isoladas da dinâmica central do desenvolvimento. Embora evidentemente também existam muitas situações de injustiça social que, em último caso, têm a sua origem no pecado, é preciso, contudo, reconhecer que, actualmente, as situações de subdesenvolvimento social nem sempre provêm da má vontade dos outros estratos sociais, mas também da estrutura do próprio contexto social que exige a integração como condição de progresso. 

41.      É igualmente característica da sociedade contemporânea a necessidade da educação, da qualificação profissional e da iniciativa e responsabilidade pessoais como condições indispensáveis para alcançar uma qualidade de vida pelo menos digna. São valores apreciados e fomentados, especialmente pelos pais. Grande parte da população cigana transporta ainda, com efeito, uma herança à qual falta este conhecimento, o que também é consequência do isolamento. Ainda que, frequentemente, não se possa nem se deva culpabilizá-los, é, apesar de tudo, necessário superar esta carência, especialmente tendo em vista as gerações futuras.

Neste contexto, a igualdade de direitos entre homem e mulher, deve ser decididamente, fomentada, eliminando-se toda a forma de discriminação injusta. Tal não significa, porém, perturbar a instituição familiar, como infelizmente acontece quando esta igualdade é mal compreendida, não aceitando a diferença entre homem e mulher numa cultura da reciprocidade. Porém, a igualdade exige o respeito pela dignidade da mulher, a elevação da cultura feminina, a promoção social, etc. 

42.      O forte sentido de família, tão enraizado nos Ciganos, não pode, pois, permitir que as ofensas pessoais ou colectivas sofridas se tornem um ressentimento permanente transmitido de geração em geração, prolongando no tempo a inimizade entre famílias e/ou clãs.

A honestidade e a rectidão no âmbito laboral são, por outro lado, um valor civil e cristão que nunca deve ser descuidado. As actividades que produzem “dinheiro fácil”, à margem ou directamente fora da legalidade, devem, por isso, ser abandonadas. É necessário considerar o apreciável dano que isto provoca, quer à população na qual os Ciganos se inserem, quer a si próprios, dado que contribui para alimentar os preconceitos dos gadjé

Interacção cultural

43.     Todavia, a purificação da cultura cigana não deveria significar o seu esvaziamento. Porém, juntamente com o respeito e o apreço pelos seus legítimos valores, o processo da sua integração no seio da cultura da sociedade circundante deve ser decididamente impulsionado, o que implicará uma atitude de acolhimento por parte desta última. Tanto por motivos de caridade cristã como por exigências da vida civil, o desencontro ou oposição entre as culturas cigana e dos gadjé é, de facto, uma realidade que deve ser superada, o que exige uma grande mudança de mentalidade quer no âmbito eclesial quer no civil. 

44.      Por outro lado, neste processo desempenha um papel decisivo a educação ministrada nas escolas dos gadjé. Efectivamente, os textos escolares comuns apresentam, com frequência, uma visão histórica e sociológica da população cigana herdeira de preconceitos transmitidos de geração em geração, continuando, assim, a alimentar a atitude geral de desconfiança. Paralelamente a informação difundida através dos mass media só raramente leva ao conhecimento do grande público os valores positivos da cultura cigana, sendo bem mais frequente a difusão de notícias negativas que contribuem para denegrir ainda mais a sua imagem. Pelo contrário, o zelo pelo respeito das minorias, cada vez mais generalizado nos nossos dias, deveria encontrar a sua realização também nestes âmbitos, sem nenhum tipo de discriminação. Neste caso, aquilo que é válido para todas as minorias também se aplica à minoria cigana. Assim falta proceder a um grande trabalho de abertura e de informação, para eliminar nos ânimos a desconfiança, que é sustentada por uma literatura acrítica e tristemente difundida na sociedade, que alimenta a atitude de rejeição.

 

CAPÍTULO IV

Evangelização e Promoção Humana 

Unidade da família humana

45.      Em Adão, Deus revela-se Criador, Pai de todos os homens e de todas as mulheres que formam uma só família, toda a humanidade. Cada pessoa foi criada à imagem de Deus (cf. Gn 1,27-28.), em solidariedade com os outros. Assim a relação de Deus com o homem, mesmo quando infelizmente não é reconhecida, permanece vital, fundamento da dignidade da pessoa humana. 

No dom da vida, Deus manifesta incessantemente o seu amor criador, assim como Cristo revela a toda a humanidade, com as suas palavras e acções, com a sua paixão e ressurreição, a presença actual deste amor criador, que também é redentor. Deste modo, a humanidade composta por filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs no Filho de Deus, é chamada a viver em conjunto numa única família enriquecida pelos dons de cada um e pelas características de cada povo. Todos são convidados a construir uma humanidade fraterna, chamada a testemunhar que o Reino de Deus já está presente na pessoa do Ressuscitado e na sua Igreja, seu início e semente (cf. LG 5).  

Direitos humanos e civis dos Ciganos

46.      A unidade da família humana manifesta-se também no reconhecimento da dignidade e da liberdade de cada pessoa, qualquer que seja a sua etnia, o seu país de origem e a sua religião, numa relação de solidariedade com todos. Além disso, a pessoa é infinitamente preciosa pois Cristo ofereceu a sua vida por cada um. Ele é o primogénito desta humanidade nova, infinitamente amada pelo Pai. Após o triunfo da Ressurreição, que sela a morte do ódio e de toda a morte, Ele difundiu o seu Espírito Santo, Espírito de verdade e de amor, Espírito de liberdade e de paz, que nos reconcilia com o adversário, nos arranca da indiferença, tornando-nos próximos de todos os membros da família humana. 

47.      Cada pessoa, única e insubstituível, é assim chamada a realizar as suas próprias capacidades, a desenvolver-se no exercício dos seus direitos e deveres, a viver do seu trabalho, no respeito recíproco. Para que tal faça parte da vida quotidiana, qualquer decisão pessoal ou colectiva deve partir da pessoa humana, nas suas relações com os outros, tendo em conta as condições de vida de carácter político e económico. A prioridade do amor pelo outro, que Cristo proclamou e viveu, deverá assim conduzir os cristãos ao amor incondicional por cada ser humano e a ocupar com Ele o lugar de servo. Foi desta forma que Ele combateu, sem violência, o desejo de poder que subjuga em particular os nossos irmãos mais vulneráveis até ao aniquilamento. 

48.      É, por isso, de grande importância e urgência o dever de trabalhar para que os Ciganos, particularmente vulneráveis, se considerem e sejam aceites como membros de pleno direito da família humana. Porém, não é possível alcançar a paz autêntica e duradoura, que deveria ser um reflexo da “família divina” (a Santíssima Trindade), fora de um contexto de justiça e desenvolvimento. Assim, no seio da população cigana, deve ser preservada a dignidade e respeitada a identidade colectiva, devendo ser encorajadas as iniciativas para o seu desenvolvimento[9]e para a defesa dos seus direitos.  

Minoria particular entre as minorias

49.      Para compreender adequadamente a história frequentemente dramática desta população, deve-se ter presente não apenas a sua situação de minoria no seio da sociedade, mas também a sua especificidade relativamente às outras minorias. Com efeito, a sua peculiaridade está no facto que os Ciganos constituem uma minoria sem uma radicação territorial precisa ou um Estado de referência original, e portanto, sem o seu eventual apoio. Esta “ausência” de garantias políticas e de protecção civil torna muito crítica a vida dos Ciganos. Enquanto que a chegada de outras populações em busca de refúgio e de segurança conseguiu, de facto, mobilizar um certo número de pessoas, a chegada dos Ciganos provocou, pelo contrário, fenómenos generalizados de rejeição. Todavia, os fluxos dos seus refugiados demonstram inequivocamente que também eles são originários de países pobres, onde, além disso, a discriminação é frequentemente acompanhada por violência. Assim, esta situação só poderá ser gerida se os Governos definirem, em conjunto, uma política comum, global e partilhada, de modo a arrancar os Ciganos à miséria e à rejeição. 

50.      Tudo isto torna particularmente necessário o interesse dos Organismos internacionais por esta população. Do mesmo modo, os Governos nacionais devem respeitar esta minoria entre as minorias e reconhecê-la, contribuindo para erradicar os episódios de racismo e xenofobia ainda disseminados, que dão origem a discriminações em matéria de emprego, de habitação e de acesso à educação. 

Também a Igreja, através do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, graças aos Representantes e aos Observadores da Santa Sé junto dos Organismos internacionais, e às Autoridades eclesiásticas das várias nações, é chamada a intervir a fim de que as decisões dos Organismos nacionais e internacionais a favor dos Ciganos sejam acolhidas pelas instâncias locais e se repercutam na vida quotidiana. 

Condições de desenvolvimento integral

51.      A educação é uma condição fundamental e imprescindível para o desenvolvimento. Relativamente a isto, enquanto, no passado, os hábitos itinerantes dos Ciganos tornavam bastante difícil a educação sistemática das jovens gerações, actualmente os obstáculos a superar residem antes no tipo de ensino ministrado. a sua integração – quando possível – no percurso educativo normal contribuirá para superar eventuais carências. Enfim, quando a semi-sedentarização ou itinerância tornam impossível a educação sistemática normal, será então necessário um esforço conjunto dos Governos, das associações ciganas, e também da Igreja, para levar à prática de qualquer outro modo a formação dos jovens ciganos. 

52.      Da mesma forma, é necessário pensar em todos os outros factores de desenvolvimento dos quais também estas populações deveriam usufruir, ou seja, a formação profissional dos jovens, o acesso aos serviços sanitários, condições condignas de habitação, previdência social, etc. Todavia, se não se tiver em conta a história dos Ciganos, a acção social tenderá a orientar-se a partir da noção de um desvio social a superar. No fundo, eles serão facilmente considerados associais que devem ser reconduzidos o mais rapidamente possível ao curso da sociedade maioritária. Deste modo, negar-se-ia a discriminação à qual os Ciganos foram submetidos durante séculos e faltaria o reconhecimento da especificidade da sua cultura. 

Pelo contrário, deve-se focar o respeito por toda e qualquer pessoa humana, também na sua dimensão colectiva, sobretudo se as condições de vida a fragilizaram. Daí derivam alguns critérios que devem ser considerados aquando da avaliação dos projectos de desenvolvimento das comunidades ciganas. Ou seja, se os Ciganos forem sistematicamente relegados para a categoria de assistidos, existe o risco, logo à partida, de que este objectivo não seja atingido. É certo que as circunstâncias podem frequentemente exigir um assistencialismo adequado, mas uma promoção autêntica deve ir muito além, a fim de que os Ciganos se tornem verdadeiramente responsáveis pelos recursos necessários ao seu desenvolvimento. 

53.      Além disso, a preparação das vias de desenvolvimento exige uma compreensão adequada das noções distintas de integração e de assimilação. De facto, a primeira deve, decididamente, ser encorajada, tendo como objectivo a plena inserção da vida e das tradições ciganas no conjunto das outras culturas, mas respeitando a própria. Pelo contrário, devem ser totalmente rejeitadas as tentativas de assimilação, ou seja, as que conduzem ao aniquilamento da cultura cigana, dissolvendo-a na da maioria. O Cigano integrado na sociedade dos gadjé deverá continuar a ser ele mesmo, isto é, preservando a identidade própria.

Por outro lado, é necessário um conhecimento da situação das comunidades a partir do seu interior. Com demasiada frequência, os Poderes públicos, submetidos à pressão de acontecimentos desumanos, que acabam por perturbar a opinião pública, ou à acção das associações ciganas e de pessoas que denunciam as condições de vida sub-humanas destas famílias, correm o risco de tomar decisões precipitadas relativamente às medidas a tomar. Em vez disso, é necessário trabalhar de forma séria, de comum acordo com os interessados, sem ignorar o modo de vida, as tradições e a especificidade do trabalho dos Ciganos. 

54.      Neste contexto, o associativismo cigano ganha importância como um interlocutor útil com vista a delinear as vias de desenvolvimento. Para tal, este associativismo deve adquirir competência e seriedade nas suas iniciativas, de modo a representar toda a sua população e a ser consultado pelos Poderes públicos na elaboração de projectos de grande alcance, com o objectivo de melhorar a habitação, as áreas de estacionamento, a escolarização, as condições de vida dos sedentários, dos semi-sedentários ou daqueles que viajam. 

Perspectiva cristã da promoção

55.     Mesmo que o lançamento de projectos concretos de promoção humana compita primordialmente ao Estado, poderá ser conveniente e também necessário que instituições da Igreja sejam envolvidas em iniciativas concretas neste âmbito, tornando possível que os próprios Ciganos sejam protagonistas. Contudo, compete, mais propriamente, à missão fundamental da Igreja chamar a atenção das instâncias públicas para as dificuldades desta população. 

56.      No entanto, é necessário não esquecer que «o desenvolvimento de um povo não depende primeiramente nem do dinheiro, nem das ajudas materiais, nem das estruturas técnicas, mas da formação das consciências, da maturidade das mentalidades e dos costumes. O homem é o protagonista do desenvolvimento, não o dinheiro ou a técnica» (RM 58).

 

CAPÍTULO V

Aspectos particulares da Pastoral para os Ciganos 

57.      A evangelização dos Ciganos é missão de toda a Igreja, dado que nenhum cristão deveria ficar indiferente perante situações de marginalização ou de distanciamento da comunhão eclesial. Apesar de a pastoral para os Ciganos ter uma especificidade própria e exigir aos seus protagonistas directos uma formação cuidada e específica, uma atitude de acolhimento deve, assim, manifestar-se em toda a comunidade católica. É assim necessário sensibilizar principalmente todo o Povo de Deus não apenas no sentido de superar a hostilidade, a rejeição ou a indiferença, mas também para alcançar um comportamento abertamente positivo no relacionamento com os nossos irmãos e irmãs Ciganos. 

Aspectos específicos desta pastoral

58.      Para delinear convenientemente a pastoral para os Ciganos, a dimensão antropológica tem uma grande relevância, até porque eles estão especialmente abertos ao impacto “sensitivo” de um acontecimento, sobretudo quando ele diz respeito ao ambiente familiar. A sua relação com a história é sempre profundamente “emotiva”. Com efeito, os seus pontos de referência no espaço e no tempo não são fixados pela geografia ou pelas datas do calendário, mas, antes, pela densidade afectiva de um encontro, de um trabalho, de um incidente, de uma festa. As suas reacções são sobretudo imediatas, guiadas por um critério mais intuitivo do que por um pensamento teórico. Tudo isto torna indispensável uma grande capacidade de discernimento, de iniciativa e de criatividade no modo de delinear a acção pastoral. 

Abordagem e formas de comunicação 

59.      No contexto da mentalidade dos Ciganos, a acção pastoral será mais incisiva se se desenvolver no seio de pequenos grupos. Nesse ambiente é mais fácil a personalização e a partilha da experiência de fé, enquanto se participa nos mesmos acontecimentos, iluminando-os com a luz do Evangelho e se transmitem as experiências únicas do encontro com o Senhor. Em tais grupos, os Ciganos encontram-se consigo próprios e com a sua cultura e é apreciado o seu “protagonismo” e a sua responsabilidade laical. Pelo contrário, o anonimato despersonalizado retira à pastoral uma grande parte das suas potencialidades.

60.      A Palavra de Deus anunciada aos Ciganos nos vários âmbitos da acção pastoral será acolhida com maior facilidade se for proclamada por alguém que, em concreto, se tenha mostrado solidário para com eles no decurso dos acontecimentos da vida. Além disso, no âmbito concreto da catequese, é importante incluir sempre um diálogo que permita aos Ciganos exprimir como interpretam e vivem o próprio relacionamento com Deus. Frequentemente, as situações vividas dizem mais do que as ideias redundantes nas quais correm o risco de se perder. 

61.      Além disso, deve-se ter em consideração a oportunidade de realizar traduções de textos litúrgicos, da Bíblia, de livros de orações, para a língua utilizada pelos vários clãs nas diversas regiões. Do mesmo modo, o recurso à música – muito apreciada e praticada pelos Ciganos – nos encontros pastorais e nas celebrações litúrgicas é um suporte muito válido, que convém promover e desenvolver. Enfim, dado que a memória visual dos Ciganos é extraordinariamente desenvolvida, os apoios didácticos em suporte de papel e vídeo, com fotos significativas e com toda a variedade oferecida pelas novas tecnologias, se forem bem adaptadas à mentalidade cigana, podem oferecer uma ajuda preciosa, ou até mesmo indispensável. 

Pastoral sacramental 

62.      O pedido dos sacramentos por parte das famílias situa-se num contexto que diz respeito ao relacionamento recíproco entre a Igreja e os Ciganos. Eles procuram preferencialmente o Rašaj (sacerdote), ou a equipa paroquial que soube mostrar-se acolhedora e aberta aos seus problemas, sem dúvida porque, junto dos seus membros, eles partilharam também momentos dolorosos ou perigosos da sua vida. Antes de dar uma resposta precipitada, é necessário discernir a qualidade da relação existente entre a família cigana e a comunidade cristã local. Esta avaliação determina a autenticidade do pedido, e deverá incidir sobre a preparação para o sacramento e o seu desenvolvimento. 

63.      Em geral, o baptismo é o sacramento mais solicitado. Porém deve-se assegurar o acompanhamento espiritual da família e do baptizado, de modo a completar todo o ciclo da iniciação cristã. A resposta dada a partir do primeiro pedido de baptismo será, assim, determinante e repercutir-se-á sobre o futuro, sobre toda uma vida. 

Deste modo, o diálogo preparatório para a celebração do baptismo deverá partir da existência cigana quotidiana, de outra forma correr-se-á o risco de utilizar uma linguagem religiosa paralela à sua vida, à qual aderirão apenas exteriormente. Além disso, é necessária uma escolha cuidadosa do padrinho e da madrinha, um papel que implica a aceitação de uma relação privilegiada e continuada com a família. Por este motivo, a sua presença na preparação é muito importante, embora nem sempre seja facilmente assegurada. 

64.      Devem, assim, ser evitados quer os baptismos sem adequada preparação, quer a imposição das exigências que valem para os gadjé, como se os Ciganos fossem membros “habituais” da comunidade local. Se o celebrante não tiver uma formação específica para uma catequese adaptada aos Ciganos, é conveniente que se aconselhe com o Capelão dos Ciganos mais próximo. Durante a celebração é importante cuidar-se a linguagem, de modo a poder alimentar e desenvolver a fé dos pais, dos padrinhos, das madrinhas e de toda a família presente. Nem todas as palavras utilizadas por um gadjó são, de facto, compreensíveis para um Cigano, pois as imagens utilizadas não têm o mesmo impacto numa visão do mundo diferente.

Por outro lado, o baptismo deveria ser celebrado na presença dos membros de todo o Povo de Deus. Como no caso dos outros católicos, a família cigana, na sua diversidade, será associada à preparação e à celebração. Pode-se chegar, assim, a uma experiência de catolicidade capaz de iniciar uma nova relação entre Ciganos e gadjé, principalmente se as relações estabelecidas por ocasião da preparação forem mantidas, posteriormente, partilhando a sua vida. 

65.      É importante, sobretudo para os jovens, que surja uma pastoral da confirmação, sacramento que é praticamente desconhecido pelas comunidades ciganas. A preparação para este sacramento permite recuperar, com base no modelo catecumenal, as anteriores carências da iniciação cristã, educando para uma adesão livre e consciente à Igreja. A confirmação, enquanto introduz o baptizado na plena participação na vida do Espírito, na experiência de Deus e no testemunho da fé, revela-lhe também o significado da sua incorporação eclesial e da sua responsabilidade missionária. Parece também importante destacar o outro “sujeito” do sacramento, que é a comunidade, a qual deve ser incluída na catequese de forma intergeneracional, para que por ocasião da celebração dos “seus crismados”, ela própria possa viver a graça de um novo Pentecostes, sendo confirmada pelo sopro do Espírito, na sua vocação cristã e na sua missão evangelizadora. 

66.      A eucaristia é fonte e vértice da comunhão em Cristo e com a Igreja, memorial da morte e ressurreição do Senhor, porém um sacramento ainda não recebido no seu pleno significado pelos Ciganos. No entanto, ele tem uma equivalência importante na tradição de alguns grupos acerca dos banquetes sagrados, habitualmente celebrados em honra do Santo protector da família ou pela paz dos defuntos. Ali se louva a Deus pelas graças recebidas e se partilham os alimentos, em primeiro lugar o pão e o vinho, que frequentemente são abençoados pelo chefe da família anfitriã. Esta experiência de comunhão em convívio, durante a qual os Ciganos afirmam a pertença à própria comunidade, pode ser permeada por uma contínua referência a Deus enquanto fonte dos bens que dão sentido e valor à vida, em cujo caso se torna ponto de partida para uma progressiva introdução na comunidade cristã reunida em oração. Tal sucede sobretudo na liturgia eucarística, onde o sacramento poderá ser revelado e celebrado como uma partilha do mesmo pão da vida, à mesa do Pai, no encontro com o mistério pascal, celebrado na eucaristia enquanto memorial de Cristo que se deu por nós. Retribuímos-Lhe oferecendo-nos nós próprios a Deus e ao próximo, na caridade. 

67.      O sacramento da penitência ou reconciliação, embora abandonado na forma sacramental, encontra uma referência precisa quer no hábito dos Ciganos de pedir continuamente e também publicamente perdão a Deus pelas próprias faltas, quer na concepção e no comportamento com o qual a tradição regula a reconciliação, quando readmite um membro na comunidade, onde tinha sido declarado “impuro” e banido por infracções graves ao código ético. Assim, o sacramento torna-se um sinal visível de um processo de conversão, no qual, por um lado, é o próprio Jesus que, mediante o ministério da Igreja, dá o perdão misericordioso do Pai, inseparável da reconciliação com os irmãos, e por outro lado é a resposta humana sustentada pela graça do Espírito, que se abre à consciência moral recta na adesão radical a Deus. 

68.      No que se refere ao matrimónio, deve-se ter em conta que este está inscrito na cultura e tradição cigana com um vasto leque de rituais, dependendo do grupo a que pertencem, mas com igual carácter. Os dois contraentes assumem, assim, todos os direitos e deveres conjugais perante a comunidade, que consagra a validade da união, enquanto status permanente onde os valores éticos e naturais – liberdade, fidelidade, indisolubilidade e fecundidade – são fundamentalmente defendidos. A união matrimonial é aqui entendida como sendo inteiramente diferente de uma simples união sexual e apresenta-se assim como um acontecimento extraordinário, que se aproxima da visão católica do matrimónio, podendo, desse modo, ser entendido pelos baptizados, como uma base significativa do futuro sacramento, cuja “forma” é solicitada pela Igreja. A família, coração e fundamento da cultura e da estrutura social dos Ciganos, assim renovada sacramentalmente, torna-se terreno fecundo para a formação de pequenas comunidades cristãs, na perspectiva da gradual e plena participação na vida da Igreja através dos vários carismas e ministérios. 

69.      A unção dos doentes é um sacramento que não só não é praticado mas também é desconhecido enquanto sinal sacramental de Cristo e oração de toda a Igreja pelo doente. A recusa do sacramento deve-se à falsa convicção de que ele esteja ligado à morte. Daí a necessidade de uma evangelização do sofrimento, segundo a qual o enfermo, unido a Cristo, que carregou os sofrimentos da humanidade (cf. Mt 8,17), vive a experiência da sua enfermidade como abandono confiante a Deus Pai e como abertura generosa à solidariedade com os outros pacientes, dispondo-se assim a acolher o dom da cura, que Deus pode operar nas profundezas da alma, irradiando os seus efeitos sobre o corpo. O sacramento pode encontrar um ponto de partida eficaz na grande solicitude pelos doentes, e em particular pelos moribundos, que são levados do hospital para “casa” para que possam ainda beneficiar do amor e da ternura da família e da comunidade.

A liturgia dos defuntos, insistentemente pedida devido ao temor que o defunto não se sinta devidamente honrado, é chamada a purificar e a aperfeiçoar, à luz do mistério pascal, o culto tradicional dos mortos, vivido em todos os grupos, embora em modalidades diversas, de modo comunitário, com grande ênfase e generosidade. 

As peregrinações  

70.      As peregrinações são expressões de devoção muito apreciadas pelos Ciganos. Durante as mesmas verificam-se, de facto, ocasiões de encontro agradáveis para as suas famílias. Frequentemente os “lugares sagrados” de encontro com o “Santo” ou a “Santa” estão ligados à história familiar. Um acontecimento, uma promessa, um caminho de oração vividos como um encontro pessoal com o “Deus do Santo ou da Santa” cimentam, com efeito, a fidelidade de um grupo. Se a Igreja, graças à presença de Capelães, de religiosos/as ou de leigos, partilha a oração dos Ciganos compreendendo-a, lhes administra o baptismo ou abençoa um matrimónio, a peregrinação preparará os participantes para uma experiência de catolicidade que conduzirá da “Santa” ou do “Santo” à pessoa de Cristo, e a laços eclesiais com os gadjé.

Além disso, os baptismos preparados nestes lugares de peregrinação podem ser celebrados com maior profundidade e autenticidade, dado que são mais familiares e são escolhidos desde há muito tempo pelos próprios Ciganos. Nestas ocasiões, será também possível, mediante catequeses adaptadas aos adultos, aprofundar a fé em Cristo partindo da religiosidade dos peregrinos. 

71.     Também a Via Sacra, desenvolvida e repetida especialmente durante os dias da peregrinação, é geralmente muito apreciada. A Via Sacra é, assim, vivida como uma celebração penitencial que os Ciganos podem animar com maior facilidade, já que as estações da Via Sacra de Cristo lhes falam ao coração, reconduzindo-os aos sofrimentos da vida e convidando-os a trabalhar a favor da reconciliação com os gadjé e entre os Ciganos. Porém, também a recitação piedosa do Rosário faz parte do peregrinar orante.

A presença dos Sacerdotes, religiosos/as e leigos que vivem próximo deles durante alguns dias, torna outrossim possível múltiplos encontros e conversas nas quais os Ciganos tomam a palavra e testemunham a sua fé, alimentando-se de um Evangelho partilhado. Nestas ocasiões existe contudo a possibilidade de contactos com os gadjé, que frequentemente modificam a imagem negativa dos Ciganos na opinião pública e destroem preconceitos generalizados. 

72.      Por este motivo, é conveniente promover os vários tipos de peregrinação, mas em particular aquelas com uma dimensão internacional, nas quais mais facilmente se experimenta a catolicidade vivida. Do mesmo modo, devem ser mantidas as peregrinações regionais, mais acessíveis também para as famílias pobres. Mesmo que estas peregrinações, menos conhecidas, não tenham geralmente uma função formativa, podem, no entanto, transmitir o gosto pelo Evangelho, alimentando a fé de cada um. Além disso, elas constituem uma boa ocasião para promover as grandes peregrinações, através dos testemunhos das famílias que nelas já tenham participado, vivendo momentos inesquecíveis e encontros inéditos. 

73.      É necessário, enfim, que a comunidade responsável por um santuário coordene a peregrinação cigana e entre em contacto com responsáveis pela respectiva equipa pastoral, sobretudo se in loco não estiverem habituados à sua cultura e às suas tradições. Deste modo, poder-se-ão, também, analisar as eventuais reacções dos habitantes da cidade ou do país onde se situa o santuário, ou das populações vizinhas, para conhecer o teor das intervenções que se considerem oportunas e estabelecê-las. Se não se agir antecipadamente, a acomodação das famílias ou o estacionamento das caravanas poderão, de facto, suscitar tensões cuja recordação negativa durará por muito tempo. 

Os desafios da Pastoral dos Ciganos

Passagem da suspeita à confiança

74.      O facto de se apresentar com amor e com o desejo de proclamar a Boa Nova não é suficiente para criar uma relação de confiança entre Ciganos e Agente pastoral gadjó, dado que a história tem o seu peso e, depois de tantas injustiças sofridas, a população cigana desconfia perante iniciativas de quem procure penetrar no seu mundo. A superação desta atitude inicial só pode provir de demonstrações concretas de solidariedade e também através da partilha da sua vida.

Cada demonstração e cada acto de perdão mútuo consolidam, pois, a confiança e a solidariedade, favorecendo o estabelecimento de relações positivas entre Ciganos e gadjé. Neste contexto se insere a palavra do Papa João Paulo II aos fiéis, em 12 de Março de 2000, quando foi pedido perdão pelos pecados cometidos nas desavenças entre os Ciganos e os filhos da Igreja ao longo da história[2]

Das várias crenças à fé

75.      Paralelamente ao que acontece entre os gadjé, muitos Ciganos são baptizados mas não são evangelizados. A “crença em Deus” apenas, não é suficiente, segundo a visão da fé cristã, dado que é necessário chegar ao acolhimento autêntico de Jesus Cristo e da sua mensagem. A passagem das crenças à fé pode, eventualmente, seguir itinerários de tipo catecumenal, que levem os baptizados ao encontro jubiloso com a pessoa do Senhor.

Este esforço rumo à maturidade da fé cristã deveria erradicar aquela credulidade desviante que, com frequência, leva à prática da quiromancia e, mais em geral, à superstição. Devem, igualmente, ser superadas as concepções erradas sobre o significado dos ritos litúrgicos. Neste contexto, é necessário ponderar com equidade os pedidos de sacramentos, motivados por intenções erradas ou incompletas, como seja o desejo da saúde corporal da criança.  

Eclesialidade, ecumenismo e diálogo inter-religioso 

76.      Uma fé amadurecida é também fé eclesial, isto é, vivida estavelmente no seio da Igreja. Enquanto o contacto com membros de outras confissões cristãs e religiões poderia ser uma ocasião de enriquecimento, não é favorável ao crescimento da fé uma mudança de filiação numa determinada Igreja ou comunidade eclesial, dado que entre aquelas e a Igreja Católica existem importantes divergências, não só de carácter histórico, sociológico, psicológico e cultural, mas sobretudo na interpretação da verdade revelada (cf. UR 29). Do mesmo modo, deve-se evitar a frequência simultânea de duas ou mais igrejas, o que significaria uma ruptura anómala entre a fé e a sua celebração no culto.

77.      Além disso, é necessário distinguir cuidadosamente as confissões cristãs das seitas e dos “novos movimentos religiosos”. Estes últimos podem eventualmente atrair – às vezes mesmo com métodos permeados de proselitismo não evangélico – a religiosidade inata dos Ciganos mas não se configuram como uma realidade autenticamente eclesial. Por isso deverá fazer-se o possível para que os Ciganos não caiam em armadilhas sectárias.

De qualquer forma, é preciso ter presente que as frequentes migrações os colocam em contacto com gadjé e Ciganos pertencentes a outras confissões e religiões e daí surge a necessidade de delinear a pastoral numa perspectiva ecuménica e inter-religiosa equilibrada, quer na forma de apresentar a mensagem evangélica, quer na relação com os crentes das outras confissões e religiões. 

78.      Os novos movimentos eclesiais, que o Espírito Santo suscita na Igreja, poderão desempenhar um papel especial nesta pastoral específica. O forte sentido da dimensão comunitária, a abertura, a disponibilidade dos seus membros e a cordialidade que lhes é característica podem efectivamente constituir um ambiente concreto para a expressão “emocional” religiosa dos Ciganos, favorecendo igualmente uma melhor evangelização, numa interacção mútua.

Do mesmo modo, seria útil criar na pastoral específica dos Ciganos um espaço para as associações católicas internacionais e/ou nacionais, que permaneçam, porém, e segundo as circunstâncias, em constante relação de comunhão e de colaboração com o Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, com a Igreja local e a Direcção nacional que se ocupa dos Nómadas.

A secularização

79.      A este propósito, constatamos que a secularização generalizada de muitas sociedades de hoje envolve, cada vez mais, também os Ciganos, e, em particular, aqueles que estão mais integrados no mundo dos gadjé. Esse abalo tem a particularidade de os encontrar “menos preparados”, dado que a situação de separação do resto da sociedade os tinha, até o presente, poupado a este perigo. Agora, pelo contrário, quase que sofrem um impacto repentino. Com efeito, a secularização exerce uma influência muito especial no mundo juvenil, mais facilmente atraído pelas falsas perspectivas oferecidas, em prejuízo da religiosidade vivida no seio das famílias. Os jovens entram cada vez mais em contacto com outros jovens gadjé, que frequentemente não manifestam nenhum interesse religioso, suscitando nos Ciganos perguntas ignoradas pelos seus pais. Assim, estes não estão preparados para responder a perguntas que nunca por si foram colocadas, porque até agora Deus era “evidente”. Esta situação torna urgente uma pastoral juvenil dos Ciganos, que deverá ter prioridade.

 

CAPÍTULO VI

Estruturas e Agentes Pastorais 

80.      Salvaguardando em absoluto o primado da caridade, que desperta nas pessoas e nas instituições o desejo de favorecer a plena comunhão com Cristo de cada ser humano e de cada comunidade, incluindo as ciganas, é necessário, contudo, considerar quais são as estruturas mais adequadas para o começo da pastoral para, entre e com os Ciganos, onde ela ainda não se tenha iniciado, ou para o seu aperfeiçoamento. Dado que nos encontramos perante a realidade complexa e pluriforme dos Ciganos e que a situação das várias Igrejas particulares é também muito diversa, os critérios gerais aqui referidos serão consequentemente aplicados às circunstâncias locais concretas, com as adaptações oportunas. Além disso, deve-se distinguir o que se aplica a nível local do que se estende a toda uma Nação ou região ou, até, a toda a Igreja, mesmo que esteja assegurada a sua relativa coordenação e a necessária comunhão hierárquica.  

O Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes

81.      O Papa João Paulo II, na Constituição Apostólica Pastor Bonus[11], de 28 de Junho de 1988, confiava ao Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes o dever de dirigir “a solicitude pastoral da Igreja para com as necessidades particulares daqueles que foram obrigados a abandonar a sua pátria ou que não a têm de todo; do mesmo modo, [o Conselho] procura seguir com a devida atenção as questões relativas a esta matéria” (art. 149). Ele “empenha-se com o fim de que nas Igrejas locais seja oferecida uma assistência espiritual eficaz e apropriada, se necessário também mediante estruturas pastorais oportunas, quer para os refugiados e os exilados, quer para os migrantes, os nómadas e a gente do circo” (art. 150 § 1). Este Dicastério é, portanto, uma nova expressão do cuidado constantemente manifestado pela Igreja nas últimas décadas, com sucessivas criações de vários Organismos e Departamentos que funcionaram no seio da Cúria Romana. 

82.      A realização concreta do mandato confiado ao Conselho Pontifício desenvolve-se através do trabalho quotidiano de animação, promoção e coordenação da pastoral, bem como da sua presença nas diversas actividades do apostolado dos Nómadas. O Conselho Pontifício dirige-se portanto às Conferências Episcopais, às correspondentes Estruturas Hierárquicas das Igrejas Orientais Católicas – no respeito pela competência da respectiva Congregação – e às Federações regionais e continentais assim como às Dioceses/Eparquias individuais, para estimular este empenho pastoral, na sua actuação específica. Além disso, com o fim de privilegiar a difusão e a partilha das experiências concretas nas várias Igrejas locais, o próprio Dicastério organiza congressos, encontros e seminários internacionais e participa, na medida do possível, naqueles que também são organizados por outras entidades. Além disso, mantém contactos directos com várias entidades internacionais empenhadas na promoção humana e na pastoral das gentes nómadas. 

As Conferências Episcopais e as correspondentes Estruturas Hierárquicas das Igrejas Orientais Católicas

83.       Considerando o carácter específico da pastoral para os Ciganos, cabe um papel especial à Conferência Episcopal do país onde vivem os Ciganos e às correspondentes Estruturas Hierárquicas das Igrejas Orientais Católicas as quais, através da Comissão instituída no seu seio para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, terão uma atenção particular pela especificidade cigana. Na distribuição dos recursos humanos e materiais disponíveis, a Conferência Episcopal, e a correspondente Estrutura Hierárquica das Igrejas Orientais Católicas, estará, pois, atenta a que a pastoral para os Ciganos não sofra discriminações, mas receba um tratamento proporcional à sua importância, também no contexto das outras minorias.

Os deveres da respectiva Comissão incluem não apenas a coordenação das estruturas locais, mas também os esforços para sensibilizar fiéis e Pastores relativamente à realidade cigana. Os Bispos darão, pois, a devida atenção a esta pastoral durante algumas das suas sessões de formação permanente (cf. PG 24). Será também necessário promover e prestar informação nas comunidades, apoiada pelo conjunto dos Pastores, mesmo que o Promotor episcopal – ou alguém por ele – receba um encargo específico que, de qualquer modo, não pode desenvolver sozinho. Além disso, tendo em conta a distribuição geográfica da população cigana, poderia ser conveniente uma certa coordenação pastoral a nível regional ou continental, além de nacional. 

O Episcopado e a pastoral dos Ciganos

84.      Da relação de imanência recíproca entre a Igreja universal e as Igrejas particulares (cf. LG 13)[12] deriva uma catolicidade que une e modela ambas as dimensões eclesiais. Cada uma das Igrejas particulares é, pois, católica em si mesma, com uma catolicidade que se traduz em comunhão cordial. A Igreja, que «fala em todas as línguas e entende e abraça todas as línguas, na caridade, superando, assim, a dispersão babélica» (AG 4), abrange, penetra e assume as diversidades humanas na plenitude católica (cf. AG 6). 

85.      É, portanto, dever dos Bispos manter e aprofundar a unidade das Igrejas particulares, na missão, reconhecendo e valorizando cada experiência humana aberta à dimensão religiosa e transcendente, com particular solicitude por aqueles fiéis que estão em situação de marginalização. A minoria cigana deve atrair assim a sua atenção pastoral, evitando que o carácter “internacional” desta população se traduza na ausência da sua percepção a nível local e regional. 

86.      Enquanto guardiães da comunhão, por excelência, os Bispos tenderão concretamente a preservar a unidade e a identidade cigana, bem como a união entre esta e a realidade eclesial autóctone. Com efeito, se não respeitar a sua identidade, a Igreja particular não pode construir a sua própria unidade. Igualmente é uma exigência da comunhão eclesial que os Ciganos sintam como própria a Igreja local na qual se encontram. Por isso os Pastores procurarão estimular este sentimento. Uma expressão prática desta comunhão eclesial é, certamente, o diálogo sincero e autêntico entre as várias comunidades estáveis autóctones e os Ciganos. É, ainda, dever dos Bispos privilegiar e agilizar esta comunicação, na plena consideração, precisamente, dos valores, da cultura e da identidade de cada um.  

Possíveis estruturas pastorais de jurisdição pessoal

87.      A peculiaridade da pastoral cigana é tal que uma Igreja particular ou local poderá não ter possibilidades adequadas – sobretudo devido à falta de Agentes pastorais adaptados – para implementá-la com eficácia. Será, então, necessário pensar também na possibilidade de uma direcção interdiocesana ou nacional/sinodal, que responda perante a Conferência Episcopal ou a correspondente Estrutura Hierárquica das Igrejas Orientais Católicas e que possa ocupar-se da distribuição equitativa dos recursos, no sentido amplo do termo, da preparação dos Agentes pastorais, da coordenação e da relação com instituições semelhantes de outros países, etc. A este propósito, poderia ser útil, ou até necessária, uma unidade de direcção pastoral que siga eficazmente o trabalho e as condições nas quais vivem os Capelães e os outros Agentes pastorais, salvaguardando o poder dos Bispos diocesanos. 

88.      De facto, as dimensões do “fenómeno cigano” e as suas peculiaridades nem sempre facilitam uma resposta pastoral eficaz, implementada exclusivamente pela figura da “Capelania” diocesana ou interdiocesana. Poder-se-ia procurar uma solução abrangente, duradoura, mais segura e com margens de autonomia adequadas – sempre em convergência harmoniosa com as Autoridades eclesiais locais – no âmbito das estruturas pastorais previstas na legislação e na prática da Igreja[13]

O Promotor episcopal

89.      É necessário que no seio das Conferências Episcopais e das correspondentes Estruturas Hierárquicas das Igrejas Orientais Católicas interessadas seja nomeado um Bispo Promotor da pastoral para os Ciganos. É conveniente que ele tenha alguma experiência pastoral junto desta população, mas em todo o caso deverá ter uma formação pessoal suficiente para penetrar na especificidade do mundo cigano e compreendê-la, já que esta não é redutível àquilo que é geralmente afirmado ou suposto. O Promotor episcopal, como é evidente, deverá permanecer em contacto estreito com a respectiva equipa nacional e levar-lhe também a visão da Igreja universal em relação à Igreja local, a fim de assegurar que seja compreendida a dimensão geral para além da relação flutuante dos Ciganos com a sociedade e com a Igreja. Ele mostrar-se-á particularmente solícito em favor dos Ciganos, apoiando a acção pastoral desenvolvida em seu benefício por Capelães e Párocos. Além disso, será necessário informar os outros Bispos sobre a presença cigana nas suas dioceses/eparquias – e vice-versa – e convidá-los, eventualmente, a nomear um sacerdote, uma religiosa ou um leigo para se encarregarem da evangelização entre os Ciganos. Além disso, nos países em que esta população é numerosa e em expansão, um dos primeiros deveres será o de criar uma estrutura pastoral nacional/sinodal, regional, ou no âmbito de uma Igreja sui iuris específica, ou de reforçar a que já existe. 

A Direcção nacional

90.      Embora as “Capelanias” nacionais, ou semelhantes, não estejam organizadas de modo uniforme, em geral elas têm um Director nacional, eventualmente apoiado por um ou dois assistentes, segundo a composição da população cigana e o âmbito geográfico em que ela está presente. Encontros nacionais, ou semelhantes, nos quais participam Ciganos e sacerdotes, religiosas e leigos gadjé, permitem tratar os grandes problemas que dizem respeito a esta população e fazer propostas para a acção pastoral eclesial. Neste âmbito, a orientação do Promotor episcopal é indispensável. O centro dinâmico de cada actividade tenderá a fazer com que os próprios Ciganos sejam responsáveis pelo seu destino. O Director nacional, ou equivalente, terá um vasto conhecimento da população cigana, uma visão internacional e experiência no terreno e de trabalho em equipa. 

91.      O Director nacional, ou equivalente, encorajará também a criação – se necessário – de equipas regionais e diocesanas com o dever de analisar a experiência comum, quer tendo em vista uma maior justiça nas relações com os Ciganos, quer para melhorar a qualidade e a continuidade da assistência religiosa e da catequese. Seguidamente, serão propostas sessões anuais de formação para os Capelães, religiosos/as e leigos. Seria também oportuno organizar períodos de convivência junto de famílias e comunidades ciganas, de modo a compreender, a partir do seu interior, a mentalidade, a rede de relações, a pobreza relativa, as qualidades e as carências existentes. É uma experiência difícil mas também enriquecedora. Do mesmo modo, a Direcção nacional, ou equivalente, poderá encorajar a criação de “escolas da fé” para os casais e as famílias ciganas, chamados a participar, de forma mais concreta, na animação cristã das suas comunidades. 

As Capelanias/Missões

92.      Com o fim de não excluir ninguém da comunhão eclesial, uma experiência já testada junta às estruturas pastorais implantadas em base local – fundamentalmente as paróquias – outras estruturas, dirigidas por sua vez a diversas categorias de pessoas necessitadas de uma pastoral específica. Encontramos assim na Igreja Capelanias/Missões para os migrantes, os refugiados, os universitários, os doentes nos hospitais, os presos, o mundo do desporto e do espectáculo, etc. Recordamos este contexto porque nele encontra o seu lugar a “Capelania” que realiza uma pastoral específica dos Ciganos e é dotada de todos os meios necessários para cumprir a sua missão. 

Os Capelães/Missionários

93.      Para exercer o ministério pastoral específico com os Ciganos é necessária uma preparação especial, guiada pelo Promotor episcopal e dirigida pela Direcção nacional, ou equivalente, em comunhão com os Bispos diocesanos/eparquiais interessados. Esta tarefa de formação de presbíteros para o mundo cigano exige assim uma equipa nacional, ou equivalente, eficiente e preparada. De todas as formas, deveria também trabalhar um número de Capelães proporcional à presença in loco da população cigana. 

           Uma tal pastoral envolve, naturalmente, também os Párocos locais, que não devem pôr todo o peso do envolvimento apostólico com os Ciganos sobre os ombros dos Capelães/Missionários de uma pastoral específica. Entre estes e os Párocos deverá desenvolver-se, assim, uma grande sinergia e um espírito de colaboração. De facto, cabe especialmente a estes últimos sensibilizar pastoralmente a comunidade paroquial no que se refere aos Ciganos, enquanto se devem mostrar dispostos a ser ajudados pelo Capelão/Missionário no ministério junto deles.

94.      Dado que o ministério nas Capelanias/Missões de pastoral específica para os Ciganos se revela um compromisso particularmente difícil, os Sacerdotes destinados a esta tarefa devem ser ajudados e encorajados.

Além disso, recomenda-se a coordenação entre pastoral local e pessoal e espera-se que os Párocos e aqueles Capelães/Missionários procurem e ponham em prática um diálogo proveitoso entre si. É também importante que nos Seminários e nos Institutos de formação dos religiosos/as dos países interessados se ensinem pelo menos algumas noções sobre a pastoral dos Ciganos, em geral. 

95.      O decreto da Comissão Pontifícia para a Pastoral das Migrações e do Turismo, de 19 de Março de 1982, continha uma lista de sete faculdades especiais das quais usufruíam os Capelães de algumas categorias de fiéis, entre os quais os Capelães dos nómadas (faculdades que se estendiam também ao sacerdote que, em caso de ausência ou impedimento do Capelão, tivesse sido nomeado em sua substituição). Deve-se ter em conta que quando este decreto foi publicado, para além do Código de 1917, estava em vigor a instrução De pastorali migratorum cura da Sagrada Congregação para os Bispos, de 22 de Agosto de 1969, cujo n. 36 § 2 previa que a nomeação dos Capelães se realizasse através de um rescrito da mesma Sagrada Congregação.

De qualquer modo, ao considerar as faculdades dos Capelães/Missionários dedicados à pastoral a favor dos Ciganos, deve-se ter presente agora não apenas a nova disciplina do Código de 1983 e a do CCEO relativamente às matérias singulares às quais as faculdades se referem, mas sobretudo o facto de que os Capelães/Missionários são nomeados pelo Ordinário/Hierarca competente, por exemplo a norma do CIC cân. 565 e do CCEO cân. 585. Portanto, enquanto tais, as faculdades referem-se a uma determinada diocese/eparquia, com exceção da faculdade de ouvir as confissões, dada agora normalmente ubique terrarum[14].

Portanto, restaria apenas a faculdade de guardar o Santíssimo Sacramento em roulotte, embora também aqui a normativa do cân. 934 conceda uma maior possibilidade de acção ao Ordinário do que acontecia com o cân. 1265 do Código de 1917. De todo modo o Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e itinerantes pode conceder símile indulto, a certas condições. 

Agentes pastorais ao serviço das comunidades ciganas

96.      Os Agentes pastorais, homens e mulheres, casais ciganos ou de gadjé, leigos, diáconos, religiosos não ordenados sacerdotes e religiosas são chamados a colocar-se ao serviço dos Ciganos com uma responsabilidade concreta e eventualmente com uma “carta de missão” do Bispo, ou de quem dirige a estrutura pastoral criada para tal fim. Cabe ao Bispo diocesano ou ao Hierarca do lugar reconhecer e definir o serviço exigido, preocupando-se em confiar a formação à equipa nacional, ou à regional, sob a coordenação do Promotor episcopal. 

97.      Em geral, para a formação, dever-se-á recordar que um agente pastoral, mesmo que tenha relações constantes com famílias ciganas, não é facilmente aceite ou reconhecido pela comunidade local, ao mesmo tempo que nem sempre é imediatamente aceite pelos próprios Ciganos. Deste modo, ele deverá intensificar os seus contactos para conhecer a sua história e situação e para compreender a rede de relações de um bairro cigano ou de uma área de estacionamento.

Além disso, os Agentes pastorais deverão preocupar-se em formar uma equipa de reflexão com a presença de Ciganos, o que não é fácil de realizar, sobretudo no início. Por este motivo, vários Agentes pastorais cansam-se e ficam desencorajados dado que se sentem sozinhos para analisar as suas experiências e suportar o seu peso. Situados na fronteira de dois mundos culturalmente diversos, eles devem, pelo contrário, contar com uma comunidade cristã acolhedora que procure, também graças a eles, ir ao encontro dos Ciganos e caminhar juntos, para que a fraternidade cristã universal que é proclamada seja uma realidade. 

As comunidades-ponte

98.      Em tais situações de dificuldade experimentada e objectiva, as chamadas comunidades-ponte, constituídas por Agentes pastorais gadjé que partilham a vida de uma comunidade cigana, demonstraram ser uma expressão válida de unidade orgânica e devem, portanto, ser encorajadas. De facto, a partilha da vida quotidiana tem frequentemente mais valor do que muitos discursos, pelo que aquela se revela como sendo quase indispensável com o fim de que também as comunidades cristãs se libertem dos preconceitos e das condenações generalizadas dos Ciganos e aceitem ir ao seu encontro.

A intervenção do Promotor episcopal e do Bispo diocesano/eparquial neste âmbito é particularmente decisiva, de modo que essas comunidades-ponte sejam apoiadas e promovidas, e ao mesmo tempo não se tornem uma justificação fácil para o desinteresse dos outros cristãos. Pelo mesmo motivo, o promotor episcopal e o Ordinário diocesano ou o Hierarca do lugar serão sistematicamente informados sobre o funcionamento da comunidade-ponte. 

Agentes pastorais ciganos

99.      A partir de uma pastoral bem implantada deverá nascer, como fruto natural, um “protagonismo” dos próprios Ciganos. Estes serão assim apóstolos de si próprios. Também desta forma seriam assim cumpridas as palavras do Papa Paulo VI, que afirmou, embora noutro contexto: «É necessária uma incubação do “mistério” cristão no génio do vosso povo, para que a sua voz nativa, mais límpida e mais franca, se eleve harmoniosa no coro das vozes da Igreja universal»[15].

De qualquer modo, em geral, os leigos ciganos empenhados na pastoral preferem uma tarefa não definitiva e renovável, dado que, de facto, as suas condições de vida, em maior grau do que as das outras populações, estão sujeitas às incógnitas da existência. A pobreza de alguns familiares, por exemplo, quando se torna insuportável, impossibilita-lhes o exercício da sua própria responsabilidade apostólica, dado que a urgência de lutar pela sobrevivência absorve todas as suas forças. Além disso, a pouca receptividade do ambiente, nos casos em que o leigo é visto como um enviado dos gadjé, pode conduzir à renúncia do serviço, dado que tal implica o risco de excluir o Cigano da sua comunidade de origem. 

100.    A formação de leigos ciganos para tarefas pastorais é assim uma prioridade e determina o futuro da Igreja. Tal não é uma tarefa simples dado que pressupõe sempre a relação pessoal com um sacerdote, um religioso, uma religiosa ou um leigo que vive habitualmente em ligação com uma ou mais famílias ciganas e que identificou a disposição e a generosidade de uma pessoa ou de um casal bem aceites no próprio ambiente e cuja influência é perceptível. Porém, a sua formação não deve ser realizada separadamente da família, cujas reacções e tomadas de consciência devem ser prontamente consideradas, mas deverá realizar-se, idealmente, em conjunto com outras pessoas ou casais ciganos que tenham aceite este convite.

A equipa animadora deverá assim avaliar regularmente a evolução do grupo e a sua repercussão sobre o ambiente cigano. A experiência da catolicidade permitirá seguidamente avaliar se os Ciganos aceitam facilmente a palavra, descobrindo cada vez mais que a fé constitui uma relação pessoal com Cristo, que é amor gratuito oferecido a cada pessoa. Também a comunidade cristã que acompanha a equipa animadora deverá interrogar-se sobre a qualidade do seu acolhimento e das suas expectativas. Deste modo, a iniciativa deverá ser recíproca e fonte de uma experiência cristã partilhada, através de palavras e condições de vida às quais os leigos não estão, em geral, habituados. 

101.    Do interior de um tal “protagonismo” brotará a oração para que o Espírito suscite entre os Ciganos generosas vocações sacerdotais, diaconais e religiosas, necessárias para que se possa falar de uma autêntica implantatio Ecclesiae (implantação da Igreja) no ambiente cigano. Deste modo, é necessário levar a cabo uma promoção adequada das vocações, recordando que «a Igreja lança raízes mais profundas em cada grupo humano quando as várias comunidades de fiéis conseguem suscitar de entre os seus próprios membros os ministros da salvação» (AG 16). 

 

APELO FINAL 

102.     Esperamos que este “Documento” responda às expectativas de muitos que aspiravam a ter uma orientação pastoral de conjunto no ministério a favor dos nossos irmãos e das nossas irmãs nómadas. Para a Igreja, o acolhimento dos Ciganos representa certamente um desafio. A sua presença, difundida por quase toda a parte, é com efeito também um apelo constante a viver com fé a nossa peregrinação terrena, a realizar a caridade e a comunhão cristã, a fim de que se superem todas as indiferenças e animosidades no que lhes diz respeito. Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, o Papa João Paulo II convida-nos, de facto, a “promover uma espiritualidade de comunhão”[16], que significa sobretudo partilha das alegrias e dos sofrimentos alheios, com intuição dos seus desejos, e encarregar-se das necessidades de cada um, para oferecer a todos uma verdadeira e profunda amizade[17].  

Roma, da sede do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, no dia 8 de Dezembro de 2005, na Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria. 

 

Stephen Fumio Cardeal Hamao
      Presidente 

 

Agostino Marchetto

Arcebispo titular de Astigi 

Secretário


 


[1] João paulo ii, Constituição Apostólica Pastor Bonus, art. 150, § 1: AAS LXXX (1988), 899.
[2] V Congresso Mundial da Pastoral para os Ciganos, em People on the Move, Dezembro de 2003, n. 93 Suplemento.
[3] Cf. Romualdo Rodrigo, OAR, Gypsy Saint Ceferino Jiménez Malla (1861 – 1936), Rome 1997. 
[4] João Paulo II, Bula de proclamação do Grande Jubileu do Ano 2000 Incarnationis Mysterium (29 de Novembro de 1998) n. 7: AAS XCI (1999), 135.
[5] João Paulo II, Carta Encíclica Redemptoris Missio (7 de Dezembro de 1990) n. 58: AAS LXXXIII (1991), 306. 
[6] Cf. Paulo VI, Homilia, 26 de Setembro de 1965: Ensinamentos de Paulo VI, III (1965), 490-495.
[7] sto. agostinho, De civitate Dei, XVIII, 51, 2: PL 41, 614.
[8] João Paulo II, Discurso aos participantes no III Congresso Internacional da Pastoral para os Ciganos, 9 de Novembro de 1989: Ensinamentos de João Paulo II, XII, 2 (1989), 1195.

[9]Cf. João Paulo II, Discurso aos participantes no II Convénio Internacional da Pastoral para os Nómadas, 16 de Setembro de 1980: “on the Move” X (1980) n. 31, 28-30.

[10] Cf. L’Osservatore Romano, n. 12 (ed. semanal em língua portuguesa), 18 de Março de 2000, 1.
[11] AAS LXXX (1988), 841-934.
[12] Cf. também congregação para a doutrina da fé, Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão, n. 8-9: AAS LXXXV (1993), 842-844.
[13]Cf. concílio ecuménico vaticano II, Decreto sobre o Ministério e a vida dos Presbíteros Presbyterorum Ordinis (7 de Dezembro de 1965) n. 10: AAS LVIII (1966), 1007-1008 e Decreto sobre a actividade missionária da Igreja Ad Gentes (7 de Dezembro de 1965) n. 20, nota 4: AAS LVIII (1966), 971 e n. 27, nota 28: ibidem 979. Do mesmo modo, ver joão paulo II, Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (6 de Novembro de 1999) n. 65, nota 237: AAS XCI (1999), 800 e Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa (28 de Junho de 2003) n. 103, nota 106: AAS XCV (2003), 707. Cf. CIC câns. 294-297.
[14] Ao contrário do que sucedia quando o Código de 1917 estava em vigor, muitas das faculdades mencionadas no citado decreto de 19 de Março de 1982 podem ser actualmente concedidas na Igreja latina pelo Ordinário do lugar a qualquer sacerdote: a faculdade de binar nos dias feriais e de celebrar três Missas nos dias festivos ( CIC cân. 905 § 2); a possibilidade de celebrar uma Missa na tarde de Quinta-feira Santa para os fiéis que não podem participar na Missa in Cena Domini (Missale Romanum); a faculdade de ouvir as confissões em qualquer lugar ( CIC câns. 566 § 1 e 967 § 2) e a de administrar o sacramento da confirmação ( CIC cân. 884 § 1). No que se refere à faculdade de absolver no foro sacramental das penas latae sententiae não declaradas e não reservadas à Sé Apostólica, ela não parece ser tão relevante, dado que se trata de uma faculdade que está contida na autoridade executiva ordinária do Ordinário/Hierarca segundo a norma do CIC cân. 1355 § 2, e do CCEO cân. 1420 § 1, e, deste modo, é delegável a terceiros em virtude do CIC cân. 137 § 1, e do CCEO cân. 988 § 1. Em relação às respectivas normas a observar nas Igrejas Orientais Católicas, estas deduzem-se dos respectivos cânones do CCEO e do direito particular de cada Igreja sui iuris.
[15] Paulo VI, Discurso aos Bispos da África, 31 de Julho de 1969: AAS LXI (1969), 577.
[16] João Paulo II, Carta Apostólica no encerramento do Grande Jubileu do Ano 2000 Novo Millennio Ineunte (6 de Janeiro de 2001), n. 43: AAS XCIII (2001), 297; Cf., para o V Congresso Mundial da Pastoral para os Ciganos sobre o tema em apreço, People on the Move XXXV (2003) n. 93 Suplemento.
[17] Cf. João Paulo II, ib.

 

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