The Holy See
back up
Search
riga

  DISCURSO DO OBSERVADOR PERMANENTE
DA SANTA SÉ JUNTO DA ONU
POR OCASIÃO DO
40° ANIVERSÁRIO
DA CARTA ENCÍCLICA
«PACEM IN TERRIS»

Terça-feira, 7 de Outubro de 2003

 


É-me grato dar-vos as boas-vindas em nome da Missão Permanente da Santa Sé junto da Organização das Nações Unidas, e gostaria de agradecer de maneira especial ao Secretário-Geral, Sua Ex.cia o Senhor Kofi Annan, não apenas a hospitalidade que ele nos granjeou nesta tarde, mas sobretudo a sua presença, assim como as suas amáveis palavras e a generosa ajuda que ofereceu por ocasião da nossa comemoração da Carta Encíclica Pacem in terris.

Gostaria de começar, levantando uma interrogação:  por que motivo, na época da sua publicação, ocorrida a 11 de Abril de 1963, esta Carta Encíclica despertou tanto interesse?

Não existe uma única resposta para esta pergunta. Em primeiro lugar, precisamos de ter em consideração a personalidade singular do Papa João XXIII, um homem de diálogo e de coração generoso, que se interessava mais pela pessoa humana do que pelos erros que ela possa cometer (cf. n. 158). Além disso, há o facto de que a Carta Encíclica foi dirigida não apenas para os filhos e as filhas da Igreja, mas "para todos os homens de boa vontade". Por fim, esta Carta Encíclica é considerada como o último desejo e o testamento do Papa João XXIII, que viria a falecer menos de dois meses após a sua publicação.

Se considerarmos o contexto histórico da Carta Encíclica, observaremos que o elemento que mais influenciou a opinião pública foi a defesa apaixonada da paz por parte do Papa, fundamentada numa visão natural da criação, nomeadamente, assumindo o homem e o mundo como eles são.

Com efeito, a Carta Encíclica defende os direitos naturais da pessoa humana e exprime as aspirações de todos os homens e mulheres, sem qualquer distinção de credo ou de convicção.
É interessante observar os "sinais dos tempos", que o Papa enumera:  o melhoramente progressivo das condições económicas e sociais da classe operária (cf. n. 40); o papel que, agora, está a ser desempenhado pelas mulheres na vida política no mundo inteiro (cf. n. 41); a independência das antigas colónias (cf. n. 42); a incorporação e a garantia dos direitos políticos e civis nas Constituições individualmente (cf. n. 69); a convicção de que as controvérsias entre os povos devem ser resolvidas não através do recurso às armas, mas mediante o diálogo e a negociação (cf. n. 113); e o apreço pela Organização das Nações Unidas, como o instrumento mais apropriado para a salvaguarda dos direitos e das liberdades dos povos, considerado como a primeira célula jurídico-política da comunidade internacional (cf. n. 137).

Tudo isto quer dizer aos homens e às mulheres de boa vontade:  "Sim, a paz é possível!".

Em 1963 esta afirmação, derivada de uma grande convicção, podia mesmo parecer como que uma provocação. As feridas da segunda guerra mundial ainda não se tinham cicatrizado completamente; o Muro de Berlim dividia a Europa; a Checoslováquia experimentava a invasão militar; havia repressão na Hungria; a crise dos mísseis em Cuba e os conflitos sino-indianos transtornou o equilíbrio estratégico no mundo; a corrida aos armamentos encontrava-se numa fase de vigorosa aceleração; e a Igreja padecia ferozes perseguições.

O contraste entre a situação no mundo dessa época e a voz deste homem de paz tornou-se fortemente evidente. O impacto desta Carta Encíclica pode ser resumida a partir de um comentário editorial publicado no jornal The Washington Post:  "(A Carta Encíclica) não é apenas a voz de um idoso sacerdote, e nem a de uma antiga Igreja; é a voz da consciência do mundo".
Não tenho a intenção de apresentar uma exegese minuciosa do texto desta Carta Encíclica, mas sobretudo salientar três conceitos-chave ou fundamentos da Pacem in terris:  1) a pessoa humana; 2) o direito; e 3) a fé.

1. A pessoa humana

Para o Papa João XXIII, todos os homens e todas as mulheres são membros da única família humana e dependem de uma ordem estabelecida por Deus. De facto, ele escreve:  "Cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis"  (n.  9).  Em  seguida,  o Papa João XXIII especifica os seguintes direitos: 

o direito à existência e aos meios necessários para um digno padrão de vida;
os direitos que se referem aos valores morais e culturais;
o direito de honrar a Deus segundo os ditames da recta consciência;
o direito à liberdade na escolha do seu próprio estado de vida;
os direitos inerentes ao campo económico;
o  direito  de  reunião  e  de  associação;
o  direito  de  emigração  e  de  imigração; e
os direitos de carácter político.

A cada um destes direitos correspondem determinados deveres, que estão assentes sobre um sentido de responsabilidade e de convicção presente no homem, mais do que na coacção e na imposição. O Papa afirma com clarividência que "uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano" (n. 34).

É interessante observar que quatro quintos do texto desta Carta Encíclica são dedicados à enunciação de tais direitos e deveres. Por conseguinte, ele pode ser considerado um texto de ética internacional. Para o Papa a ordem internacional, fundamentada em direitos e deveres, corresponde à ordem inscrita por Deus mesmo na própria natureza do homem. É precisamente este ponto que a primeira frase da Carta Encíclica deseja sublinhar:  "A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer  nem  consolidar  senão  no  pleno respeito da ordem instituída por Deus" (n. 1).

2. O direito

Para o Papa João XXIII, o alcance do bem comum é a finalidade da Autoridade pública. Assim, no n. 53 da Carta Encíclica podemos ler a seguinte afirmação:  "Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direcção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência". Daqui deriva a seguinte asserção:  "É, pois, função essencial dos poderes públicos harmonizar e disciplinar devidamente os direitos com que os homens se relacionam entre si, de maneira a evitar (1) que os cidadãos, ao fazer valer os seus direitos, não atropelem os de outrem; ou (2) que alguém, para salvaguardar os próprios direitos, impeça a outros de cumprir os seus deveres. Zelarão enfim os poderes públicos para (3) que os direitos de todos se respeitem eficazmente na sua integridade e se reparem, se vierem a ser lesados" (n. 62).

O Papa fala de uma ordem jurídica que esteja em harmonia com a ordem moral e, depois de ter salientado a necessidade de relações harmoniosas entre as duas formas de intervenção da autoridade pública, observa de bom grado que na organização jurídica dos Estados, os textos legislativos falam claramente dos direitos fundamentais do homem, que é o modo democrático de designar os responsáveis pela res publica, as condições para o favorecimento de relações harmoniosas entre os cidadãos e a Autoridade pública. E ele não hesita em afirmar que tudo isto deve ser igualmente aplicado ao campo das relações internacionais, pelas quais o bem comum permanece assente sobre o respeito pela ordem moral.

Também no sector internacional, as relações entre os Estados devem ser governadas na verdade, sem discriminação, no respeito pela igualdade de todas as pessoas e todas as raças (cf. nn. 80-85), em conformidade com as exigências da justiça. "Cada... (Estado) tem, pois, direito à existência, ao desenvolvimento, à posse dos recursos necessários para realizá-lo e a ser o principal responsável na actuação do mesmo" (n. 86). Em caso de controvérsia, jamais pode haver recurso à força, mas devem prevalecer a compreensão mútua e a reconciliação equitativa dos pontos de vista opostos (cf. n. 93).

Por conseguinte, a paz nunca será o resultado da força, de maneira especial da parte daqueles que são mais poderosos. A Carta Encíclica continua, recordando a espiral da corrida aos armamentos, que visa manter um equilíbrio dos poderes assente no medo, uma das principais causas da armazenagem de armas (cf. nn. 109-111). O documento denuncia o pesadelo de uma guerra nuclear e exprime solicitude diante do "grave perigo (para) boa parte da vida sobre a terra" (n. 111), quando os armamentos nucleares são testados para diversas finalidades. Portanto, o desarmamento completo torna-se uma necessidade que a justiça, a sabedoria e a humanidade exigem para o futuro da família humana.

Contudo, para o Papa a paz não é apenas a ausência da guerra; pelo contrário, trata-se de uma questão de justiça. O Papa João XXIII deseja um mundo em que não existam mais "dominadores e dominados" (cf. n. 43). Naturalmente, aqui ele refere-se ao problema da pobreza e do abismo que separa os ricos dos pobres.

Nesta altura, é útil recordar os famosos quatro pilares sobre os quais a paz se fundamenta:  a verdade, a justiça, a caridade e a liberdade (cf. n. 38). O homem pode, na realidade deve, trabalhar pela paz; esta tarefa torna-se uma realidade, quando ele tem a coragem de construir uma sociedade que tenha a verdade como sua base, a justiça como seu estilo de vida, a caridade como sua força propulsora e a liberdade como o seu clima geral.

Obviamente, a construção de uma sociedade pacífica e justa exige a cooperação entre todos os homens e mulheres de boa vontade. Aqui, na Organização das Nações Unidas, o capítulo V da Carta Encíclica adquire uma importância singular:  este capítulo é dedicado ao "relacionamento dos homens e das agremiações políticas com a comunidade mundial" (cf. nn. 130-145).

Para o Sumo Pontífice, "nenhuma comunidade política se encontra hoje em condições de zelar convenientemente por seus próprios interesses e de se desenvolver de maneira suficiente, fechando-se em si mesma" (n. 130). Existe um bem comum universal (cf. n. 132) e, a este propósito, o Papa indica aquilo que a Organização das Nações Unidas pode fazer. Elas (as Nações Unidas) "propuseram-se como fim primordial manter e consolidar a paz entre os povos, desenvolvendo entre eles relações amistosas, fundadas nos princípios de igualdade, de respeito mútuo, de cooperação multiforme em todos os sectores da actividade humana" (n. 141).
O Papa João XXIII chega a fazer referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). Embora alguma reserva possa ser justificada em determinados pontos particulares, "não há dúvida, porém, de que o documento (a Declaração) assinala um passo importante no caminho para a organização jurídico-política da comunidade mundial" (n. 143). Em seguida, o Sumo Pontífice explica a razão disto:  reconhecer a solene dignidade de cada e de toda a pessoa humana; confirmar o direito de todos à liberdade de buscar a verdade; seguir os princípios morais; cumprir os deveres impostos pela justiça; e levar uma vida plenamente humana.

3. A fé

Para o Papa João XXIII, a religião é essencial para a cultura da paz. A abertura a Deus, o ensinamento da fraternidade universal e o convite para a solidariedade são requisitos prévios para a paz, dado que têm uma dimensão comunitária.

Em particular para a cristandade, a fé é como um farol que ilumina e uma caridade que arde de entusiasmo por uma causa (cf. n. 146). Para o Sumo Pontífice, o mundo reflecte ou deveria reflectir a ordem estabelecida por Deus. "O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza" (n. 2). Com efeito, é um equívoco acreditar, como o n. 6 da Carta Encíclica afirma, que "as relações de convivência entre os indivíduos e sua respectiva comunidade politica possam reger-se pelas mesmas leis que as forças e os elementos irracionais do universo. Mas a verdade é que, sendo leis de género diferente, devem-se buscar apenas onde as inscreveu o Criador de todas as coisas, a saber, na própria natureza humana".

Na última parte da Carta Encíclica, que contém algumas exortações pastorais (cf. nn. 145-161), o Papa João XXIII ressalta a necessidade que os católicos têm de participar activamente na vida pública, enquanto deplora determinadas deficiências da cultura política dos cristãos:  "Exortamos os nossos filhos ao dever de participarem activamente na vida pública e de contribuírem para a obtenção do bem comum de todo o género humano e da própria comunidade política, e de se esforçarem, portanto, à luz da fé cristã e com a força do amor, para que as instituições de finalidade económica, social, cultural e política sejam tais que não criem obstáculos, mas antes facilitem às pessoas o próprio melhoramento, tanto na vida natural como na sobrenatural" (n. 145). Em seguida, ele observa que tudo isto é igualmente válido, tanto para os seguidores das outras religiões, como para os não-crentes (cf. n. 156).

A cooperação entre os crentes e os não-crentes, a nível político, fundamenta-se sobre o princípio que "não se deverá jamais confundir o erro com a pessoa que erra... A pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, e nunca perde a dignidade de ser humano, e portanto merece sempre a estima" (n. 157). Esta cooperação pode constituir, mesmo para os não-crentes, "uma ocasião ou estímulo para chegarem à verdade" (Ibidem).

Por detrás destas ricas sugestões pastorais encontra-se a vasta experiência diplomática do Arcebispo D. Roncalli, que sempre rejeitou aceitar a dialética do amigo-inimigo, perto-distante, dentro-fora e herege-fiel, que durante muitos séculos levou e ainda hoje leva a um círculo interminável de repressão e de violência. Sem dúvida, para o cristão esta lógica perversa é substituída pelo fermento da fraternidade universal, como é proclamado pelo Evangelho de Cristo.

Por quase treze anos, tive o privilégio de colaborar intimamente com o Papa João Paulo II, no seu ministério em favor da paz. Sempre observei nele o desejo de formar políticos, líderes mundiais e cidadãos nos caminhos da paz.

Todas as principais crises internacionais, tanto do passado como do presente, demonstraram que o homem é tentado, mesmo nos dias de hoje, a recorrer à violência para resolver as controvérsias. A Santa Sé sempre questionou e rejeitou este tipo de lógica, quer através da celebração anual do Dia Mundial da Paz e de outras comemorações extraordinárias, como o Dia de Oração em Assis, quer também mediante ulteriores iniciativas concretas, inclusivamente mediante a sua participação no processo de resolução dos conflitos na ex-Jugoslávia e no Médio Oriente.

Escutar, dialogar, negociar, respeitar a lei e trabalhar em prol da paz:  esta é a dinâmica exigida! Esta é a herança que nos foi deixada pela Carta Encíclica Pacem in terris!

Quando os homens, as mulheres e os povos têm a coragem de se encararem com honestidade e franqueza, de se escutarem uns aos outros, de compreenderem as preocupações recíprocas, então  a  paz  faz-se  realidade.  A  terra torna-se um lugar mais humano e mais vivível.

Ainda nos dias de hoje, as palavras outrora pronunciadas por um predecessor do Papa João XXIII ressoam poderosamente. De facto, no dia 24 de Agosto de 1939, véspera da segunda guerra mundial, o Papa Pio XII não hesitou em afirmar:  "O perigo é iminente, mas ainda há tempo; nada se perde com a paz; tudo se pode perder com a guerra". Este brado profético inspirou o seu sucessor, o Papa João XXIII, a propor novamente a mesma mensagem, no contexto histórico do seu tempo. Contudo, mesmo na nossa época, aquelas palavras continuam a representar uma clara exortação profética.

Obrigado!

 

 

 

top