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INTERVENÇÃO DA SANTA SÉ NA SESSÃO ESPECIAL
DO CONSELHO DOS DIREITOS DO HOMEM
SOBRE A CRISE ECONÓMICA MUNDIAL

DISCURSO DO ARCEBISPO D. SILVANO TOMASI

Genebra, 20 de Fevereiro de 2009

 

Como os meios de comunicação social nos recordam cada dia, a crise financeira mundial causou uma recessão global com consequências sociais dramáticas, incluindo a perda de milhões de postos de trabalho e o grave risco que para muitos países em vias de desenvolvimento os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio não se possam alcançar. Os direitos humanos de inúmeras pessoas estão comprometidos, inclusive o direito à água, à alimentação, à saúde e a um trabalho digno. Sobretudo, quando amplos segmentos de uma população nacional vêem os seus direitos sociais e económicos tornados vãos, a perda de esperança coloca em perigo a paz. A comunidade internacional tem a responsabilidade legítima de perguntar porquê se criou esta situação, de quem é a responsabilidade e de que modo uma solução concordada nos pode fazer sair da crise e facilitar o restabelecimento dos direitos. A crise, em parte, foi causada pelo comportamento problemático de alguns actores do sistema financeiro e económico, incluídos os administradores bancários e quantos deveriam ter sido mais diligentes no que diz respeito aos sistemas de monitoragem e de fiabilidade. Portanto, são eles que têm a responsabilidade pelos problemas actuais. Contudo, as causas da crise são mais profundas.

Em 1929, reflectindo sobre a crise de então, o Papa Pio XI observou: "Nos nossos tempos não existe só concentração da riqueza, mas também o acúmulo de uma enorme potência, de um controlo despótico da economia na posse de poucos, e estes frequentemente nem sequer proprietários, mas apenas depositários e administradores do capital, do qual porém eles dispõem a seu bel prazer" (Quadragesimo anno, n. 105). Observou também que a livre concorrência se tinha autodestruído baseando-se no lucro como único critério. A crise actual tem dimensões económicas, jurídicas e culturais. A actividade financeira não se pode reduzir a obter lucros fáceis, mas também deve incluir a promoção do bem comum entre quantos emprestam, recebem emprestado e trabalham. A ausência de um fundamento ético levou a crise a todos os países, de baixo, médio e alto rendimento. Senhor Presidente, a delegação da Santa Sé exorta a prestar uma renovada "atenção à necessidade de uma abordagem ética na criação de colaborações positivas entre mercados, sociedade civil e Estados" (Papa Bento XVI).

O impacto das consequências negativas é todavia mais dramático sobre o mundo em vias de desenvolvimento e sobre os grupos mais vulneráveis em todas as sociedades. Num documento recente, o Banco Mundial calcula que, em 2009, a actual crise económica global poderia impelir mais 53 milhões de pessoas para baixo do limiar de 2 dólares por dia. Este número acrescenta-se aos 130 milhões de pessoas forçadas à pobreza em 2008 devido ao aumento do preço dos produtos alimentares e da energia. Estas tendências ameaçam gravemente o êxito da luta à pobreza dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio até 2015. É evidente que quem ressentirá mais as dificuldades económicas serão as crianças e para 2009 está previsto um considerável aumento da taxa de mortalidade infantil nos países pobres.

Sabe-se que os países com baixo rendimento são extremamente dependentes de dois fluxos financeiros: a ajuda estrangeira e as remessas dos emigrantes. Nos próximos meses ambos os fluxos diminuirão de maneira significativa por causa do agravamento da crise económica. Não obstante a renovada afirmação oficial do compromisso dos doadores em aumentar a Official Development Assistance (ODA) segundo o Acordo de Gleneagles, actualmente a maior parte dos doadores não estão em condições para satisfazer o seu objectivo de aumentar gradualmente a ODA até 2010. Além disso, as cifras mais recentes revelam uma diminuição dos fluxos de ajuda. Isto faz pensar com preocupação que um eventual efeito directo da crise económica mundial possa ser uma maior redução das ajudas aos países pobres. Por outro lado, as remessas dos trabalhadores emigrados já se reduziram de maneira significativa. Isto ameaça a sobrevivência económica de inteiras famílias que recebem uma parte consistente do seu rendimento da transferência de fundos efectuado pelos parentes que trabalham no estrangeiro.

Senhor Presidente, a delegação da Santa Sé deseja concentrar-se sobre um aspecto específico desta crise: o seu impacto sobre os direitos humanos das crianças, o que explica também o que é sintomático do impacto destrutivo de todos os outros direitos sociais e económicos. Actualmente, alguns direitos importantes dos pobres dependem muito dos fluxos oficiais de ajuda e das remessas dos trabalhadores. Entre estes estão os direitos à saúde, à instrução e à alimentação. De facto, em diversos países pobres, os programas educativos, de saúde e alimentares são realizados graças aos fluxos de ajuda dos doadores oficiais. Se a crise económica reduzir esta assistência, a realização destes programas poderia ser colocada em perigo. Igualmente, em muitas regiões pobres, famílias inteiras podem ter filhos instruídos e dignamente nutridos graças às remessas dos emigrados. Se continuar a redução de ambos os fluxos, privar-se-ão as crianças do direito de ser educadas, criando uma dupla consequência negativa. Não só impediremos às crianças o pleno exercício do seu talento, que por sua vez, poderia ser colocado ao serviço do bem comum, mas colocar-se-ão inclusive as pré-condições de dificuldades económicas a longo prazo. Um menor investimento na educação hoje traduzir-se-á amanhã num menor crescimento. Ao mesmo tempo, uma alimentação pobre das crianças piora de maneira significativa a expectativa de vida, aumentando as taxas de mortalidade, tanto infantil como adulta. As consequências económicas negativas disto vão além da dimensão pessoal e atingem sociedades inteiras.

Senhor Presidente, permita-me mencionar outra consequência da crise económica global que poderia ser particularmente importante para o mandato das Nações Unidas. Demasiado frequentemente, períodos de graves dificuldades económicas foram assinalados pelo aumento do poder dos Governos caracterizados por uma propensão duvidosa para a democracia. A Santa Sé reza a fim de que este tipo de consequências possa ser evitado na crise actual, porque conduziria a uma grave ameaça para a difusão dos direitos humanos fundamentais pelos quais esta instituiçãolutou com tanta tenacidade.

Nos últimos cinquenta anos alcançaram-se alguns resultados importantes na redução da pobreza. Senhor Presidente, estes resultados estão em risco e é necessária uma abordagem coerente para as tutelar mediante um renovado sentido de solidariedade, em particular para aqueles segmentos da população e para os países mais atingidos pela crise. Todavia repetir-se-ão erros antigos e recentes, se não se empreender uma acção internacional concertada dirigida a promover e a tutelar todos os direitos humanos e, se as actividades financeiras e económicas directas não forem colocadas numa estrada ética que possa antepor as pessoas, a sua produtividade e os seus direitos à avidez que podem derivar da atenção exclusiva ao lucro.

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