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REUNIÃO DE MADRID SOBRE OS PROBLEMAS DA POLÓNIA

DISCURSO DO BISPO  D. SILVIO LUONI
CHEFE DA DELEGAÇÃO DA SANTA SÉ

Madrid, 12 de Fevereiro de 1982

 

1. Na sua Mensagem enviada aos Chefes de Estado e de Governo reunidos em Helsínquia no 1° de Agosto de 1975, o Sumo Pontífice Paulo VI, saudando as centenas de milhões de homens e mulheres que são "a realidade viva" dos Estados Participantes na Conferência para a Segurança e a Cooperação na Europa, pôs em evidência que eles aspiravam a relações cada vez mais serenas, mais livres e mais humanas, isto é "a gozar uma paz fundada na justiça". Eles — dizia o Papa — "desejam indubitavelmente ser tranquilizados pela garantia dada à segurança dos seus Países, mas estão também animados pela reafirmação dos direitos do homem e das suas liberdades fundamentais" que o Acto de Helsínquia explicitamente tinha aceitado e feito sua.

Estas duas finalidades fundamentais da C.S.C.E. — a paz internacional reafirmada entre os Estados participantes e o compromisso de observar uma "ética" de comportamento nas suas relações, baseada no respeito dos direitos de todos os povos — foram as duas razões que moveram a Santa Sé a tomar a própria parte de concreta responsabilidade na Conferência.

Estas razões são válidas para nós, hoje como em 1975. A Santa Sé está convencida de que o Acto Final de Helsínquia estabeleceu entre os Estados participantes um "pacto" colectivo de solidariedade, em virtude do qual as situações de crise, que põem em risco a paz ou em discussão os princípios em que ela se funda, devem ser enfrentadas com realismo e com espírito aberto no intento de. resolvê-las superando as divergências de apreciação.

Ignorar as crises quando surgem seria fechar os olhos à realidade; abster-se de as tomar em exame ou utilizá-las como objecto de retorsão polémica equivaleria a faltar a um compromisso comum, tomado não só diante dos Governos, mas também e sobretudo diante dos povos interessados. É precisamente o caso dos graves acontecimentos da Polónia.

2. A impressão que estes acontecimentos despertaram, na Europa e no mundo, não vem só de 13 de Dezembro de 1981. Remonta ao processo de renovamento iniciado pelo movimento operário e popular a partir de Agosto de 1980. Por sua vez, as mudanças começadas naquele verão têm um fio condutor na história da Polónia destes 40 anos e, mais atrás, na história dos dois últimos séculos. Há povos a que a história reservou o destino, difícil embora glorioso, de deverem sempre reconquistar, a preço de lutas e de fadigas contínuas, os bens fundamentais da própria existência: a segurança do território, a soberania e a liberdade de escolher os próprios ordenamentos.

É natural portanto que o debate político à volta destes acontecimentos se carregue de sentimentos, de paixões e até de interesses que dão lugar, no plano internacional, a uma clara e polémica contraposição. Contraposição inevitável, mas que poderia ficar estéril com o risco de reduzir a causa ideal e real do debate — isto é a vida e a liberdade da Nação polaca — a um objecto instrumental. O que importa, pelo contrário, é que o debate contribua para trazer auxílio à situação da Polónia, criando alguns pressupostos de esclarecimento que permitam vencer a condição actual. Ajudando a Polónia, contribuir-se-á também para um melhoramento do contexto europeu e internacional, o que, por sua vez, poderá ajudar uma evolução positiva do processo interno polaco.

3. Com tal fim, é necessário tomar consciência dos valores essenciais que estão em jogo.

Em primeiro lugar, existe um problema histórico-politico que diz respeito às razões de existência da Nação da Polónia, na sua identidade espiritual e cultural, na sua colocação geográfica e na sua constante e insuprimível aspiração à independência e à liberdade. É problema político não isolado; é problema europeu: a Polónia está situada no coração da Europa, e nas grandes crises europeias dos últimos séculos, no meio das contendas entre opostos nacionalismos ou imperialismos, o problema polaco sempre surgiu como factor de grande relevo. No século XVIII o País sofreu três sucessivas divisões; no século XIX a liberdade da Polónia foi um dos "casos de consciência" da Europa liberal e inspirou o idealismo generoso dos grandes espíritos europeus; no século XX a agressão de 1939 à Polónia (que vinha de recuperar a independência em 1918) fez rebentar a segunda guerra mundial, e o primeiro "compromisso" tomado pelos Aliados foi de restituir a integridade, a soberania e a independência da Nação que a tinha perdido.

A natureza europeia do problema político polaco é confirmada aliás pelo significado que teve, para os preliminares da Conferência para a Segurança e a Cooperação na Europa, o acordo entre a Polónia e a Alemanha Federal de 7 de Dezembro de 1970.

4. Mas o problema polaco chama para a causa também alguns elementos ideais, que fazem parte daqueles valores "comuns" que o Acto Final de Helsínquia reconhece como existentes entre os povos da Europa e capazes de desenvolverem as recíprocas relações deles.

Entre estes valores, está como particularmente importante o respeito da identidade nacional, nas suas características históricas e culturais, c a possibilidade de ser cada povo um sujeito livre, árbitro dos próprios destinos. "Todos os povos — diz o 8° princípio do Acto Final — têm sempre o direito, em plena liberdade, de estabelecer quando e como desejam o seu regime político interno e externo, sem ingerência externa, e de procurar como desejam o seu desenvolvimento político, económico, social c cultural".

Por sua vez, a razão de ser de tal livre determinação tem a fonte no complexo "das liberdades e dos direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais e outros, que derivam todos da dignidade inerente à pessoa humana e são essenciais ao seu livre e pleno desenvolvimento" (Princípio 7º do Acto Final).

Ambos os princípios — autodeterminação do povo e exercício efectivo dos direitos e das liberdades fundamentais — correspondem a uma imagem de homem que se gravou de modo particular na cultura europeia, porque exprimem o respeito da dignidade da pessoa que os povos europeus contribuíram para esclarecer e afirmar com um contributo rico de pensamento e uma experiência sofrida de lutas seculares.

5. Este "significado universal" dos direitos do homem e das liberdades fundamentais é reconhecido como de primária importância pelos Estados participantes, a ponto de o respeito de tais direitos ser declarado "factor essencial da paz, da justiça e do bem-estar necessários para assegurar o desenvolvimento de relações amigáveis e da cooperação entre eles, como entre todos os Estados".

Tal afirmação é um dos pontos mais elevados e mais nobres do Acto Final, que ultrapassa qualitativamente a Carta mesma da ONU (art. 55), pois, à "estabilidade e ao bem-estar" julgados como necessários às pacíficas relações internacionais, acrescenta o bem ético e supremo da justiça.

Esta "filosofia" ética do Acto Final, solícita e justamente preocupada com a componente humana da paz e das relações internacionais, filosofia que não é generosa invenção de intérpretes cheios de boa vontade, mas está inscrita com palavras claras nos textos, explica a razão por que a opinião pública europeia e mundial reconheceu na Conferência de Helsínquia uma novidade e uma esperança susceptíveis de promover um processo de reconciliação e de humanização que ajude a superar as divisões actuais. Todos nós signatários do Acto Final nos empenhámos juntos a proclamar o "significado universal" dos direitos do homem e das liberdades fundamentais; também igualmente todos os signatários têm o dever de respeitá-los e de vigiar por que sejam respeitados, prescindindo das origens nacionais e das convicções ideológicas.

Este é o meio que encontrámos para nos pormos de acordo e nos dispormos para realizar o objectivo principal do Acto Final: superar a rígida contraposição de 30 anos que, com razão ou sem ela, foi atribuída às deliberações de Yalta, sem ameaças para a paz mas também sem ignorar as exigências legítimas dos povos.

Há, a este propósito, um parágrafo iluminador no proémio do Acto Final, a afirmar que "a solidariedade entre os povos, e a comum finalidade que inspira os Estados participantes... deveria levar ao desenvolvimento de relações melhores e mais estreitas entre si em todos os campos, e portanto a vencer a contraposição derivante da natureza das suas relações passadas e a uma melhor compreensão recíproca".

Noutros termos, o Acto Final obriga os signatários a encontrarem-se, não obstante as suas divergências de qualquer natureza. Pelo contrário, os acontecimentos da Polónia reacendem as tensões internacionais e alimentam o confronto nas suas formas mais ásperas. Vão contra aquele que foi chamado o benéfico "desafio" de Helsínquia: superar a contraposição derivante da natureza das relações passadas". Se a crise polaca não for resolvida no respeito da filosofia ética que recordámos, há-de renunciar-se de facto aos compromissos políticos de Helsínquia, para regressar às perigosas contraposições precedentes. Impõe-se portanto uma clarificação comum, se queremos retomar o caminho traçado no 1° de Agosto de 1975.

Por seu lado, o povo polaco tem direito de esperar que esta "filosofia" seja aplicada em seu favor, e que uma solução positiva do próprio problema nacional conduza a superarem-se aquelas contraposições das quais ele foi, vezes demais, objecto e vítima.

6. A Santa Sé tem particulares e evidentes motivos para animar e sustentar essa solidariedade internacional.

Por motivo da sua missão, dirigida para o homem, aquela não pode calar-se se os direitos humanos são ameaçados ou violados. Está convencida que as instituições civis e sociais têm fundamento e justificação no consentimento e na participação dos homens e das mulheres que formam uma determinada sociedade. Defendendo o exercício dos direitos do homem, a Santa Sé não promove uma contestação dirigida contra o Estado e a sua autoridade, mas indica a fonte da legitimidade desta mesma autoridade. O exercício dos direitos do homem é factor determinante para a paz social. Por fim, tomando como base a dignidade das pessoas nos direitos e nos deveres, contribui-se para formar cidadãos que sejam livres na sua consciência e conhecedores das responsabilidades que devem assumir para alcançar o bem de todos.

7. Em qualquer País a Igreja vive com as pessoas, com as famílias e com o povo; está envolvida nos sentimentos destes, compartilha-lhes as ansiedades e as expectativas, as alegrias e os sofrimentos. Particularmente intenso é o laço, histórico e efectivo, que une a Igreja à Nação da Polónia. Penso que não só para os crentes, mas também para os espíritos abertos à reflexão histórica, não é sem significado que — no cimo de uma vicissitude de dois séculos, na véspera de um processo de maturação interna — uma nação tão provada e atormentada tenha dado um próprio filho ao bimilenário Pontificado romano. Não poderia ser um modo de que Alguém — a Providência para nós, para outros a História — se serve para dar a um problema de tão alto alcance moral, como o que a Polónia vive, o trâmite e a ressonância universal que merece, pois é um valor destinado a incidir na consciência dos povos?

Em tal disposição de espírito, a Santa Sé não pretende contrapor-se a ninguém; não está nunca contra, está sempre por, isto é em favor de determinadas realidades humanas, empenhada em defendê-las e afirmá-las. O seu contributo quer ser espiritual e moral, e não político; ou então, é político no sentido originário, isto é em favor das regiões ideais da pólis, da sociedade.

Quando estas razões são negadas, a Santa Sé não se satisfaz da estéril polémica mas, partilhando do sofrimento dos seres humanos, conserva a esperança de um repensamento e uma mudança serem possíveis, de a porta para o diálogo não estar trancada. Há certas interrogações a que não se pode fugir, e que também os governos são chamados a pôr-se. Uma que é fundamental e corresponde à ética do nosso Acto Final, é precisamente isto: É justo que uma nação, depois de tentar a experiência de mais livres instituições no campo da economia e do trabalho — e tudo isto em virtude da própria força moral, sem recorrer nunca à violência! — veja ordenar aos seus filhos que sirvam a pátria com prejuízo das liberdades do povo de que fazem parte?

A história ensina que a juventude tem o direito de esperar perspectivas justas mesmo para o próprio dever social, de maneira que ao ser esta responsabilidade iludida ou contradita, às gerações sucessivas provejam, com o ímpeto de novidade que traz cada uma, para restabelecer a justiça violada.

8. Terão estas interrogações uma resposta positiva? A Santa Sé não desespera, embora hoje uma expectativa deste género pareça difícil que chegue a encontrar confirmação. Ela continuará serena sua acção, não renunciando à expectativa; alegre se as razões do povo polaco — assim como de todos os povos que devam enfrentar tão árduas eventualidades — continuarem a encontrar apoio solidário nos outros povos da Europa c do mundo; não desistindo do seu compromisso nem mesmo que esta solidariedade tivesse, por qualquer motivo e dalgum modo, de atenuar-se. A Santa Sé não deixará perder as justas razões do povo polaco!

Do mesmo modo, estamos convencidos de que, enfrentando o problema polaco na perspectiva que desenhámos não se põem em perigo os resultados, sem dúvida não destituídos de importância, até agora conseguidos nesta reunião de Madrid, mas pelo contrário se lhes dá um significado mais penetrante e mais alto. Julgamos que uma solução da crise da Polónia daria à C.S.C.E. um parecer positivo que se reflectiria nos objectivos mesmos da nossa reunião; o problema do desarmamento e o acréscimo da cooperação em todos os campos. Daria a confirmação de existir uma "filosofia" inter-europeia que não é de contraposição, nem de subordinação, mas de colaboração na igualdade e no respeito recíproco.

Não devemos cansar-nos de trabalhar para que o Acto Final de Helsínquia consiga aumentar toda a sua fecundidade e dinamicidade, de maneira que os povos descubram nele as razões da própria esperança, e o mesmo continue a ser uma referência eficaz no caminho histórico da Europa.

 

 

 

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