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INTERVENÇÃO DO CARDEAL ETCHEGARAY,
EM PREPARAÇÃO PARA A
CONFERÊNCIA
MUNDIAL SOBRE A
DISCRIMINAÇÃO RACIAL

 

Genebra, 3 de Agosto de 2001

 


Muito obrigado, Senhora Mary Robinson, por me ter convidado para esta mesa redonda, no início da Conferência Mundial sobre o Racismo, simbolicamente programado para Durban, na África do Sul cujas cicatrizes frágeis do apartheid mostram até que ponto pode chegar o desprezo pelo homem. Testemunha durante 15 anos de tantos horrores e da vergonha em todos os continentes, o que é que eu vos posso dizer em cinco minutos?

Vivemos numa época em que as evidências mais elementares têm necessidade de ser divulgadas, proclamadas e até mesmo clamadas para se impor. É assim também com o racismo. Não se transige com ele, suplantando-o lá onde ele se esconde e combatendo-o até ao fundo. Nunca se consegue derrotar suficientemente este mal, que não cessa de renascer das suas cinzas; assim, se o seu nome acabou por ser desacreditado, a realidade racista é mais viva do que nunca, sob diversificadas máscaras. Como explicar tal persistência, depois de tantas campanhas vigorosas e generosas das Nações Unidas, da Igreja e de numerosas ONGs?

O racismo constitui uma chaga que permanece misteriosamente aberta no lado da humanidade. Diante da sua propagação e da sua banalização, o anti-racismo do passado parece ser pouco adequado no presente e tem necessidade não só de vivificar as suas convicções permanentes, mas também de renovar as suas argumentações e às vezes até mesmo de mudar de meta. Alguns analistas chegaram a afirmar que o racismo tem o seu par num certo anti-racismo:  existe uma forma de militantismo que, longe de debilitar, provoca uma exacerbação do racismo. A própria noção de racismo deve ser utilizada de forma delicada, e não sem o risco de a dissolver, classificando sob a sua rubrica todas as espécies de comportamento de desigualdade.

Um debate sobre o racismo não pode fazer a economia da sua história. Não se elimina com um golpe de mão, como se fosse uma mosca irritante, o zumbido de um passado maculado pelo desprezo do homem, até à negação do humano. Esta memória é necessária para esclarecer e orientar o presente ao longo do caminho da justiça, mas não deve ser extenuante. Ninguém pode ser prisioneiro do seu passado, por mais difícil que este tenha sido. A memória cura-se tão bem quanto o corpo, é chamada a deixar-se purificar e não a manipular. "A reiterada vingança mortífera deve ser substituída pela novidade libertadora do perdão", afirmou o Papa João Paulo II (cf. Mensagem por ocasião do Ano Novo de 1997), convidando a uma "nova e correcta leitura da história... que é um verdadeiro desafio a nível pedagógio e também cultural, um desafio da civilização!".

Numa anatomia do racismo, hoje não se pode observar somente os movimentos dos homens e dos povos, mas inclusivamente o funcionamento dos Estados e das Nações, sobretudo quando uma nação tende a tornar-se a medida suprema dos seus cidadãos, identificando-se com uma das suas etnias. João Paulo II ensina-nos muito mais:  "A história demonstra que, quando os Estados deixam de ser iguais, também as pessoas terminam por não o ser. Desta forma, a solidariedade natural entre os povos é destruída, o sentido das proporções é deturpado e o princípio da unidade do género humano desprezado" (cf. Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, 15 de Janeiro de 1994).

A seguir ao descobrimento do Novo Mundo, as grandes interrogações que surgiram e se tornaram objecto de uma sábia "disputatio" foi:  "Diz-me, quem é o homem? Os Índios têm alma?".

Percorrendo o mundo inteiro, quem poderia afirmar que hoje ela não se apresenta de modo igualmente urgente e anormal? Diante de pontos de referência que mudam ou desaparecem, o homem moderno titubeia, começa a ter dúvidas acerca de si mesmo e o combate anti-racista interrompe-se. Esta batalha é como uma guerra de corrosão, é sem dúvida o mais árduo de todos os combates em favor dos direitos do homem. Ele tem como objecto a igualdade natural entre todos os homens e constitui uma espécie de desafio do espírito contra a natureza, uma vez que os homens apreciam mais a diferença do que a igualdade. Reconhecer que o outro, na sua diferença, é verdadeiramente meu semelhante é algo difícil e tem consequências incalculáveis. Não há nada menos natural, do que dizer "todo o homem é meu irmão" e efectivamente viver esta fraternidade, sobretudo quando, na narração de Caim e de Abel, a Bíblia nos revela a nossa genealogia:  todos nós somos descendentes de um criminoso fratricida!

Como homem de Igreja, é mais um espírito do que propriamente um programa que desejei confiar-vos. Na sua luta contra o racismo, ninguém pode limitar-se unicamente ao seu carácter racista, por mais obstinado que seja. Também ele é "meu irmão"! O Evangelho apresenta a todos uma possibilidade para sair do impasse racista. A Igreja está consciente das falhas históricas de alguns dos seus próprios membros:  contudo, toda a discriminação racial é contrária à sua fé cristã, enquanto o respeito integral pelo outro vai muito além da simples resignação à tolerância como experiência inevitável.

Senhora Mary Robinson, a minha oração acompanha a sua comitiva até Durban, a fim de que a Conferência mundial de que Vossa Excelência é responsável em nome das Nações Unidas, seja um verdadeiro sinal de que todos os homens e todas as mulheres do primeiro ao quarto mundo são chamados a entrar juntos no "mundo de todos", para ali viver livres e felizes. Num livro publicado pela UNESCO há mais de trinta anos ("O direito de ser homem"), o seu director de então, René Maheu, cadenciava o seu prefácio com as seguintes expressões:  "Por mais ingentes que tenham sido os esforços despendidos e os desenvolvimentos alcançados, por mais heróicos que sejam os inúmeros sacrifícios, o preço do homem livre ainda não foi pago pelo próprio homem e nem sequer definido no seu justo valor... Neste preciso momento, milhões de seres humanos, nossos semelhantes, oprimidos ou revoltados, esperam por nós, por ti e por mim".

Vós e eu... de Genebra a Durban.

 

 

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