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INTERVENÇÃO DA DELEGAÇÃO DA SANTA SÉ
 SOBRE O TEMA DOS ARMAMENTOS NO
CONTEXTO DA ONU

15 de Outubro de 2001

 
 
Senhor Presidente

A minha Delegação apresenta as felicitações pela sua eleição para Presidente desta importante Comissão e assegura-lhe a sua colaboração.

Encontramo-nos num momento de grande angústia. O mal do terrorismo exige  uma  liderança  ao  nível  mais elevado.

Em primeiro lugar, as pessoas responsáveis devem ser capturadas e julgadas segundo a justiça. Isto deve realizar-se de maneira a não provocar a morte e a destruição de outros cidadãos civis inocentes. A violência seguida da violência só poderá levar a mais violência. Esta é a hora da sabedoria e, ao mesmo tempo, da perseverança. O nosso objectivo deve ser a justiça, e não a vingança.

No dia 13 de Setembro, João Paulo II recebeu as Cartas Credenciais do novo Embaixador dos Estados Unidos da América junto da Santa Sé e, nessa ocasião, disse:  "Ao enfrentar os desafios do futuro, a América é chamada a estimar e a viver os valores mais profundos da sua herança nacional:  a solidariedade e a cooperação entre os povos; o respeito pelos direitos humanos; e a justiça, que é a condição indispensável para a liberdade autêntica e a paz duradoura". Em seguida, o Papa expressou a sua oração "para que este acto desumano desperte nos corações dos povos do mundo uma firme resolução de rejeitar os caminhos da violência, de combater qualquer acção que semeie  ódio  e  divisão  no  seio da família humana..." (Ed. port. de L'Osservatore Romano de 22 de Setembro de 2001, pág. 2).

Prestaremos um falso serviço àqueles que morreram nesta tragédia, se deixarmos de procurar as causas da mesma. Aqui, emerge um amplo leque de factores políticos, económicos, sociais, religiosos e culturais. O denominador comum destes factores é o ódio. Trata-se de um sentimento que transcende qualquer povo ou região. É o ódio pela própria humanidade. Este sentimento mata até mesmo a pessoa que odeia.

Embora a pobreza não seja, por si só, a causa do terrorismo, não podemos combatê-lo eficazmente, se não considerarmos o aumento das desigualdades entre os ricos e os pobres.

Devemos reconhecer que a desigualdade é fundamentalmente incompatível com a segurança mundial.

Actos de vingança não porão fim a este ódio. Aliás, devemos eliminar os elementos mais óbvios que dão origem às condições de ódio e de violência. A pobreza acompanhada de outras situações de marginalização que atinge a vida de um número tão elevado de pessoas no mundo inteiro, inclusivamente a negação da dignidade humana, a falta de respeito pelos direitos do homem e as liberdades fundamentais, a exclusão social, as situações intoleráveis em que vivem os refugiados, as migrações internas e externas, assim como a opressão psicológica constituem terrenos férteis, à espera de serem explorados pelos terroristas.

Quando procuramos as causas primárias do terrorismo, não estamos simplesmente a ser indulgentes em relação ao mesmo. Todavia, qualquer esforço que vise a redução de um crime não pode limitar-se unicamente a uma acção policial intensificada. Qualquer campanha séria contra o terrorismo precisa de considerar as condições económicas e políticas que alimentam a manifestação do terrorismo.

O exemplo mais dramático de desigualdade é o fosso crescente entre os ricos e os pobres. O Norte, com 1/5 da população mundial, controla 80% da riqueza e dos recursos do planeta; o Sul, onde residem 4/5 da população do mundo, só dispõe de 20% das suas riquezas e recursos. Isto não é apenas injusto; é uma ameaça contra a estabilidade do planeta. A determinação dos mais fortes, que visa conservar a sua posição mediante todos os meios necessários, tanto militares como financeiros ou políticos, constitui o fundamento da desigualdade endémica no mundo. O compromisso em benefício da igualdade mundial é a única base segura para um mundo mais humano. As nações devem trabalhar em conjunto, para mitigar os actuais desequilíbrios e melhorar a estabilidade global. A continuação deste status quo injusto, inevitavelmente continuará a alimentar os conflitos e provocar mais lutas nas décadas vindouras.

Hoje, em várias regiões, existem conflitos que não recebem a devida atenção do mundo. Em virtude da sua facilidade de utilização e pronta disponibilidade, as armas pequenas são os instrumentos escolhidos pelos combatentes contemporâneos. A oferta de quantidades quase ilimitáveis de armas pequenas e ligeiras, em regiões onde a tensão é alta, tem alimentado numerosas guerras civis e o caos social. As armas pequenas são responsáveis pela morte de mais de 10 mil pessoas por semana. E a maioria destas vítimas são cidadãos civis.

Mesmo quando o conflito armado abranda, com frequência as armas ligeiras deixam atrás de si uma cultura da violência, que continua a contribuir em grande medida para a miséria humana e a desagregação económica e social nas sociedades devastadas pela guerra. Como resultado, estão a ser frequentemente suspensas as missões internacionais de socorro, uma vez que os socorristas são cada vez mais alvos dos ataques. Por conseguinte, não raro os cidadãos civis padecem dores mais agudas e são privados de tudo por períodos de tempo muito prolongados.

Até hoje, os esforços que visam resolver esta situação pareciam uma confusa rede de iniciativas, com diversos interesses e objectivos que comprometiam muitos países e organizações.

Contrariamente ao esforço em ordem à proibição das minas anti-homem, nenhum país assumiu uma abordagem deveras abrangente, enquanto muitos Estados só enfrentaram esta questão de má vontade. Considerando a finalidade internacional deste dilema, a Organização das Nações Unidas procurou edificar sobre a sua tradição de abordagem do problema das armas ligeiras, promovendo um grandioso encontro no mês de Julho de 2001, para falar sobre as acções concretas que poderiam ser promovidas pela comunidade internacional.

À "Conferência internacional sobre o tráfico ilícito das armas pequenas e das armas ligeiras em todos os seus aspectos" foram atribuídos vários graus de êxito e de fracasso. Em termos de resultados positivos, 189 países conseguiram pôr-se de acordo sobre um Programa de Acção que leve os governos a formular leis, regulamentos e procedimentos administrativos para prevenir o tráfico ilícito de armas pequenas e fazer com que o fabrico, a posse, o armazenamento e o comércio de tais armas sejam considerados um crime punível. Decidiu-se também que uma Conferência analítica terá lugar no máximo até 2006, para examinar o progresso alcançado na realização do acordo, assegurando assim que este constitua o primeiro passo de um esforço que espera-se seja prolongado no tempo. A Conferência também foi recomendada para realçar o problema das armas pequenas e oferecer uma importante base para a sociedade civil, e os governos interessados poderem exigir uma acção séria.

Contudo, o bom êxito da Conferência foi limitado desde o início, dado que apenas começou a abordar os aspectos ilegais do tráfico das armas pequenas. Esta atitude foi criticada porque ignorou o facto de que a maioria das armas ilícitas têm a sua origem no mercado legal de exportações, antes de serem desviadas. Além disso, o acordo a que se chegou constitui uma declaração voluntária não vinculativa, desprovida de qualquer mecanismo executivo, levantando deste modo a questão sobre a medida da seriedade com que será considerado pelos seus signatários. Infelizmente, o documento final da Conferência não incluiu cláusulas que regulassem a propriedade das armas por parte dos cidadãos civis e limitassem as transferências das armas para Estados legítimos.

No ano passado houve também esforços que visavam o revigoramento da Convenção sobre as Armas Biológicas. Designou-se  um  protocolo  para  reforçar  a  Convenção  de  1972,  exigindo que  os  Estados  signatários  declarem a  existência  de  todos  os  equipamentos industriais capazes de fabricar bioarmamentos.

A falta de um acordo unânime sobre o protocolo constituiu um ulterior obstáculo para a cooperação internacional, extremamente necessária para prevenir o terrorismo. A luta contra os perigos do uso terrorista de organismos mortais exige instituições internacionais para o controlo das armas, que sejam mais credíveis do que as já existentes.

Senhor Presidente, a tragédia do dia 11 de Setembro deve impelir-nos a avivar o nosso sentido de urgência, para enfrentarmos de maneira eficaz os perigos que se nos apresentam. Recordemos as palavras do Secretário-Geral, Sua Excelência o Senhor Kofi Annan que, durante o recente debate no âmbito da Assembleia Geral, disse sobre o terrorismo: 

"É difícil imaginar como é que a tragédia do dia 11 de Setembro poderia ser pior. Contudo, a verdade é que um único ataque em que se recorresse às armas nucleares ou biológicas poderia matar milhões de pessoas. Enquanto o mundo não foi capaz de evitar os ataques do dia 11 de Setembro, muito podemos fazer para ajudar a prevenir futuros actos terroristas, levados a cabo com o uso de armas de destruição de massa. O maior e mais imediato perigo provém de um grupo não governamental ou até mesmo de um indivíduo que adquira e use armas nucleares, biológicas ou químicas. Tais armas poderiam ser arremessadas sem a ajuda de um míssil ou de qualquer sistema sofisticado de lançamento".

Nesta Comissão, a Santa Sé pediu muitas vezes o cumprimento das obrigações que todos os Estados têm no âmbito do Tratado de Não-Proliferação, Non-Proliferation Treaty (NPT), deveres estes que foram confirmados pelo Tribunal Internacional de Justiça. Essa obrigação foi expressa de maneira sintética na Revisão do Tratado de Não-Poliferação, efectuada no ano de 2000, em que todos os 187 signatários garantiram "um compromisso inequívoco em favor da eliminação total das armas nucleares". Agora, devemos procurar resolver o problema central relativo às armas nucleares; de forma especial, a mentalidade daqueles que as possuem e afirmam que são essenciais para a sua segurança. Chegou o momento de renunciar a esta reivindicação e de declarar que a posse permanente das armas nucleares e dos outros armamentos de destruição de massa representa um perigo para toda a humanidade e que, por conseguinte, a mesma deve ser abolida.

Juntamente com o Secretário-Geral, a Santa Sé exorta a intensificar os esforços que visam assegurar a universalidade, a verificação e a realização integrais dos principais tratados que se referem  às  armas  de  destruição  de massa, inclusivamente os que confirmam a  ilegalidade  dos  armamentos químicos e biológicos e o Tratado de Não-Poliferação.

Uma atenção especial deverá ser reservada ao Tratado sobre a Proibição Total das Experiências, Comprehensive Test Ban Treaty (CTBT), e a Conferência Internacional, adiada em virtude dos ataques de 11 de Setembro, há-de realizar-se para garantir a entrada em vigor deste mesmo Tratado.

Depois de ter assinado o CTBT no dia 24 de Setembro de 1996, a Santa Sé depositou o correspondente Instrumento de Ratificação no dia 18 de Julho de 2001. Reiterando a firme convicção de que "as armas nucleares são incompatíveis com a paz que buscamos para o século XXI", a Santa Sé acrescentou:  "Estamos persuadidos de que, no campo das armas nucleares, a proibição das experiências e o ulterior desenvolvimento de tais armas, o desarmamento e a não-proliferação estão estritamente unidos entre si e devem ser levados a cabo quanto antes, sob efectivas orientações internacionais". Hoje, a Santa Sé acrescenta a sua voz ao apelo feito aos Estados, cuja ratificação é necessária para a entrada em vigor do mencionado Tratado.

A Comissão Preparatória para o Tratado sobre a Proibição Total das Experiências realizou um trabalho louvável, tornando a comunidade mundial capaz de confiar no bom êxito do próprio CTBT. A Comissão independente sobre a verificabilidade do CTBT oferece a certeza de que os vários instrumentos científicos e as redes especializadas poderão detectar, localizar e identificar com uma elevada probabilidade, qualquer desvio das exigências do mesmo Tratado.

O êxito permanente do Tratado de Não-Proliferação exige a prática do CTBT. Se o mundo deseja pôr termo à proliferação  das  armas  nucleares  e dos outros armamentos, então o fluxo do desenvolvimento de tais armas deverá ser eliminado logo a partir das suas raízes.

Um NPT debilitado e um CTBT inoperável obrigarão o mundo a continuar errante, num arriscado pântano de tensões e de recriminações. Assim, a segurança  de  todos  os  Estados  continuará  a  estar  severamente  exposta ao perigo.

Senhor Presidente, a actual situação mais armas e mais pobreza está a orientar-nos para desastres humanos ainda maiores do que aqueles que nos foram dirigidos no dia 11 de Setembro. Os requisitos elementares para a paz, que buscamos, são os seguintes:  a eliminação dos armamentos de destruição de massa, a limitação do comércio das armas e a erradicação da endémica pobreza das massas. Não temos outra escolha, se quisermos que a humanidade sobreviva.

Este tempo de angústia deve ensinar-nos que a violência e a guerra não são inevitáveis. O nosso destino não é uma colisão inevitável das civilizações. Geralmente, a guerra e a violência de massa derivam das decisões políticas deliberativas. Em vez de intervir nos conflitos violentos, depois de eles terem começado e, em seguida, de se empenhar na edificação da paz no período pós-guerra, é mais humano e mais eficaz prevenir tal violência, indo em primeiro lugar às suas raízes. Esta é a essência da abordagem de uma cultura da paz.

Obrigado, Senhor Presidente!

 

 


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