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INTERVENÇÃO DO OBSERVADOR
PERMANENTE DA SANTA SÉ NA ONU
 NUM ENCONTRO SOBRE DISCRIMINAÇÃO RACIAL

 

28 de Janeiro de 2002

 


Senhor Presidente

Ninguém pode negar que, nos dias de hoje, a família das nações precisa de um concertado programa de acção para abordar a questão do racismo. Temos a necessidade de explorar novos caminhos em ordem a promover, para o futuro, a coexistência e a interacção harmoniosas dos indivíduos e dos povos, no pleno respeito da dignidade, da identidade, da história e da tradição uns dos outros. Citando as palavras de João Paulo II, precisamos de uma cultura do acolhimento recíproco, "reconhecendo em cada homem e mulher um irmão e uma irmã com quem percorrer os caminhos da solidariedade e da paz" (Recitação do Angelus de domingo, 26 de Agosto de 2001, n. 3). O nosso mundo tem necessidade de recordar que a humanidade existe como uma única família humana, no contexto da qual não há espaço para o conceito da superioridade racial.

A Santa Sé tem trabalhado juntamente com as Delegações de inúmeros países para assegurar que a "Conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a relativa intolerância" defina o esboço deste programa. Dirijo um agradecimento reconhecido ao governo da África do Sul, que organizou e orientou esta Conferência. Contudo, a preparação de tal Conferência foi mais difícil do que se imaginava. Durante o processo de preparação houve determinados momentos de tensão e, infelizmente, algumas expressões usadas eram impróprias para uma Conferência que tinha em vista promover a tolerância. E isto é motivo de reprovaçãdo.

Os resultados finais constituem o fruto do compromisso, que pode deixar muitas pessoas insatisfeitas.

Por conseguinte, é necessário que nos interroguemos por que razão a família das nações julga tão difícil abordar o problema do racismo? Por que foi tão difícil tratar uma série de questões contemporâneas, que todos nós reconhecemos como uma potencial ameaça para a manutenção das relações internacionais harmoniosas? Por que foi tão difícil o debate sobre aquilo que todos nós reconhecemos como uma clarividente ofensa contra a dignidade fundamental das pessoas, homens e mulheres, criados à imagem de Deus?

Trata-se de interrogações que a família das nações deve apresentar de maneira legítima, uma vez que dizem respeito às condições das relações internacionais.

Senhor Presidente, tudo isto deve fazer-nos remontar àquilo que eu disse na introdução deste discurso:  a família das nações precisa de um concertado programa de acção para abordar a questão do racismo. Ela tem necessidade deste programa urgentemente e hoje. A tarefa de pôr em prática este programa não pode mais ser adiada. Temos o dever de começar agora.

Ao reflectirmos sobre a Conferência de Durban, talvez tenhamos que começar com a apresentação de uma outra interrogação:  pode o mundo viver sem as contribuições construtivas, que em muitos casos constitui o fruto dos nossos esforços conjuntos, reunidas no Documento final da Conferência de Durban? Podemos porventura pô-las de parte, deixando a questão do racismo e da discriminação racial para uma outra ocasião?

A resposta deve ser um inquestionável "não". Ela deve ser explícita e directa. Com muita frequência na história, na medida em que os novos sinais de racismo se manifestavam com prepotência, as sociedades desprovidas de um espírito crítico permaneciam passivas. Se não formos vigilantes, o ódio e a intolerância podem voltar a manifestar-se em qualquer sociedade, independentemente do nível de progresso a que elas se julgam pertencer.

Por conseguinte, a minha Delegação exorta todas as nações a assumir sem demora, individualmente e em colaboração com os outros Estados e o Departamento do Alto Comissariado para os Direitos do Homem, um programa clarividente para combater o racismo, lançando mão dos inúmeros elementos positivos presentes nos Documentos de Durban.

Tal programa deve começar a partir da legislação e da prática a nível nacional. A mencionada Conferência mundial encorajou todos os Estados a assegurar que "a sua legislação proíba expressa e especificamente a discriminação racial, e ofereça remédios e respostas jurídicas eficazes" (Programa de Acção, n. 163). Esta legislação deve abordar, de maneira especial, a situação dos refugiados e dos migrantes, que com frequência são vítimas da discriminação. Além disso, há-de enfrentar a situação dos povos indígenas e também dos grupos minoritários.

A legislação deve ser acompanhada da formação. A educação sobre a tolerância racial há-de ser uma parte normal dos programas educativos destinados às crianças a todos os níveis. A família, como célula básica da sociedade, constituirá a primeira escola de abertura aos outros e da sua aceitação. As agências governamentais jamais podem justificar a instigação ao racismo, enquanto os meios de comunicação devem estar alertados para evitar qualquer tipo de classificação das pessoas com base na raça a que pertencem.

Em particular, a Santa Sé gostaria de abordar a questão do racismo e da intolerância religiosa, que é analisada em diversas ocasiões no contexto dos Documentos de Durban.

A Declaração de Durban exige que se tomem algumas medidas para garantir que, aos membros das minorias étnicas, religiosas ou linguísticas não seja negado o direito a praticar a sua própria religião. Depois, foi com profunda solicitude que ela reconheceu "a manifestação de actos hostis e violentos contra [determinadas] comunidades, por causa dos seus credos religiosos e da sua origem racial e étnica em várias partes do mundo, que limitam de modo particular o seu direito a praticar livremente a sua fé" (n. 59).

O credo religioso autêntico é absolutamente incompatível com as atitudes e práticas racistas. Neste sentido, antes da realização da Conferência de Durban, o Papa João Paulo II dirigiu um apelo a todos os crentes, observando que não podemos chamar a Deus Pai de todos, se deixarmos de tratar de modo fraternal qualquer pessoa, criada à Sua imagem. Mediante a sua fé conjunta na dignidade de cada indivíduo e na unidade da família humana, os fiéis de todos os credos podem constituir realmente uma forte liderança na promoção do entendimento e da reconciliação entre os povos.

Num mundo em que a religião é com frequência explorada como instrumento para aumentar as divisões políticas, sociais ou económicas já existentes, é encorajador observar o crescente número de iniciativas de diálogo entre as religiões, tanto a nível nacional como internacional. Hoje mais do que nunca, o diálogo inter-religioso é um elemento vital para a promoção da paz e da compreensão, bem como para a superação das divisões e dos mal-entendidos produzidos pela história. Este diálogo pode e deve ser uma forte contribuição para a luta contra o racismo.

A Declaração de Durban recorda que a religião, a espiritualidade e a fé desempenham um papel fulcral na vida dos homens e das mulheres, bem como no modo de viverem e de tratarem as outras pessoas. A mesma Declaração realça o facto de que a religião contribui "para a promoção da dignidade e do valor inatos da pessoa humana e para a eliminação do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e da relativa intolerância" (n. 8).

Sobretudo, a religião pode agir como uma vigorosa força para a conversão individual e colectiva dos corações, sem a qual o ódio, a intolerância e a exclusão jamais conseguirão ser eliminados. A luta contra o racismo exige um concertado programa de acção internacional. Contudo, este combate contra o racismo tem início no coração de cada um de nós e na memória histórica colectiva das nossas comunidades. A luta contra o racismo requer inclusivamente a transformação do coração a nível pessoal. Além disso, exige aquela "purificação da memória" e aquele perdão para o qual o Papa João Paulo II quis exortar na sua última Mensagem para o Dia Mundial da Paz, quando afirmou:  "Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão:  não me cansarei de repetir esta exortação àqueles que, por um motivo ou por outro, nutrem sentimentos de ódio, desejos de vingança ou de destruição".

Senhor Presidente, não podemos concluir esta Sessão sumária da Assembleia da Organização das Nações Unidas sem dar um novo vigor à luta contra o racismo. Este é o nosso dever em relação às vítimas da discriminação racial, aos nossos respectivos povos e à humanidade inteira.

 

 

 

    

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