Síntese da Resposta da Santa Sé ao Deputado Eamon Gilmore,
A 14 de Julho de 2011, após a publicação do Relatório da Comissão de Inquirição sobre a diocese de Cloyne, conhecido como Cloyne Report, o Deputado Gilmore, Vice-Primeiro-Ministro da Irlanda (Tánaiste) e Ministro dos Negócios Estrangeiros e do Comércio, durante um encontro com Sua Ex.cia D. Giuseppe Leanza, Núncio Apostólico na Irlanda, pediu à Santa Sé, em nome do Governo irlandês, que intervenha em relação ao Cloyne Report e às considerações formuladas sobre o mesmo por parte do Governo. Observações gerais sobre o Cloyne ReportA Santa Sé examinou com atenção o Cloyne Report, encontrando graves e preocupantes erros no modo de enfrentar as acusações de abuso sexual de crianças e menores por parte de sacerdotes da diocese de Cloyne. A Santa Sé deseja reafirmar, antes de mais, o próprio horror em relação a crimes de abuso sexual que se verificaram naquela diocese; está profundamente contristada e envergonha-se pelos terríveis sofrimentos que as vítimas e as suas famílias tiveram que suportar na Igreja de Jesus Cristo, isto é, um lugar onde este facto nunca deve acontecer. Além disso, a Santa Sé não pode esconder a própria grave preocupação pelas conclusões da Comissão, sobre as graves faltas no governo da Diocese e o tratamento inadequado das acusações de abuso. É particularmente preocupante que tais faltas se tenham verificado embora os Bispos e os Superiores religiosos tenham assumido o compromisso de aplicar as linhas-guia feitas pela Igreja na Irlanda para garantir a protecção dos menores, e não obstante as normas e procedimentos da Santa Sé relativos aos casos de abuso sexual. Contudo, a abordagem adoptada pela Igreja na Irlanda em tempos recentes em relação ao problema do abuso sexual contra menores está a beneficiar da experiência em curso e a demonstrar-se cada vez mais eficaz na prevenção da repetição de tais crimes e no modo de tratar os casos que surgem. Questões levantadas pelo Cloyne ReportO texto da resposta da Santa Sé enfrenta pormenorizadamente as diversas acusações feitas contra ela, que parecem estar fundadas principalmente na exposição e na avaliação que o Cloyne Report fez da carta dirigida aos Bispos irlandeses, a 31 de Janeiro de 1997, por Sua Ex.cia D. Luciano Storero, então Núncio Apostólico na Irlanda. Essa carta comunicava a resposta da Congregação para o Clero ao documento Child Sexual Abuse: Framework for a Church Response (que passamos a chamar Documento Quadro). A Comissão de Inquirição afirma que a acima mencionada resposta forneceu apoio a quantos discordavam da posição oficial da Igreja e foi de pouca ajuda sobretudo em relação à denúncia às Autoridades civis. A Santa Sé deseja afirmar quanto segue em relação à resposta da Congregação para o Clero: — A Congregação descreveu o Documento Quadro como «documento de estudo» com base nas informações fornecidas pelos Bispos irlandeses, que descreveram o texto não como um documento oficial da Conferência Episcopal Irlandesa, mas antes como um «relatório» da Comissão consultiva dos Bispos Católicos irlandeses sobre os abusos sexuais de menores da parte do clero e de religiosos. Este relatório tinha sido na época recomendado «a cada uma das dioceses e às congregações religiosas como documento quadro para enfrentar as problemáticas relativas ao abuso sexual de menores». — Os Bispos irlandeses nunca pediram a «recognitio» da Santa Sé para o Documento Quadro, que, segundo o Cân. 455 do Código de Direito Canónico, teria sido necessário pedir unicamente se eles desejassem que o documento fosse um decreto geral da Conferência Episcopal, com força constringente sobre todos os seus membros. Contudo, a falta da recognitio em si não impedia a aplicação das indicações contidas no documento, dado que cada Bispo podia adoptá-las, sem ter que referir à Santa Sé. E esta aplicação foi o que aconteceu em geral na Irlanda. — Os Bispos irlandeses consultaram a Congregação para resolver dificuldades relativas a alguns conteúdos do Documento Quadro. A Congregação aconselhou os Bispos para que garantissem que as medidas que eles pretendiam aplicar, fossem eficazes e não problemáticas sob o ponto de vista canónico. Por esta razão, a Congregação chamou a atenção para a necessidade de que tais medidas estivessem em harmonia com os procedimentos canónicos a fim de evitar conflitos que poderiam originar apelos com êxito positivo nos Tribunais eclesiásticos. A Congregação não rejeitou o Documento Quadro. Ao contrário, ela quis garantir que as medidas contidas no Documento Quadro não fossem de impedimento aos esforços dos Bispos na aplicação das medidas disciplinares contra aqueles que eram culpados de abuso sexual na Igreja. Ao mesmo tempo, é importante recordar a decisão da Santa Sé em 1994 que concedia uma norma especial aos Bispos dos Estados Unidos para o tratamento do abuso sexual de menores na Igreja. Esta norma foi concedida aos Bispos da Irlanda em 1996 para os apoiar na superação das dificuldades que estavam a viver naquela época (cf. Parte VI da Resposta). — A necessidade de seguir o Direito Canónico para garantir a correcta administração da justiça na Igreja de modo algum impedia a cooperação com as Autoridades civis. A Congregação para o Clero manifestou reservas acerca da obrigação de denúncia; contudo não proibiu que os Bispos irlandeses denunciassem às Autoridades civis as acusações de abuso sexual de menores, nem encorajou os Bispos a não respeitar a lei. A este propósito, o então Prefeito da Congregação, Cardeal Darío Castrillón Hoyos, no seu encontro com os Bispos irlandeses em Rosses Point, Condado de Sligo, na Irlanda, a 12 de Novembro de 1998, afirmou sem equívocos: «Desejo dizer também com grande clareza que a Igreja, especialmente através dos seus Pastores (os Bispos), não deve de modo algum ser de obstáculo ao legítimo caminho da justiça civil, quando ele foi iniciado por quantos a ele têm direito, enquanto que ao mesmo tempo a Igreja deve prosseguir com os próprios procedimentos canónicos, na verdade, na justiça e na caridade para com todos». Deve-se fazer notar também que, na época, não só a Igreja mas inclusive o Estado na Irlanda estavam comprometidos no esforço de melhorar a própria legislação relativa aos abusos sexuais de menores. Para esta finalidade, o Governo irlandês organizou em 1996 uma ampla consulta sobre a obrigação de denúncia às Autoridades civis e, depois de ter tomado em consideração as reservas expressas por vários grupos de profissionais e por indivíduos da sociedade civil, que estavam em ampla medida em sintonia com as que foram indicadas pela Congregação, decidiu não introduzir a obrigação de denúncia no âmbito do sistema jurídico irlandês. Considerando que o Governo irlandês daqueles anos decidiu não legislar sobre a matéria, é difícil compreender como a carta de Sua Ex.cia D. Storero aos Bispos irlandeses, que foi escrita sucessivamente, tenha podido ser interpretada como um instrumento que de alguma forma subvertia a lei irlandesa ou era de impedimento ao Estado irlandês nos seus esforços por enfrentar o problema em causa. Questões levantadas por alguns representantes políticos irlandesesA Santa Sé deseja esclarecer quanto segue em relação a algumas reacções de representantes políticos irlandeses: — A Santa Sé compreende e partilha os profundos sentimentos de cólera e frustração manifestados publicamente perante quanto emergiu com o Cloyne Report, e que encontrou expressão no discurso do Dep. Enda Kenny, Primeiro-Ministro (Taoiseach), feito na Câmara dos Deputados (Dáil Éireann) a 20 de Julho de 2011. Contudo a Santa Sé sente significativas reservas sobre alguns aspectos do discurso. Em particular, é infundada a acusação de que a Sé Apostólica tenha procurado «dificultar a Inquirição numa República soberana e democrática, há apenas três anos, não há trinta anos». De resto, um porta-voz governamental, quando foi interrogado a este propósito, esclareceu que o Dep. Kenny não se referia a qualquer episódio específico. De resto, as acusações de ingerência por parte da Santa Sé são desmentidas por muitos relatórios que também são utilizados para a criticar. Aqueles relatórios, louvados pela sua satisfatória investigação dos abusos sexuais e do modo como ela foi feita, não fornecem provas de que a Santa Sé tenha interferido nos assuntos internos do Estado irlandês ou, até, tenha sido implicada na gestão ordinária das dioceses irlandesas ou das congregações religiosas acerca dos problemas dos abusos sexuais. Aliás, o que faz admirar destes relatórios e das numerosas informações sobre as quais se baseiam é a falta de documentação como apoio de tais acusações. A este propósito, a Santa Sé deseja ressaltar que de modo algum ela impediu ou tentou interferir em qualquer das averiguações sobre os casos de abuso sexual de menores na diocese de Cloyne. Além disso, em momento algum, a Santa Sé procurou interferir no direito irlandês ou dificultar as Autoridades civis no exercício das suas funções. — A Santa Sé deseja frisar também que o texto do então Cardeal Joseph Ratzinger, mencionado pelo Dep. Kenny, é uma citação tirada do n. 39 da Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé a 24 de Maio de 1990. Este texto não trata o modo como a Igreja deveria comportar-se no âmbito de uma sociedade democrática nem sequer se refere a temáticas relativas à protecção da infância, como o uso da citação que faz o Dep. Kenny parece afirmar, mas refere-se ao serviço do teólogo na comunidade eclesial. — No seu encontro com o Núncio Apostólico, o Vice-Primeiro-Ministro da Irlanda (Tánaiste) e Ministro dos Negócios Estrangeiros e do Comércio, Dep. Eamon Gilmore, afirmou que «entre as mais preocupantes conclusões do Cloyne Report se encontra aquela segundo a qual as Autoridades vaticanas, descrevendo o Documento Quadro adoptado pela Conferência Episcopal como um mero “documento de estudo”, dificultaram os esforços da Igreja irlandesa no tratamento dos abusos sexuais de menores cometidos pelo clero». Como é esclarecido na resposta da Santa Sé, a mencionada expressão fundava-se nas explicações da sua natureza fornecidas pelos Bispos irlandeses e no mesmo texto publicado. De modo algum pretendia desqualificar os sérios esforços empreendidos pelos Bispos irlandeses para enfrentar o flagelo do abuso sexual de menores. — Quanto à moção aprovada pela Câmara dos Deputados (Dáil Éireann), a 20 de Julho de 2011, e pelo Senado (Seanad Éireann), uma semana depois, que deplora «a intervenção do Vaticano que contribuiu para dificultar o Documento Quadro para a protecção da infância e das linhas-guia do Estado irlandês e dos Bispos irlandeses», a Santa Sé deseja esclarecer que, em momento algum, se pronunciou sobre as medidas de protecção da infância adoptadas pelo Estado irlandês, e muito menos procurou impedi-las. A Santa Sé faz notar que não há provas citadas em parte alguma do Cloyne Report que permitam concluir que a sua «presumível intervenção» tenha favorecido o impedimento das mencionadas medidas. Depois, no que se refere às linhas-guia estabelecidas pelos Bispos irlandeses, a Resposta oferece esclarecimentos suficientes para mostrar que de modo algum elas foram debilitadas por qualquer intervenção da Santa Sé. Observações conclusivasNa sua resposta, a Santa Sé oferece uma apresentação da abordagem da Igreja à protecção dos menores, incluindo a relativa norma canónica, e faz referência à Carta aos Católicos da Irlanda do Santo Padre Bento XVI, publicada a 19 de Março de 2010, na qual o Pontífice indica que se espera que os Bispos irlandeses cooperem com as Autoridades civis, apliquem plenamente as normas do Direito Canónico e garantam a total e imparcial aplicação das normas da Igreja na Irlanda para a protecção dos menores. A publicação do Cloyne Report assinala um ulterior passo no longo e difícil caminho de certificação da verdade, de penitência e de purificação, de cura e renovação da Igreja na Irlanda. A Santa Sé não se considera alheia a este processo mas partilha-o em espírito de solidariedade e compromisso. A Santa Sé, ao rejeitar as acusações infundadas, aceita em espírito de humildade todas as observações e sugestões objectivas e úteis para combater com determinação o hediondo crime do abuso sexual de menores. A Santa Sé deseja reafirmar que partilha a profunda preocupação e a apreensão expressas pelas Autoridades irlandesas, pelos cidadãos irlandeses em geral e pelos Bispos, sacerdotes, religiosos e leigos da Irlanda em relação aos crimes e pecaminosos actos de abuso sexual perpetrados por membros do clero e por religiosos. A Sé Apostólica está consciente também do compreensível ressentimento, da desilusão e do sentido de traição sentidos por quantos, especialmente pelas vítimas e seus familiares, foram marcados por estes vis e deploráveis actos e pelo modo como eles por vezes foram enfrentados pelas autoridades eclesiásticas. Por isso a Santa Sé deseja reafirmar o seu sofrimento por quanto aconteceu. Ela espera que as medidas que a Igreja introduziu nos últimos anos a nível universal, e também na Irlanda, se demonstrem mais eficazes para impedir que se repitam tais actos e contribuam para a cura daqueles que sofreram pelos abusos, assim como para restabelecer a confiança recíproca e a colaboração entre as Autoridades eclesiásticas e as estatais, que são essenciais para combater eficazmente o flagelo do abuso. Naturalmente, a Santa Sé bem sabe que a dolorosa situação provocada pelos episódios não pode ser resolvida rápida ou facilmente e que, não obstante se tenham obtido muitos progressos, resta ainda muito a fazer. Desde os primeiros dias do Estado irlandês, e sobretudo a partir do estabelecimento das relações diplomáticas em 1929, a Santa Sé sempre respeitou a soberania da Irlanda, manteve relações cordiais e amistosas com o país e com as suas Autoridades, manifestou com frequência a sua admiração pela extraordinária contribuição oferecida por homens e mulheres irlandeses para a missão da Igreja e o melhoramento das condições de vida das populações em todo o mundo; além disso, a Santa Sé não deixou faltar o seu apoio a todos os esforços para promover a paz na ilha durante os últimos atormentados decénios. Em sintonia com esta atitude, a Santa Sé deseja reafirmar o seu compromisso num diálogo construtivo e na cooperação com o Governo irlandês, naturalmente com base no respeito recíproco, de modo que todas as instituições, quer públicas quer privadas, religiosas ou civis, possam cooperar para garantir que a Igreja, e aliás a sociedade em geral, sejam sempre um lugar seguro para a infância e os jovens.
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