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CONGREGAÇÃO PARA OS BISPOS

 

HOMILIA DO CARDEAL GIOVANNI BATTISTA RE
  POR OCASIÃO DA FESTA DE SÃO BENTO
 PADROEIRO DA EUROPA NO MOSTEIRO
BENEDITINO DE MONTECASSINO

21 de Março de 2003

 

Não é sem emoção que se sobe a esta abadia, lugar de procura de Deus na oração e no silêncio, símbolo de paz e de fraternidade, mas também lugar de história e de vida cultural.

Neste momento dramático em que, no coração de todos nós, há inquietação e tristeza pela guerra que ontem começou, queremos rezar por intercessão de São Bento, a fim que a Providência Divina vá ao encontro das coisas humanas:  a mão de Deus venha fazer aquilo que a mão dos homens não sabe e não pode realizar.

O pensamento volta espontaneamente no tempo, a um milénio e meio, aos tempos do aparecimento de São Bento no cenário da Itália e da Europa. Eram tempos obscuros e difíceis. Roma tinha concluído o seu curso de "caput mundi", capital do mundo:  o Império Romano tinha terminado em 476, ou seja, alguns anos antes do nascimento de São Bento, em Núrsia (na Úmbria). Como se sabe, as províncias italianas foram invadidas pelos Godos e, em seguida, pelos Ostrogodos; a África do Norte, pelos Vândalos; a Espanha, pelos Visigodos; e a Gália, pelos Francos. As pilhagens, as mortes e as violências geravam medo e angústia nas populações. Tinha desaparecido toda a segurança social.

Amargurado com o ambiente romano, aonde tinha ido para estudar, Bento partiu em busca de solidão nos montes da Sabina e, depois, vai a Subiaco. Encontrou o monge Romano, que lhe oferece ajuda para a nova vida e lhe impôs o hábito monástico.

Em Subiaco, uma fervorosa vida religiosa começou a formar-se e a receber dele o alimento. Fundaram-se vários mosteiros. O lugar último e definitivo aonde Bento chegou foi este Monte de Cassino, coberto de bosques, em cujos cumes havia um templo dedicado a Apolo,  e  em  cujo  lugar  ele  erigiu uma igreja dedicada a São Martinho de Tours.

Quando chegou aqui a Montecassino (cerca do ano de 529), onde passou os últimos onze anos da sua vida, Bento tinha o seu coração aberto exclusivamente a Deus:  a vida de oração e a superação das tentações provadas purificaram-no.

Reuniu à sua volta homens, fascinados pelo testemunho da sua vida. A quem pedia para entrar no mosteiro, a pergunta que condicionava a admissão era uma só:  "Verdadeiramente procuras Deus?" (Regra 58. 7).

O bom êxito da Regra de São Bento deve-se ao facto de que resume e harmoniza as duas grandes orientações presentes desde as origens do monaquismo: 

a) o ideal anacoreta, feito de ascese, solidão e oração, expressão da procura apaixonada de Deus;

b) o ideal da comunhão, da fraternidade e da ajuda recíproca no caminho rumo a Deus. No mosteiro, não havia distinção entre livres e escravos, entre nobres e plebeus. Todos eram iguais.

Esta Regra conheceu uma fama e uma difusão crescentes, em todo o Ocidente, o que significava não apenas um desenvolvimento extraordinário da vida monástica, mas também um poderoso impulso para a evangelização.

Os mosteiros foram centros de irradiação do Evangelho, mas também centros de cultura, que conservavam e difundiam a cultura greco-romana, e centros que realizaram uma verdadeira promoção social.

Os estudiosos da história da civilização ocidental realçam o papel que São Bento desempenhou na conservação da cultura greco-romana e na formação da cultura medieval cristã.

Na realidade, São Bento não desejava fundar um organismo para a transmissão da cultura. Ele queria que o mosteiro fosse uma pequena comunidade ideal, que vivesse segundo o Evangelho. A sua finalidade era religiosa mas, com efeito, nos mosteiros por ele fundados, ou que nele se inspiraram, a actividade cultural ocupou um lugar importante, porque a prioridade dada à "lectio divina", à leitura do Evangelho, exigia que cada um dos monges tivesse uma escola onde ensinar os iletrados a ler e a escrever, e onde ensinar-lhes os rudimentos da cultura. Cada mosteiro procurava ter livros e códices. Copiavam-se os manuscritos antigos e traduziam-se as obras gregas. As bibliotecas dos mosteiros foram enriquecidas cada vez mais, e assim, obras do pensamento e da literatura do passado podiam ser conservadas para a posteridade.

Embora não tivessem esta finalidade directa, os mosteiros tornaram-se os mais importantes centros de elaboração e de irradiação cultural. Assim, favoreceu-se o nascimento de uma cultura, que conseguiu integrar os valores do humanismo pagão numa nova síntese cristã. E isto, precisamente quando as invasões bárbaras, com as suas devastações, eliminaram todos os vestígios de civilização.

Ao mesmo tempo, os mosteiros beneditinos tornaram-se também escolas de agricultura, centros de actividade agrícola e de saneamento, bem como escolas de artes e profissões.

Segundo São Bento, a vida monástica devia ser não apenas oração, penitência e ascese, ou seja, não só consagração a Deus, como alguns modelos orientais, mas também actividade e trabalho produtivo para a manutenção do mosteiro e para ajudar os indigentes e os necessitados. Esta disposição, aplicada em vasta escala em virtude da multiplicação dos mosteiros, teve uma influência positiva sobre o continente europeu.

O lema "ora et labora" (reza e trabalha) resume e exprime bem a espiritualidade beneditina, porque realiza uma feliz síntese entre oração e trabalho.

Este lema foi fermento de progresso religioso e, ao mesmo tempo, civil:  a oração  e  a  meditação  davam  incentivo,  inspiração  e  entusiasmo  ao  cansaço do trabalho, às vezes muito duro, na origem das várias fundações de mosteiros.

Sem  dúvida,  São  Bento  deixou  um sinal  na  história  da  Igreja  e  da  humanidade e, ainda hoje, tem muito a ensinar.

São Bento e os mosteiros beneditinos tiveram um papel de primeiro plano na unificação espiritual da Europa.

Depois da queda do Império Romano, os habitantes do território do antigo Império eram cristãos, enquanto os invasores eram, em grande parte, pagãos ou arianos (como os Godos).
A adesão de todos à única fé cristã foi o factor que levou à fusão entre o elemento romano e o elemento germânico-gótico.

A cristianização da Europa, para a qual numerosos mosteiros beneditinos deram uma grande contribuição, levou à consciência da unidade espiritual, que serviu para unir povos profundamente diferentes entre si. As invasões e as lutas dividiram-nos e opuseram-nos, mas foi a mesma fé que os uniu.

Em virtude da única fé religiosa, povos e reinos diferentes e, muitas vezes, em luta entre si, uniram-se numa mesma escala de valores. Foi assim que nasceu a civilização europeia, fundamentada no reconhecimento do primado de Deus sobre a história, e do espírito sobre a matéria.

Assim, a Europa nasceu como unidade espiritual, animada pelo cristianismo:  a Europa e o cristianismo entrelaçaram-se ao longo dos séculos, e a Europa tornou-se um farol de civilização também para os outros continentes.

A São Bento e aos mosteiros que nele se inspiraram pertence o mérito de terem realizado uma síntese entre a civilização pagã e o cristianismo, aplanando o caminho para aquela que foi a "civilização medieval".

Se, à luz da mensagem que São Bento  continua  a  lançar  ao  mundo,  prestarmos atenção ao nosso tempo, em que se está a construir a União Europeia, compreenderemos como é importante a tarefa que compete aos cristãos de hoje.

Obviamente, ninguém deseja basear-se no antigo modelo de cristandade, mas  o  dinamismo  e  a  fecundidade da fé  cristã  podem  oferecer  um  válido contributo para a construção da União Europeia.

A perda do sentido de Deus levou também à perda do sentido do homem:  do seu valor, do respeito que é devido à sua dignidade de pessoa, do respeito que se deve à vida humana e aos seus direitos inalienáveis, porque Deus é o fundamento da grandeza do ser humano e o "mistério do homem" só encontra a sua luz integral no mistério do Filho de Deus que se fez homem (cf. Lumen gentium, 22).

Na Europa pluralista de hoje, composta de diversos povos com diferentes línguas, a mensagem cristã que não está vinculada a qualquer sistema político, social ou económico, e nem sequer a qualquer forma específica de cultura pode constituir, precisamente em virtude da sua universalidade, um verdadeiro elo de ligação entre as várias comunidades humanas e nacionais; pode tornar-se como no tempo de São Bento um instrumento de unificação e de colaboração no interior de uma Europa pluralista.

É necessária uma consciência nova, que saiba conservar uma herança de mais de quinze séculos, fazendo uma nova síntese dos valores das culturas contemporâneas. Muitos destes valores constituem uma expressão ou uma modalidade secularizada dos valores cristãos, que mergulham as suas raízes no Evangelho.

A Europa de hoje tem necessidade de crentes conscientes da riqueza que a fé cristã oferece à sociedade do nosso tempo.

A moeda única, alcançada com o euro, representa um passo importante, mas a Europa precisa de mais alguma coisa, ela tem necessidade de uma alma:  e a alma da Europa são os valores religiosos e os valores culturais, artísticos e históricos, acumulados ao longo dos séculos.
A fé tem inclusivamente um papel social, porque o que é cristão é também autenticamente humano, e serve o bem comum de todos. Os pais fundadores da Europa unida (De Gasperi, Adenauer e Schumann) estavam profundamente convencidos disto.

A recordação de 21 de Março do ano 547, quando São Bento morreu aqui em Montecassino, torna-se também um apelo ao compromisso a fim de que, na Constituição que se está a delinear para a Europa, não falte uma referência às suas raízes cristãs, e para que nela venha a encontrar um espaço adequado o reconhecimento do papel das Igrejas e das Comunidades religiosas, de maneira a podermos ter uma União Europeia, espiritual e culturalmente unida, no respeito dos legítimos pluralismos.

Aqui, o vento da história recorda que todos os países europeus foram formados também pela civilização cristã, e que reconhecê-lo não significa impor algo, nem negar uma justa laicidade à norma da convivência, mas oferecer uma contribuição grande e importante para a construção da casa comum europeia, consolidando uma civilização atenta à compreensão mútua entre os povos.
Parece que aqui, em Montecassino, o sino da história está a tocar a rebate, em ordem a convidar para construir a Europa sobre aqueles valores que estão inscritos na história europeia, mas também estão impressos no coração e na  consciência  de  muitos  homens  e mulheres.

São Bento continue a iluminar o caminho  da  Itália,  da  Europa  e  da  humanidade.

 

 

 

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