NOTA PRELIMINAR
O estudo do tema "A igreja e as culpas do passado" foi proposto à Comissão Teológica Internacional pelo seu Presidente, Cardeal J. Ratzinger, tendo em vista a celebração do Jubileu do ano 2000. Para preparar este estudo foi constituída uma subcomissão composta pelo Rev. Christopher Begg, Mons. Bruno Forte (presidente), Rev. Sebastian Karotemprel S.D.B., Mons. Roland Minnerath, Rev. Thomas Norris, Rev. Rafael Salazar Cardenas M.Sp.S. e Mons. Anton Strukelj. As discussões gerais sobre este tema desenrolaram-se em inúmeros encontros da subcomissão e durante as sessões plenárias da mesma Comissão Teológica Internacional, que tiveram lugar em Roma em 1998 e 1999. O presente texto foi aprovado sob forma specifica com voto por escrito da Comissão, e, em seguida, apresentado ao seu presidente, Cardeal J. Ratzinger, Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que deu a sua aprovação para publicação.
INTRODUÇÃO
A bula de proclamação do Ano Santo de 2000, Incarnationis mysterium (29 de Novembro de 1998), aponta entre os sinais "que oportunamente podem servir para viver com maior intensidade a insigne graça do jubileu", a purificação da memória. Esta consiste no processo destinado a libertar a consciência pessoal e colectiva de todas as formas de ressentimento ou violência que a herança de culpas do passado pode haver deixado, mediante uma renovada avaliação histórica e teológica dos acontecimentos implicados que conduza - se for esse o resultado - ao correspondente reconhecimento de culpa e contribua para um real caminho de reconciliação. Semelhante processo pode incidir de modo significativo no presente, justamente porque as culpas passadas fazem frequentemente sentir ainda o peso das suas consequências e permanecem como outras tantas tentações também hoje.
Enquanto tal, a purificação da memória requer "um acto de coragem e humildade para reconhecer as faltas cometidas por quantos tiveram e têm o nome de cristãos", e funda-se na convicção de que "por causa daquele vínculo que nos une uns aos outros no corpo místico, todos nós, não tendo embora responsabilidade pessoal por isso e sem nos substituirmos ao juízo de Deus - o único que conhece os corações -, carregamos o peso dos erros e culpas dos que nos precederam". João Paulo II acrescenta: "Como sucessor de Pedro, peço que neste ano de misericórdia a Igreja, fortalecida pela santidade que recebe do seu Senhor, se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos." (1) Para confirmar que "os cristãos são convidados a assumir, perante Deus e os homens ofendidos pelos seus comportamentos, as faltas que cometeram", o Papa conclui: "Façam-no sem nada pedir em troca, animados apenas pelo 'amor de Deus [que] foi derramado em nossos corações' (Rm 5,5)." (2)
Os pedidos de perdão feitos pelo Bispo de Roma neste espírito de autenticidade e gratuidade, suscitaram diversas reacções: a incondicional confiança que o Papa demonstrou ter no poder da Verdade encontrou acolhimento geralmente favorável, dentro e fora da comunidade eclesial. Não poucos sublinharam a acrescida credibilidade das declarações eclesiais em consequência deste comportamento. Não faltaram, porém, algumas reservas, expressão sobretudo da apreensão ligada a particulares contextos históricos e culturais, em que a mera admissão de faltas cometidas pelos filhos da Igreja poderia assumir o significado de uma cedência perante as acusações de quem lhe é preconceituosamente hostil. Entre consenso e apreensão, adverte-se para a necessidade de uma reflexão que esclareça as razões, condições e exacta configuração dos pedidos de perdão relativos às culpas do passado. Desta necessidade entendeu encarregar-se a Comissão Teológica Internacional, na qual estão representadas diferentes culturas e sensibilidades no interior da única fé católica, elaborando o presente texto. Nele é oferecida uma reflexão teológica acerca das condições de possibilidade dos actos de "purificação da memória", ligados ao reconhecimento das culpas do passado.
As questões a que se procura responder são: Porquê efectuar tais actos? Quais os seus sujeitos adequados? Qual o seu objecto e como é ele determinado, conjugando correctamente juízo histórico e juízo teológico? Quais são os destinatários? Quais as implicações morais? E quais os possíveis efeitos na vida da Igreja e na sociedade? O objectivo do texto não é, portanto, levar a exame casos históricos particulares, mas clarificar os pressupostos que tornam fundado o arrependimento relativo a culpas passadas.
O haver precisado, desde o início, o género de reflexão aqui apresentada clarifica também aquilo a que nos referimos quando se fala da Igreja: não se trata nem só da instituição histórica, nem apenas da comunhão espiritual dos corações iluminados pela fé. Por Igreja entender-se-á sempre a comunidade dos baptizados, inseparavelmente visível e operante na história sob a direcção dos pastores, e unificada na profundidade do seu mistério pela acção do Espírito vivificante; aquela Igreja que - segundo as palavras do concílio Vaticano II - "por uma não fraca analogia é comparada ao mistério do Verbo incarnado. Pois, assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo (cf. Ef 4,16)" (LG 8). Esta Igreja - que abraça os seus filhos do passado, assim como os do presente, numa real e profunda comunhão - é a única Mãe na Graça que carrega em si o peso das culpas também passadas para purificar a memória e viver a renovação do coração e da vida segundo a vontade do Senhor.Pode fazê-lo porquanto Jesus Cristo - de que é o Corpo misticamente prolongado na história - assumiu em si, de uma vez por todas, os pecados do mundo.
A estrutura do texto reflecte as questões colocadas: faz primeiramente uma breve revisitação histórica do tema (cap. I), para poder indagar, depois, os fundamentos bíblicos (cap. II) e aprofundar as condições teológicas dos pedidos de perdão (cap. III). A precisa conjugação de juízo histórico e juízo teológico é elemento decisivo para chegar a asserções correctas e válidas, que dêem adequadamente conta dos tempos, dos lugares e dos contextos em que se situam os actos considerados (cap. IV). Às implicações morais (cap. V), pastorais e missionárias (cap. VI) destes actos de arrependimento relativos às culpas do passado, são dedicadas as considerações finais, que têm naturalmente um valor específico para a Igreja católica. Mas a consciência de que a exigência de reconhecer as culpas próprias tem razão de ser para todos os povos e para todas as religiões, faz-nos desejar que as reflexões propostas ajudem todos a avançar pelo caminho da verdade, do diálogo fraterno e da reconciliação.
Para concluir esta introdução, não será inútil mencionar de novo a finalidade última de todo o possível acto de "purificação da memória" levado a cabo pelos crentes, pois também ele inspirou o trabalho da Comissão: trata-se da glorificação de Deus, porque viver na obediência à Verdade divina e às suas exigências leva a confessar, juntamente com as nossas culpas, a misericórdia e justiça eternas do Senhor. A confessio peccati - sustentada e iluminada pela fé na Verdade que liberta e salva (confessio fidei) - torna-se confessio laudis dirigida a Deus, na presença de quem apenas é possível reconhecer as culpas do passado assim como as do presente, para nos deixarmos reconciliar n'Ele e com Ele em Jesus Cristo, único Salvador do mundo, e tornarmo-nos capazes de oferecer o perdão a quantos tivermos ofendido. Esta oferta de perdão surge particularmente significativa se pensarmos em tantas perseguições sofridas pelos cristãos ao longo da história. Nesta perspectiva, os actos realizados e pedidos pelo Papa, em relação às culpas do passado, apresentam valor exemplar e profético, quer para as religiões quer para os governos e as nações, para além da Igreja católica que poderá, desse modo, ser ajudada a viver de maneira mais eficaz o grande Jubileu da incarnação como acontecimento de graça e de reconciliação para todos.
1. O PROBLEMA: ONTEM E HOJE
1.1. Antes do Vaticano II
O Jubileu foi sempre vivido na Igreja como um tempo de alegria pela salvação dada em Cristo e como ocasião privilegiada de penitência e reconciliação pelos pecados presentes na vida do povo de Deus. Desde a sua primeira celebração, com Bonifácio VIII, no ano de 1300, a peregrinação penitencial ao túmulo dos Apóstolos Pedro e Paulo está associada à concessão de uma indulgência excepcional para obter, com o perdão sacramental, a remissão total ou parcial das penas temporais devidas aos pecados.(3) Neste contexto, quer o perdão sacramental quer a remissão das penas revestem-se de carácter pessoal. Ao longo do "ano do perdão e da graça",(4) a Igreja dispensa de modo particular o tesouro de graças que Cristo constituiu em seu favor.(5) Em nenhum dos jubileus celebrados até hoje, porém, houve uma tomada de consciência das eventuais culpas do passado da Igreja, nem da necessidade de pedir perdão a Deus por comportamentos do passado próximo ou remoto.
Deste modo não se encontram, em toda a história da Igreja, precedentes de pedidos de perdão relativos a culpas do passado, que tenham sido formulados pelo Magistério. Os concílios e os decretos papais sancionavam, é certo, os abusos de que fossem dados como culpados clérigos ou leigos, e não eram poucos os pastores que se esforçavam sinceramente por os corrigir. Foram, porém, raríssimas as ocasiões em que as autoridades eclesiais - papas, bispos ou concílios - reconheceram abertamente as culpas ou os abusos de que fossem culpados eles próprios. Um exemplo célebre é dado pelo papa reformador Adriano VI que reconhecia publicamente numa mensagem à Dieta de Nuremberga, em 25 de Novembro de 1522, "as abominações, os abusos […] e a prevaricações" de que era culpada a "corte romana" do seu tempo, "doença […] profundamente radicada e propagada" que se estendia "da cabeça aos membros".(6) Adriano VI lamentava as culpas contemporâneas, precisamente as dos seu imediato predecessor, Leão X, e da sua cúria, sem, no entanto, lhe associar um pedido de perdão.
Será necessário esperar por Paulo VI para ver um Papa exprimir um pedido de perdão dirigido quer a Deus quer a um grupo de contemporâneos. No discurso de abertura da 2ª sessão do Concílio, o Papa "pede perdão a Deus […] e aos irmãos separados" do Oriente que se sentirem ofendidos "por nós" (Igreja católica), e declara-se pronto, da sua parte, a perdoar as ofensas recebidas. Na perspectiva de Paulo VI o pedido e a oferta de perdão diziam unicamente respeito ao pecado da divisão entre cristãos e pressupunham reciprocidade.
1.2. Ensinamento do Concílio
O Vaticano II coloca-se na mesma perspectiva de Paulo VI. Pelos erros cometidos contra a unidade - afirmam os Padres conciliares - "pedimos perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também perdoamos àqueles que nos ofenderam" (UR 7). Para além dos erros contra a unidade, o Concílio assinala outros episódios negativos do passado, nos quais os cristãos tiveram responsabilidade. Desse modo, "deplora certas atitudes de espírito que não faltaram mesmo entre os cristãos", que puderam fazer pensar numa oposição entre ciência e fé (GS 36). Considera, igualmente, que "na génese do ateísmo", os cristãos podem ter tido "uma certa reponsabilidade", na medida em que com a sua negligência "antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião" (GS 19). Além disso, o Concílio "deplora" as perseguições e manifestações de anti-semitismo levadas a cabo "seja em que tempo for e seja por quem for" (NA 4). Contudo, o Concílio não associa um pedido de perdão aos factos citados.
Do ponto de vista teológico, o Vaticano II distingue entre a indefectível fidelidade da Igreja e as fraquezas dos seus membros, clérigos ou leigos, ontem como hoje (GS 43 §6), e, portanto, entre ela, Esposa de Cristo "sem mancha nem ruga […] santa e imaculada" (cf. Ef 5,27), e os seus filhos, pecadores redimidos, chamados à permanente metanoia, à renovação no Espírito Santo. "A Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação" (LG 8).(7)
O Concílio elaborou, ainda, alguns critérios de discernimento relativamente à culpabilidade ou à responsabilidade dos vivos pelos erros passados. De facto, mencionou, em dois contextos diferentes, a não imputabilidade aos contemporâneos dos erros cometidos no passado por membros da sua comunidade religiosa:
- "Tudo quanto foi perpretado na paixão (de Cristo), não pode ser imputado indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo." (NA 4)
- "Comunidades não pequenas separaram-se da plena comunhão da Igreja católica, algumas não sem culpa dos homens de um e outro lado. Aqueles, porém, que agora nascem em tais comunidades e são instruídos na fé de Cristo, não podem ser acusados do pecado da separação, e a Igreja católica abraça-os com fraterna reverência e amor." (UR 3)
Ao primeiro Ano Santo celebrado depois do Concílio, em 1975, Paulo VI deu como tema "renovação e reconciliação",(8) precisando, na exortação apostólica Paterna cum benevolentia, que a reconciliação deveria, antes de mais, realizar-se entre os fiéis da Igreja católica.(9) Tal como, nas suas origens, o Ano Santo permanecia ocasião de conversão e reconciliação dos pecadores com Deus mediante a economia sacramental da Igreja.
1.3. Os pedidos de perdão de João Paulo II
João Paulo II não apenas renova o pesar pelas "dolorosas memórias" que marcam a história das divisões entre cristãos, como haviam feito Paulo VI e o concílio Vaticano II,(10) mas estende também o pedido de perdão a uma multitude de factos históricos nos quais a Igreja enquanto instituição ou grupos particulares de cristãos estiveram implicados a diferentes títulos.(11) Na carta apostólica Tertio millenio adveniente (cf. TMA 33-36), o Papa alegra-se que o Jubileu do Ano 2000 seja ocasião para uma purificação da memória da Igreja de "todas as formas de contratestemunho e de escândalo" que aconteceram ao longo do milénio passado (cf. TMA 33).
A Igreja é convidada a "assumir com maior consciência o peso do pecado dos seus filhos". Ela "reconhece sempre como próprios os filhos pecadores" e incita-os a "purificarem-se, pelo arrependimento, de erros, infidelidades, incoerências, retardamentos" (TMA 33). A responsabilidade dos cristãos nos males do nosso tempo é, de igual modo, evocada (cf. TMA 36), embora o acento seja colocado particularmente na solidariedade da Igreja de hoje com os erros passados, alguns dos quais são explicitamente mencionados, como a divisão entre os cristãos (cf. TMA 34), ou "os métodos de violência e intolerância" utilizados no passado para evangelizar (cf. TMA 35).
O próprio João Paulo II estimula o aprofundamento teológico acerca do peso dos erros do passado e sobre o eventual pedido de perdão aos contemporâneos(12) quando, na exortação Reconciliatio et paenitentia, afirma que no sacramento da penitência "o pecador se encontra só perante Deus com a sua culpa, o seu arrependimento e a sua confiança. Ninguém se pode arrepender em seu lugar ou pedir perdão em seu nome" (n. 31). O pecado é, pois, sempre pessoal, mesmo se fere toda a Igreja que, representada pelo sacerdote ministro da penitência, é mediadora sacramental da graça que reconcilia com Deus. Também as situações de "pecado social" - que se verificam no interior das comunidades humanas quando a justiça, a liberdade e a paz são lesadas - "são sempre fruto, acumulação e concentração de pecados pessoais". No momento em que a responsabilidade moral se diluísse em causas anónimas, não se poderia falar de pecado social senão por analogia (cf. RP 16). Daí resulta que a imputabilidade de uma culpa não possa ser estendida para lá do grupo de pessoas que nela consentiram voluntariamente, mediante acções ou omissões, ou por negligência.
1.4. Questões que se colocam
A Igreja é uma sociedade viva que atravessa os séculos. A sua memória não é apenas constituída pela tradição que remonta aos Apóstolos, normativa para a sua fé e a sua própria vida, mas é também rica na variedade de experiências históricas, positivas ou negativas, que ela viveu. O passado da Igreja estrutura em larga medida o seu presente. A tradição doutrinal, litúrgica, canónica, ascética alimenta a vida própria da comunidade crente, oferecendo-lhe um incomparável mostruário de modelos a imitar. Ao longo de toda a peregrinação terrena, no entanto, o grão bom permanece sempre misturado com o joio, a santidade está lado a lado com a infidelidade e o pecado (cf. Mt 13,24-30.36-43).(13) E é assim que a recordação dos escândalos do passado pode criar obstáculos ao testemunho da Igreja de hoje, e o reconhecimento dos erros cometidos pelos filhos da Igreja de ontem pode favorecer a renovação e reconciliação no presente.
A dificuldade que se apresenta é a de definir os erros passados, devido, antes de mais, ao juízo histórico que isso exige, porque naquilo que aconteceu é sempre distinta a responsabilidade ou a culpa que se pode atribuir aos membros da Igreja enquanto crentes, daquilo que é relativo à sociedade dos séculos chamados "de cristandade" ou às estruturas de poder nas quais o temporal e o espiritual estavam então intimamente entrelaçados. Uma hermenêutica histórica é, portanto, tanto mais necessária para fazer uma adequada distinção entre a acção da Igreja enquanto comunidade de fé e a da sociedade, nas épocas de osmose entre ambas.
Os passos dados por João Paulo II para pedir perdão pelos erros do passado foram entendidos em inúmeros ambientes, eclesiais e não, como sinais de vitalidade e autenticidade da Igreja, assim como para reforçar a sua credibilidade. É justo, aliás, que a Igreja contribua para modificar imagens de si falsas e inaceitáveis, particularmente em domínios em que, por ignorância ou má-fé, alguns sectores de opinião se comprazem em identificá-la com o obscurantismo ou a intolerância. Os pedidos de perdão formulados pelo Papa também suscitaram um estímulo positivo no âmbito eclesial e para lá dele. Chefes de Estado ou de governo, sociedades privadas e públicas, comunidades religiosas pedem actualmente perdão por episódios ou períodos históricos assinalados por injustiças. Esta prática é tudo menos retórica, tanto que alguns hesitam em dar-lhe acolhimento, calculando os custos consequentes - entre outros no plano judicial - a um reconhecimento de solidariedade com erros passados. Também deste ponto de vista, é urgente, pois, um rigoroso discernimento.
Não faltam, todavia, fiéis desconcertados, porquanto a sua fidelidade à Igreja parece ficar abalada. Alguns interrogam-se como transmitir o amor da Igreja às jovens gerações se essa mesma Igreja é acusada de crimes e pecados. Outros observam que o reconhecimento dos erros é no mais das vezes unilateral e é explorado pelos detractores da Igreja, satisfeitos por a verem confirmar preconceitos que têm a seu respeito. Outros, ainda, chamam a atenção para o perigo de se culpabilizarem arbitrariamente as actuais gerações de crentes por faltas a que não deram a sua anuência de modo nenhum, embora se declarem prontos a assumir a sua responsabilidade na medida em que grupos humanos se sintam ainda hoje tocados pelas consequências de injustiças cometidas pelos seus predecessores noutros tempos. Alguns, também, julgam que a Igreja poderá purificar a sua memória a respeito dos actos ambíguos nos quais esteve implicada no passado, simplesmente tomando parte no trabalho crítico sobre a memória desenvolvido na nossa sociedade. Desse modo, ela poderia afirmar que partilha com os seus contemporâneos a recusa daquilo que a consciência moral actual reprova, sem se propor como única culpada e responsável dos males do passado, e procurando, ao mesmo tempo, o diálogo no recíproco entendimento com quantos se sintam ainda hoje feridos por actos passados imputáveis aos filhos da Igreja. Por fim, deve esperar-se que alguns grupos possam reclamar um pedido de perdão nos seus confrontos, ou por analogia com outros ou porque julgam ter sofrido injustiças. Em todo o caso, a purificação da memória não poderá de modo algum significar que a Igreja renuncie a proclamar a verdade revelada que lhe foi confiada, quer no campo da fé quer no da moral.
Apresentam-se, assim, diversas interrogações: pode-se investir a consciência actual de uma "culpa" associada a fenómenos históricos irrepetíveis, como as cruzadas ou a inquisição? Não é mesmo demasiado fácil julgar os protagonistas do passado com a consciência actual (como faziam os escribas e fariseus, segundo Mt 23,29-32), como se a consciência moral não estivesse situada no tempo? E, por outro lado, pode porventura negar-se que o juízo ético está sempre em jogo, pelo simples facto de que a verdade de Deus e suas exigências morais têm valor permanente? Qualquer que seja a atitude a adoptar, ela deverá ter em conta estas questões, e procurar respostas que sejam fundadas na revelação e na sua transmissão viva na fé da Igreja. A questão prioritária é, assim, a de esclarecer em que medida os pedidos de perdão pelos erros do passado, sobretudo se dirigidos a grupos humanos de hoje, se situam no horizonte bíblico e teológico da reconciliação com Deus e com o próximo.
2. ASPECTOS BÍBLICOS
É possível desenvolver de vários modos uma pesquisa sobre o reconhecimento que Israel faz das suas faltas no Antigo Testamento e acerca do tema da confissão das culpas tal como se apresenta nas tradições do Novo Testamento.(14) A natureza teológica da reflexão aqui conduzida leva a privilegiar uma aproximação de género prevalentemente temático, partindo da seguinte questão: que penhor oferece o testemunho da Sagrada Escritura ao convite que João Paulo II faz à Igreja para confessar os erros do passado?
2.1. Antigo Testamento
Confissões de pecados associadas a pedidos de perdão encontram-se em toda a Bíblia, tanto nas narrativas do Antigo Testamento, como nos Salmos, nos Profetas e nos Evangelhos, assim como - mais esporadicamente - na literatura sapiencial e nas cartas do Novo Testamento. Dada a abundância e difusão destes testemunhos, coloca-se a questão de saber como seleccionar e catalogar um conjunto de textos significativos. Pode-se interrogar a esse respeito os textos bíblicos relativos à confissão dos pecados: quem confessa o quê (e que tipo de erro) a quem? Colocar deste modo a questão ajuda a distinguir duas categorias principais de "textos de confissão", cada um dos quais compreendendo diversas subcategorias: a) textos de confissão de pecados individuais e b) textos de confissão de pecados de todo o povo (e dos seus antepassados). Em relação à recente prática eclesial que determina a nossa pesquisa é conveniente restringir a análise à segunda categoria.
Nela podem-se identificar diversas possibilidades, conforme quem faz a confissão dos pecados do povo e quem é associado pelo menos à culpa colectiva, prescindindo da presença da consciência de uma responsabilidade pessoal (amadurecida apenas progressivamente: cf. Ez 14,12-23; 18,1-32; 33,10-20). Na base destes critérios podem distinguir-se os seguintes casos, aliás com uma certa fluidez:
- Uma primeira série de textos representa o povo inteiro (por vezes personificado num simples "Eu") que, num particular momento da sua história, confessa ou alude aos seus pecados contra Deus sem qualquer referência (explícita) aos erros das gerações precedentes.(15)
- Um outro grupo de textos coloca a confissão - dirigida a Deus - dos pecados actuais do povo nos lábios de um ou mais chefes (religiosos) que possam pelo menos ser incluídos explicitamente no povo pecador para quem pregam.(16)
- Um terceiro grupo de textos apresenta o povo ou um dos seus chefes no acto de evocar os pecados dos antepassados, sem contudo mencionar os da geração presente.(17)
- Mais frequentemente, as confissões que mencionam os erros dos antepassados associam-nos expressamente aos pecados da geração presente.(18)
Dos testemunhos recolhidos resulta que, em todos os casos em que são mencionados os "pecados dos pais", a confissão é unicamente dirigida a Deus e os pecados confessados pelo povo ou ao povo são os cometidos directamente contra Ele, mais do que os cometidos (também) contra outros seres humanos (só em Nm 21,7 se faz referência a alguém humano lesado, Moisés).(19) Surge a questão por que razão os escritores bíblicos não sentiram necessidade de pedidos de perdão dirigidos a interlocutores presentes a respeito de erros cometidos pelos pais, apesar do seu forte sentido de solidariedade entre gerações no bem e no mal (pense-se na noção de "personalidade corporativa"). Poder-se-iam avançar várias hipóteses em resposta a esta questão. Há, antes de mais, o difuso teocentrismo da Bíblia, que dá a precedência ao reconhecimento quer individual quer nacional dos pecados cometidos contra Deus. Demais, actos de violência perpretados por Israel contra outros povos, que pareceriam exigir um pedido de perdão àqueles mesmos povos ou aos seus descendentes, são entendidos como execução de directivas divinas a respeito deles, como p. ex. Js 2-11 e Dt 7,2 (o extermínio dos cananeus), ou 1Sam 15 e Dt 25,19 (a destruição dos amalecitas). Em tais casos, o mandato divino implicado parece excluir qualquer possibilidade de pedido de perdão a fazer.(20) As experiências de maus tratos sofridas por Israel, por parte de outros povos, e a animosidade assim suscitada poderiam também ter militado contra a ideia de pedir perdão a esses povos pelos males por eles trazidos.(21)
De qualquer modo, permanece relevante, no testemunho bíblico, o sentido da solidariedade intergeracional no pecado (e na graça), que se exprime na confissão diante Deus dos "pecados dos antepassados", tanto que João Paulo II pôde afirmar, citando a extraordinária oração de Azarias: " 'Bendito e louvado sejas, Senhor, Deus dos nossos pais […] pecámos, prevaricámos, afastámo-nos de Ti; em tudo temos procedido mal; e não observámos os teus mandamentos. (Dn 3,26.29).' Assim rezavam os hebreus depois do exílio (cf. também Bar 2,11-13), carregando o peso dos erros cometidos por seus pais. A Igreja imita o seu exemplo e pede perdão pelos pecados igualmente históricos de seus filhos."(22)
2.2. Novo Testamento
Um tema fundamental, relacionado com a ideia de culpa e largamente presente no Novo Testamento, é a da absoluta santidade de Deus. O Deus de Jesus é o Deus de Israel (cf. Jo 4,22), invocado como "Pai santo" (Jo 17,11), chamado "o Santo" em 1Jo 2,20 (cf. Ap 6,10). A tripla proclamação de Deus como "santo" de Is 6,3 regressa em Ap 4,8, enquanto 1Pd 1,16 insiste no facto de que os cristãos devem ser santos "pois está escrito: Sede santos, porque Eu sou santo' " (cf. Lv 11,44-45; 19,2). Tudo isto reflecte a noção veterotestamentária da absoluta santidade de Deus. Contudo, para a fé cristã, a santidade divina entrou na história na pessoa de Jesus de Nazaré: a noção veterotestamentária não foi abandonada, mas é desenvolvida no sentido de que a santidade de Deus se torna presente na santidade do Filho incarnado (cf. Mc 1,24; Lc 1,35; 4,34; Jo 6,69; Act 3,14; 4,27.30; Ap 3,7); e a santidade do Filho é dada a participar aos "seus" (cf. Jo 17,16-19), tornados filhos no Filho (cf. Gl 4,4-6; Rm 8,14-17). Não pode, porém, haver qualquer aspiração à filiação divina em Jesus enquanto não houver amor ao próximo (cf. Mc 12,29-31; Mt 22,37-38; Lc 10,27-28).
Este motivo, decisivo no ensinamento de Jesus, torna-se o "mandamento novo" no Evangelho de João: os discípulos deverão amar como Ele amou (cf. Jo 13,34-35; 15,12.17), isto é, perfeitamente, "até ao fim" (Jo 13,1). O cristão é chamado a amar e a perdoar segundo uma medida que transcende toda a medida humana de justiça, e produz uma reciprocidade entre os seres humanos, que reflecte a que existe entre Jesus e o Pai (cf. Jo 13,34s; 15.1-11; 17,21-26). Nesta perspectiva, é dado grande relevo ao tema da reconciliação e do perdão das ofensas. Aos seus discípulos, Jesus pede que estejam sempre prontos a perdoar quantos os ofenderam, assim como o próprio Deus oferece sempre o Seu perdão: "Perdoa-nos as nossas ofensas, como nós perdoamos aos que nos ofenderam." (Mt 6,12.15) Quem está em posição de perdoar ao próximo mostra ter compreendido a necessidade que pessoalmente tem do perdão de Deus. O discípulo é convidado a perdoar "até setenta vezes sete" quem o ofende, mesmo que este não tenha pedido perdão (cf. Mt 18, 21-22).
Jesus insiste na atitude exigida à pessoa ofendida nos confrontos com os seus ofensores: ela é chamada a dar o primeiro passo, anulando a ofensa mediante o perdão oferecido "de coração" (cf. Mt 18,35; Mc 11,25), consciente de ser ela mesma pecadora diante de Deus que nunca recusa o perdão pedido com sinceridade. Em Mt 5, 23-24, Jesus pede ao ofensor que vá "reconciliar-se com o irmão que tenha alguma coisa contra ele" antes de apresentar a sua oferta sobre o altar: não agrada a Deus o acto de culto de quem não queira primeiro reparar o dano causado ao próprio próximo. Aquilo que conta é transformar o próprio coração e mostrar de modo adequado que se quer realmente a reconciliação. De qualquer modo, o pecador, na consciência de que os seus pecados ferem ao mesmo tempo a sua relação com Deus e com o seu próximo (cf. Lc 15,21), pode esperar apenas o perdão de Deus, porque só Deus é sempre misericordioso e pronto a apagar os pecados. É este também o significado do sacrifício de Cristo que, de uma vez por todas, nos purificou dos nossos pecados (cf. Hb 9,22; 10,18). Desta maneira, o ofensor e o ofendido são reconciliados por Deus na Sua misericórdia que a todos acolhe e perdoa.
Neste quadro, que poderia ser ampliado mediante a análise das cartas de Paulo e das epístolas católicas, não há qualquer indício de que a Igreja das origens tenha voltado a sua atenção para os pecados passados para pedir perdão. Isso pode ser explicado pela forte consciência da novidade cristã, que projecta a comunidade mais para o futuro que para o passado. Encontra-se, contudo, uma mais ampla e subtil insistência que domina o Novo Testamento: nos Evangelhos e nas cartas, a ambivalência própria da esperança cristã é amplamente reconhecida. Para Paulo, p. ex., a comunidade cristã é um povo escatológico que vive já a "nova criação" (cf. 2Co 5,17; Gl 6.15), mas esta experiência, tornada possível pela morte e ressurreição de Jesus (cf. Rm 3,21-26; 5,6-11; 8,1-11; 1Co 15,54-57), não nos liberta da inclinação para o pecado, presente no mundo por causa da queda de Adão. Como resultado da intervenção de Deus nela, e através da morte e ressurreição de Jesus, são agora dois os cenários possíveis: a história de Adão e a de Cristo. Elas decorrem lado a lado, e o crente deve contar com a morte e ressurreição do Senhor Jesus (cf., p. ex., Rm 6,1-11; Gl 3,27-28; Cl 3,10; 2Co 5,14-15) para ser parte da história em que "superabunda a graça" (cf. Rm 5,12-21).
Uma semelhante releitura teológica do acontecimento pascal de Cristo mostra como a Igreja nascente tinha uma aguda consciência das possíveis faltas dos baptizados. Poder-se-ia dizer que o inteiro corpus paulinum chama os crentes a um reconhecimento pleno da sua dignidade, mas na viva consciência da fragilidade da sua condição humana: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão." (Gl 5,1) Um motivo análogo pode encontrar-se nas narrativas dos Evangelhos. Emerge incisivamente em Marcos, onde as faltas dos discípulos de Jesus são um dos temas dominantes da narrativa (cf. Mc 4,40-41; 6,36-37, 51-52; 8,14-21, 31-33; 9,5-6, 32-41; 10,32-45; 14,10-11, 17-21, 27-31, 50; 16,8).
Não há, todavia, nenhum explícito chamamento endereçado aos primeiros cristãos para confessarem os erros do passado, embora seja sem dúvida muito significativo o reconhecimento da realidade do pecado e do mal também entre o povo chamado à existência escatológica própria da condição cristã (pense-se apenas nas repreensões contidas nas cartas às sete Igrejas do Apocalipse). Segundo a petição que se encontra na oração do Senhor, este povo invoca: "Perdoa-nos os nossos pecados, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam." (Lc 11,4; cf. Mt 6,12) Em suma, os primeiros cristãos mostram estar bem conscientes de poder agir de maneira que não corresponda à vocação recebida, não vivendo o baptismo da morte e ressurreição de Jesus em que foram baptizados.
2.3. Jubileu bíblico
Um significativo antecedente bíblico da reconciliação ligada à superação de situações passadas é representado pela celebração do Jubileu, tal como está regulada no livro do Levítico (cap. 25). Numa estrutura social composta por tribos, clãs e famílias, inevitavelmente se criavam situações de desordem quando indivíduos ou famílias em condições difíceis tinham de "resgatar-se" a si mesmas das próprias dificuldades, entregando a posse das terras ou casa, ou de servos ou filhos, àqueles que se encontravam em melhores condições que as suas. Semelhante sistema tinha como efeito que alguns israelitas acabavam por sofrer intoleráveis situações de dívidas, pobreza e escravidão, naquela mesma terra que lhes havia sido dada por Deus, em proveito de outros filhos de Israel. Tudo isto podia levar a que, por períodos mais ou menos longos de tempo, um território ou um clã caísse nas mãos de poucos ricos, enquanto o resto das famílias do clã acabava por se encontrar numa dada forma de dívida ou de servidão, como a de viver em total dependência dos mais abastados.
A legislação de Lv 25 constitui uma tentativa de inverter tudo isto (de tal modo que se pode duvidar que alguma vez tenha sido plenamente posta em prática!). Convocava a celebração do Jubileu, de 50 em 50 anos, a fim de preservar o tecido social do povo de Deus e restituir a independência mesmo à mais pequena família do país. É decisiva para Lv 25 a regular repetição da confissão de fé de Israel no Deus que libertou o Seu povo mediante o Êxodo: "Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos fez sair da terra do Egipto, para vos dar a de Canaã, a fim de ser o vosso Deus." (Lv 25,38; cf. vv. 42, 45) A celebração do Jubileu era uma implícita admissão de culpa e uma tentativa de restabelecer uma ordem justa. Todo o sistema que alienasse um qualquer israelita, outrora escravo mas agora libertado pelo braço poderoso de Deus, vinha de facto desmentir a acção salvífica divina no Êxodo e através dele.
A libertação das vítimas e dos que sofrem torna-se parte do mais amplo programa dos profetas. O Dêutero-Isaías, nos Cânticos do Servo sofredor (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12), desenvolve estas alusões à prática do Jubileu com os temas do resgate e da liberdade, do regresso e da redenção. Is 58 é um ataque contra a observância ritual que não olhe à justiça social, é uma exigência de libertação dos oprimidos (Is 58,6), centrada especificamente nas obrigações de parentesco (v. 7). Mais claramente, Is 61 utiliza as imagens do Jubileu para fazer o retrato do Ungido como arauto de Deus enviado para "evangelizar" os pobres, proclamar a liberdade aos prisioneiros e anunciar o ano da graça do Senhor. De modo significativo, é justamente este texto, com uma alusão a Is 58,6, que Jesus usa para apresentar a missão da sua vida e do seu ministério em Lc 4,17-21.
Conclusão
Do que foi dito, pode-se concluir que o apelo dirigido por João Paulo II à Igreja para que marque o ano jubilar com uma admissão de culpa por todos os sofrimentos e ofensas pelos quais os seus filhos foram responsáveis no passado (cf. TMA 33-36), assim como a prática a ela associada, não tem uma correspondência unívoca no testemunho bíblico. Contudo, ele está fundado em quanto a Sagrada Escritura afirma a respeito da santidade de Deus, da solidariedade intergeracional do Seu povo e do reconhecimento do seu ser pecador. O apelo do Papa, além disso, apreende correctamente o espírito do Jubileu bíblico, que pede sejam cumpridos actos com vista a restabelecer a ordem do originário desígnio de Deus sobre a criação. Isso exige que a proclamação do "hoje" do Jubileu, iniciada por Jesus (cf. Lc 4,21), seja prosseguida na celebração jubilar da Sua Igreja. Esta singular experiência de graça, além do mais, leva o inteiro povo de Deus, como cada um dos baptizados, a tomar ainda maior consciência do mandato recebido do Senhor, de estarmos sempre prontos a perdoar as ofensas recebidas.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEOLÓGICA
"Assim, quando o segundo milénio já se encaminha para o seu termo, é justo que a Igreja assuma com maior consciência o peso do pecado dos seus filhos, recordando todas aquelas circunstâncias em que, no arco da história, eles se afastaram do espírito de Cristo e do seu Evangelho, oferecendo ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé, o espectáculo de modos de pensar e agir que eram verdadeiras formas de antitestemunho e de escândalo. Embora sendo santa pela sua incorporação em Cristo, a Igreja não se cansa de fazer penitência: ela reconhece sempre como próprios, diante de Deus e dos homens, os filhos pecadores." (TMA 33) Estas palavras de João Paulo II sublinham como a Igreja é tocada pelo pecado dos seus filhos: santa, enquanto tornada tal pelo Pai mediante o sacrifício do Filho e o dom do Espírito, ela é de certo modo também pecadora, porquanto assume realmente em si o pecado daqueles que ela própria gerou no baptismo, tal como Jesus Cristo assumiu o pecado do mundo (cf. Rm 8,3; 2Co 5,21; Gl 3,13; 1Pd 2,24).(23) Pertence, aliás, à mais profunda autoconsciência eclesial existindo no tempo, a convicção de que a Igreja não é só uma comunidade de eleitos mas tem no seu seio os justos e os pecadores do presente, assim como os do passado, na unidade do mistério que a constitui. De facto, na graça como na ferida do pecado, os baptizados de hoje estão próximos e solidários dos de ontem. Por isso se pode dizer que a Igreja - una no tempo e no espaço em Cristo e no Espírito - é verdadeiramente "santa e simultaneamente sempre necessitada de purificação" (LG 8). Deste paradoxo - característico do mistério eclesial - nasce a interrogação sobre como se conciliam os dois aspectos: por um lado, a afirmação de fé na santidade da Igreja e, por outro, a sua contínua necessidade de penitência e purificação.
3.1. Mistério da Igreja
"A Igreja está na história mas, ao mesmo tempo, transcende-a. Apenas 'com os olhos da fé' se pode divisar na sua realidade visível uma realidade contemporaneamente espiritual, portadora da vida divina." (CIC 770) O conjunto dos aspectos visíveis e históricos relaciona-se com o dom divino, do mesmo modo que no Verbo de Deus incarnado a humanidade assumida é sinal e instrumento do agir da Pessoa divina do Filho: as duas dimensões do ser eclesial formam "uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino" (LG 8), numa comunhão que participa da vida trinitária e faz com que os baptizados se sintam unidos entre si, mesmo na diversidade dos tempos e dos lugares da história. Por força desta comunhão, a Igreja apresenta-se como sujeito absolutamente único do acontecimento humano, de modo a poder assumir os dons, os méritos e as culpas dos seus filhos actuais como dos de ontem.
A não fraca analogia com o mistério do Verbo incarnado implica, todavia, também uma fundamental diferença: "Enquanto Cristo, 'santo, inocente, imaculado' (Hb 7,26), não conheceu o pecado (cf. 2Co 5,21) mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Hb 2,17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação." (LG 8; cf. UR 3 e 6) A ausência de pecado no Verbo incarnado não pode ser atribuída ao Seu Corpo eclesial, no interior do qual, ao contrário, cada um - partícipe da graça dada por Deus - nem por isso deixa de ter necessidade de vigilância e incessante purificação e de estar solidário com a fraqueza dos outros: "Todos os membros da Igreja, incluindo os seus ministros, devem reconhecer-se pecadores (cf. 1Jo 1,8-10). Em todos, até ao fim dos tempos, a cizânia do pecado se encontra ainda misturada com o grão bom do Evangelho (cf. Mt 13,24-30). A Igreja reúne, portanto, pecadores atingidos pela salvação de Cristo, mas sempre em vias de santificação."(CIC 827)
Já Paulo VI havia solenemente afirmado que "a Igreja é santa, embora incluindo no seu seio pecadores, já que ela não possui outra vida senão a da graça […] Por isso, a Igreja sofre e faz penitência por tais pecados, dos quais, aliás, ela tem o poder de curar os seus filhos com o sangue de Cristo e o dom do Espírito Santo".(24) A Igreja é, em suma, no seu "mistério", encontro de santidade e de fraqueza, continuamente redimida e sempre de novo necessitada da força da redenção. Como ensina a liturgia, verdadeira lex credendi, o fiel particular e o povo dos santos rogam a Deus que o Seu olhar se dirija à fé da Sua Igreja e não aos pecados dos indivíduos que são a negação desta fé vivida: Ne respicias peccata nostra, sed fidem Ecclesiae Tuae! Na unidade do mistério eclesial através do tempo e do espaço, é possível agora considerar o aspecto da santidade, a necessidade de arrependimento e reforma, e a sua articulação no agir da Igreja Mãe.
3.2. Santidade da Igreja
A Igreja é santa porque, santificada por Cristo que a obteve entregando-se à morte por ela, é mantida na santidade pelo Espírito Santo que a penetra incessantemente: "Nós cremos que a Igreja é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito 'o único Santo', amou a Igreja como esposa, entregou-se por ela, para a santificar (cf. Hb 5,25-26), e uniu-a a si como seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de Deus. Por isso, todos na Igreja são chamados à santidade." (LG 39) Neste sentido, desde as origens os membros da Igreja são chamados os "santos" (cf. Act 9,13; 1Co 6,1s; 16,1). Pode-se distinguir, contudo, a santidade da Igreja da santidade na Igreja. A primeira - fundada na missão do Filho e do Espírito - garante a continuidade da missão do povo de Deus até ao fim dos tempos e estimula e ajuda os crentes a perseguir a santidade subjectiva e pessoal. Na vocação que cada um recebe está, ao invés, radicada a forma de santidade que lhe foi dada e que dele se exige, enquanto pleno cumprimento da própria vocação e missão. A santidade pessoal é em todo o caso projectada para Deus e para os outros e, por isso, tem um carácter essencialmente social: é santidade "na Igreja", orientada ao bem de todos.
À santidade da Igreja deve, assim, corresponder a santidade na Igreja: "Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Baptismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que com o auxílio divino conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade recebida." (LG 40) O baptizado é chamado a tornar-se, em toda a sua existência, aquele em que se transformou por força da consagração baptismal: e isso não acontece sem o assentimento da sua liberdade e a ajuda da Graça que vem de Deus. Quando isso acontece, a humanidade nova segundo Deus deixa-se reconhecer na história: ninguém se torna tão plenamente ele mesmo quanto o santo que acolhe o plano divino e, com a ajuda da graça, conforma todo o seu próprio ser ao projecto do Altíssimo! Neste sentido, os santos como luzes suscitadas pelo Senhor no meio da sua Igreja para a iluminar, são profecia para o mundo inteiro.
3.3. Necessidade de contínua renovação
Sem ofuscar esta santidade, deve reconhecer-se que, devido à presença do pecado, existe a necessidade de contínua renovação e constante conversão no povo de Deus: a Igreja na terra está "aureolada de uma santidade verdadeira" embora "imperfeita" (LG 48). Observa St. Agostinho contra os pelagianos: "A Igreja no seu conjunto afirma: Perdoai-nos os nossos pecados! Ela, portanto, tem manchas e rugas. Mas, mediante a confissão as rugas são removidas, mediante a confissão as manchas são lavadas. A Igreja está em oração para ser purificada pela confissão, e enquanto os homens viverem na terra isto será assim."(25) E S. Tomás de Aquino precisa que a plenitude da santidade pertence ao tempo escatológico, enquanto a Igreja peregrinante não se deve enganar a si mesma afirmando ser sem pecado: "Que a Igreja seja gloriosa, sem mácula nem ruga, é o objectivo final para o qual tendemos em virtude da paixão de Cristo. Isto apenas existirá, no entanto, na pátria eterna, e não já na peregrinação; aqui […] enganar-nos-íamos se disséssemos não ter qualquer pecado."(26) De facto, "embora revestidos da veste baptismal, não cessamos de pecar, de nos afastarmos de Deus. Ora, com o pedido 'perdoai-nos os nossos pecados', regressamos a Ele, como o filho pródigo (cf. Lc 15,11-32), e reconhecemo-nos pecadores diante d'Ele, como o publicano (cf. Lc 18,13). O nosso pedido inicia-se com a nossa 'confissão', com a qual confessamos a um tempo a nossa miséria e a Sua misericórdia" (CIC 2839).
Por isso, é a Igreja inteira que, mediante a confissão dos pecados dos seus filhos, confessa a sua fé em Deus e celebra a sua infinita bondade e capacidade de perdão: graças ao vínculo estabelecido pelo Espírito Santo, a comunhão que existe entre todos os baptizados no tempo e no espaço é tal, que nela cada um é ele mesmo, mas ao mesmo tempo está condicionado pelos outros e exerce neles uma influência no intercâmbio vital dos bens espirituais. Deste modo, a santidade de uns influencia o crescimento no bem de outros, mas também o pecado deixa de ter apenas relevância exclusivamente individual, pois pesa e opõe resistência ao caminho da salvação de todos e, nesse sentido, toca verdadeiramente a Igreja na sua totalidade, por meio da variedade dos tempos e dos lugares. Esta convicção leva os Padres da Igreja a afirmações claras como esta de St. Ambrósio: "Estamos bem atentos a que a nossa queda não se torne uma ferida da Igreja."(27) Esta, sendo santa pela sua incorporação em Cristo, não se cansa de fazer penitência; e reconhece sempre como seus, perante Deus e os homens, os filhos pecadores" (TMA 33), os de hoje e os de ontem.
3.4. Maternidade da Igreja
A certeza de que a Igreja pode carregar o peso do pecado dos seus filhos por força da solidariedade existente entre eles no tempo e no espaço, graças à sua incorporação em Cristo e à obra do Espírito Santo, é expressa de modo particularmente eficaz pela ideia de "Igreja Mãe" (Mater ecclesia), que "na concepção protopatrística é o conceito central de todo o anseio cristão":(28) a Igreja - afirma o Vaticano II -, "pela fiel recepção da Palavra de Deus, torna-se ela própria mãe pois que pela pregação e o baptismo gera, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus" (LG 64). À vastíssima tradição de que estas ideias são eco, dá voz, p. ex., St. Agostinho com as seguintes palavras: "Esta mãe santa digna de veneração, a Igreja, é igual a Maria: ela dá à luz e é virgem, dela vós nascestes e ela gera Cristo, pois vós sois os membros de Cristo."(29) S. Cipriano de Cartago afirma claramente: "Não pode ter Deus por pai quem não tem a Igreja como mãe."(30) E Paulino de Nola canta, deste modo, a maternidade da Igreja: "Como mãe recebe a semente da Palavra eterna, traz os povos no seio e dá-os à luz."(31)
Segundo esta perspectiva, a Igreja realiza-se continuamente no intercâmbio e na comunicação do Espírito, dos crentes uns aos outros, como ambiente gerador de fé e santidade na comunhão fraterna, na unanimidade orante, na participação solidária da Cruz, no testemunho comum. Por força desta comunicação vital cada baptizado pode ser considerado, ao mesmo tempo, filho da Igreja, enquanto gerado nela para a vida divina, e Igreja Mãe, enquanto coopera com a sua fé e caridade a gerar novos filhos para Deus: é tanto mais Igreja Mãe quanto maior for a sua santidade, e mais ardente o esforço de comunicar aos outros o dom recebido. Por outro lado, não deixa de ser filho da Igreja o baptizado que, devido ao pecado, se separe dela pelo coração; ele poderá sempre de novo aceder às fontes da graça e remover o peso que a sua culpa faz carregar à inteira comunidade da Igreja Mãe. Esta, por sua vez, como verdadeira mãe, não poderá deixar de ser ferida pelo pecado dos seus filhos de hoje como dos de ontem, continuando sempre a amá-los, a ponto de carregar, em todos os tempos, o peso produzido pelos seus pecados: enquanto tal, a Igreja aparece ao Pai como Mãe das dores, não só por causa das perseguições de fora, mas sobretudo pelas traições, as quedas, os atrasos e as corrupções dos seus filhos.
A santidade e o pecado na Igreja reflectem-se, assim, nos seus efeitos sobre toda a Igreja, mesmo se é convicção da fé que a santidade é mais forte que o pecado enquanto fruto da graça divina; disso são prova luminosa as figuras dos santos, reconhecidos como modelo e ajuda para todos! Entre a graça e o pecado não existe paralelismo, nem uma espécie de simetria ou de relação dialéctica; a influência do mal não poderá nunca vencer a força da graça e a irradiação do bem, mesmo o mais escondido! Neste sentido, a Igreja reconhece-se existencialmente santa nos seus santos; mas, ao mesmo tempo que se regozija desta santidade e dela sente o benefício, não deixa de se confessar pecadora, não como sujeito do pecado mas enquanto assume com solidariedade materna o peso das culpas dos seus filhos, para cooperar na sua superação pela via da penitência e da novidade de vida. Por isso, a Igreja santa sente o dever "de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus que lhe deturparam o rosto, impedindo-a de reflectir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão" (TMA 35).
Isto pode ser feito de modo particular por quem, pelo seu carisma e ministério, exprima da forma mais densa a comunhão do povo de Deus: em nome das Igrejas locais poderão dar voz a eventuais confissões de culpa e pedidos de perdão os respectivos pastores; em nome de toda a Igreja, una no tempo e no espaço, poderá pronunciar-se aquele que exerce o ministério universal de unidade, o Bispo da Igreja "que preside no amor",(32) o Papa. Eis porque é particularmente significativo que tenha vindo dele próprio o convite a que "a Igreja tome a seu cargo, com a mais viva consciência, o pecado dos seus filhos" e reconheça a necessidade de "emenda, invocando com força o perdão de Cristo" (TMA 34).
4. JUÍZO HISTÓRICO E JUÍZO TEOLÓGICO
A determinação das culpas do passado que devemos reconhecer implica, antes de mais, um correcto juízo histórico que esteja também na base da avaliação teológica. Deve-se perguntar: Que aconteceu realmente? Que foi propriamente dito e feito? Só quando for dada resposta adequada a estas questões, fruto de rigoroso juízo histórico, se poderá também perguntar se o que aconteceu, o que foi afirmado ou feito, pode ser interpretado como estando conforme ou não ao Evangelho e, caso não esteja, se os filhos da Igreja que agiram desse modo, poderiam ter-se dado conta disso a partir do contexto em que agiam. Apenas quando se chega à certeza moral de que quanto foi feito contra o Evangelho por alguns filhos da Igreja e em seu nome, poderia ter sido compreendido por eles como tal e evitado, pode ter significado para a Igreja de hoje reconhecer os erros do passado.
A relação entre "juízo histórico" e "juízo teológico" é, portanto, tão complexa quanto necessária e determinante. Por isso, deve ser posta em prática sem erros de uma e outra parte; é necessário evitar quer uma apologética que queira tudo justificar, quer uma indevida culpabilização fundada na atribuição de responsabilidade historicamente insustentável. João Paulo II, referindo-se à avaliação histórico-teológica da acção da Inquisição, afirmou: "O magistério eclesial não pode certamente propor-se levar a cabo um acto de natureza ética, como é o pedido de perdão, sem primeiro estar rigorosamente informado acerca da situação daquele tempo. Mas também não pode apoiar-se nas imagens do passado veiculadas pela opinião pública, pois estão frequentemente sobrecarregadas de uma emotividade passional que impede a diagnose serena e objectiva […] Por isso, o primeiro passo consiste em interrogar os historiadores, aos quais não é pedido um juízo de natureza ética - que ultrapassaria o âmbito das suas competências -, mas, antes, que ajudem à reconstrução o mais rigorosa possível dos acontecimentos, costumes e mentalidade de então, à luz do contexto histórico da época."(33)
4.1. Interpretação da história
Quais são as condições de uma correcta interpretação do passado, na perspectiva do saber histórico? Para as determinar, deve-se ter presente a complexidade da relação que existe entre o sujeito que interpreta e o passado objecto de interpretação;(34) em primeiro lugar, sublinhe-se o recíproco alheamento entre eles. Acontecimentos ou palavras do passado são, antes de mais, "passados"; como tal não são totalmente redutíveis às actuais instâncias, mas têm uma espessura e complexidade objectivas que impedem que deles se possa dispor de maneira apenas funcional aos interesses do presente. Desse modo, é necessário aproximar-nos deles mediante uma pesquisa histórico-crítica que vise utilizar todas as informações acessíveis, tendo em vista a reconstrução do ambiente, dos modos de pensar, dos condicionamentos e do processo vital em que aqueles acontecimentos e aquelas palavras estão inseridos, para assim verificar os conteúdos e desafios que - justamente na sua diversidade - eles propõem ao nosso presente.
Em segundo lugar, entre quem interpreta e o que é interpretado deve reconhecer-se uma certa pertença comum, sem a qual nenhum laço e nenhuma comunicação poderia subsistir entre passado e presente. Este laço comunicativo funda-se no facto de que todo o ser humano de ontem e de hoje se situa num complexo de relações históricas, e precisa, para o viver, da mediação linguística, sempre historicamente determinada. Todos pertencemos à história! Manifestar a compertença entre o intérprete e o objecto de interpretação - que deve ser alcançado através das múltiplas formas como o passado deixou testemunho (textos, monumentos, tradições, etc.) - significa avaliar a correcção das possíveis correspondências e das eventuais dificuldades de comunicação com o presente, resultantes da própria inteligência das palavras ou dos acontecimentos passados; isso exige ter em conta as interrogações que motivam a investigação, e sua incidência nas respostas obtidas, o contexto vital em que se actua, e a comunidade interpretante cuja linguagem se fala e à qual se pretende falar. Para este fim, é necessário tornar o mais possível reflectida e consciente a pré-compreensão que, de facto, faz sempre parte de toda a interpretação, para medir e temperar a sua real incidência no processo interpretativo.
Por fim, entre quem interpreta e o passado objecto de interpretação dá-se, por um esforço cognoscitivo e de avaliação, uma osmose ("fusão de horizontes"), na qual consiste justamente o acto de compreensão. Nela se exprime aquela que se julga ser a inteligência correcta dos acontecimentos ou das palavras do passado; o que equivale a apreender o significado que podem ter para o intérprete e o seu mundo. Graças a este encontro de mundos vitais, a compreensão do passado traduz-se na sua aplicação ao presente; o passado é tomado na potencialidade que manifesta, no estímulo que oferece para modificar o presente. A memória torna-se capaz de suscitar um novo futuro.
Alcança-se a osmose fecunda com o passado por meio do entrelaçamento de algumas operações hermenêuticas fundamentais, correspondentes aos momentos indicados pelo alheamento, pela compertença e pela verdadeira e recta compreensão. Em relação a um "texto" do passado - entendido em geral como testemunho escrito, oral, monumental ou figurativo -, estas operações podem ser expressas do seguinte modo: "1) Perceber o texto, 2) ajuizar da correcção da própria inteligência do texto e 3) exprimir aquela que se julga ser a inteligência correcta do texto."(35) Compreender o testemunho do passado significa alcançá-lo o mais possível na sua objectividade, mediante todas as fontes de que é possível dispor; ajuizar da correcção da própria interpretação, quer dizer verificar com honestidade e rigor em que medida ela pode ter sido orientada ou de algum modo condicionada pela pré-compreensão e possíveis preconceitos do intérprete; exprimir a interpretação a que se chegou equivale a tornar os outros participantes no diálogo entretecido com o passado, quer para verificar a sua relevância quer para se expor ao confronto com outras eventuais interpretações.
4.2. Investigação histórica e avaliação teológica
Se estas operações estão presentes em todo o acto hermenêutico, elas não podem também faltar na interpretação em que juízo histórico e juízo teológico se venham a integrar. Isso exige, primeiramente, que neste tipo de interpretação se preste a máxima atenção aos elementos de diferenciação e alheamento entre presente e passado. Em particular, quando se pretende ajuizar de possíveis culpas do passado, deve ter-se presente que são diversos os tempos históricos, diversos os tempos sociológicos e culturais do agir eclesial, pelo que paradigmas e juízos próprios de uma sociedade e de uma época poderão ser erroneamente aplicados na avaliação de outras fases da história, gerando não poucos equívocos; diversas são as pessoas, as instituições e as suas respectivas competências; diversas as formas de pensar e diversos os condicionamentos. Deste modo, são precisadas as responsabilidades pelos acontecimentos e pelas palavras ditas, tendo em conta que o facto de um pedido de perdão da Igreja compromete o mesmo sujeito teológico - a Igreja - na multiplicidade de modos e graus em que os indivíduos representam a comunidade eclesial, e na diversidade de situações históricas e geográficas, frequentemente muito diferentes entre si. Toda a generalização deve ser evitada. Todas as eventuais declarações actuais devem ser situadas e devem ser produzidas pelos sujeitos mais propriamente vocacionados para o fazer (Igreja universal, episcopados nacionais, Igrejas particulares, etc.).
Em segundo lugar, a correlação de juízo histórico e juízo teológico deve ter em conta o facto de que, para a interpretação da fé, o laço entre passado e presente não é apenas motivado pelo interesse actual e pela comum pertença de cada ser humano à história e suas mediações expressivas, mas se funda também na acção unificadora do Espírito de Deus e na identidade permanente do princípio constitutivo da comunhão dos crentes, que é a revelação. A Igreja - por força da comunhão nela produzida pelo Espírito de Cristo no tempo e no espaço - não pode deixar de reconhecer-se no seu princípio sobrenatural, presente e operante em todos os tempos, enquanto sujeito de certa forma único, chamado a responder ao dom de Deus em modos e situações diversas através das escolhas dos seus filhos, mesmo com todas as carências que possam tê-las caracterizado. A comunhão no único Espírito Santo funda também diacronicamente uma comunhão dos "santos", por força da qual os baptizados de hoje se sentem unidos aos baptizados de ontem, e, tal como beneficiam dos seus méritos e se alimentam do seu testemunho de santidade, sentem-se também no dever de assumir o eventual peso presente das suas culpas, depois de haver sido feito atento discernimento histórico e teológico.
Devido a este fundamento objectivo e transcendente da comunhão do povo de Deus nas suas múltiplas situações históricas, a interpretação crente reconhece ao passado da Igreja um significado para o presente muito peculiar: o encontro com ele, efectivado no acto da interpretação, pode revelar-se carregado de particulares valências para o presente, rico de uma eficácia "performativa" nem sempre previamente calculável. Naturalmente, a forte unidade do horizonte hermenêutico e do sujeito eclesial interpretante expõe mais facilmente o olhar teológico ao risco de ceder a leituras apologéticas ou instrumentais; é aqui que o exercício hermenêutico dedicado a entender acontecimentos e palavras do passado e a medir a correcção da sua interpretação para o presente é tanto mais necessário. Com esse fim, a leitura crente servir-se-á de todos os possíveis contributos oferecidos pelas ciências históricas e pelos métodos interpretativos. O exercício da hermenêutica histórica não deverá, porém, impedir a avaliação da fé de interpelar os textos segundo a peculiaridade que a caracteriza e, portanto, fazendo interagir presente e passado na consciência da fundamental unidade do sujeito eclesial neles implicado. Isto põe-nos de sobreaviso contra todo o historicismo que relativize o peso das culpas passadas e que considere que a história tudo justifica. Como observa João Paulo II, "um correcto juízo histórico não pode prescindir da atenta consideração dos condicionalismos culturais da época […] Mas a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus." (TMA 35) A Igreja, em suma, "não teme a verdade que emerge da história, e está pronta a reconhecer os erros onde eles se verificaram, sobretudo quando se trata do respeito devido às pessoas e às comunidades. Está disposta a desconfiar das sentenças generalizadas de absolvição ou condenação relativas às várias épocas históricas. Confia a investigação do passado à paciente e honesta reconstrução científica, liberta de preconceitos de tipo confessional ou ideológico, quer no que diz respeito às acusações que lhe são feitas quer às injustiças por ela suportadas."(36) Os exemplos apresentados no capítulo seguinte poderão dar-nos disso uma demonstração concreta.
5. DISCERNIMENTO ÉTICO
Para que a Igreja realize um apropriado exame de consciência histórico na presença de Deus, com vista à própria renovação interior e ao crescimento na graça e na santidade, é necessário que ela saiba reconhecer as "formas de contratestemunho e escândalo" que se apresentam na sua história, em particular durante este milénio. Não é possível cumprir tal tarefa sem estar consciente da sua relevância moral e espiritual. Isso exige a definição de alguns termos chave, além da formulação de algumas precisões necessárias no plano ético.
5.1. Alguns critérios éticos
No plano moral, o pedido de perdão pressupõe sempre uma admissão de responsabilidade, precisamente da responsabilidade relativa a um erro cometido contra outros. A responsabilidade moral normalmente refere-se à relação entre a acção e a pessoa que a realiza; estabelece a pertença de um acto, a sua atribuição a determinada pessoa ou a mais pessoas. A responsabilidade pode ser objectiva ou subjectiva: a primeira refere-se ao valor moral do acto em si mesmo enquanto bom ou mau e, portanto, à imputabilidade da acção; a segunda diz respeito à efectiva percepção por parte da consciência individual da bondade ou malícia do acto realizado. A responsabilidade subjectiva cessa com a morte de quem realizou o acto, isto é, não se transmite por geração; por isso, os descendentes não herdam a responsbilidade (subjectiva) dos actos dos seus antepassados. Neste sentido, pedir perdão pressupõe uma contemporaneidade entre aqueles que são ofendidos por uma acção e aqueles que a realizaram. A única responsabilidade capaz de continuar na história só pode ser a de tipo objectivo, à qual se pode sempre livremente aderir pelo menos subjectivamente. Assim, o mal que foi feito frequentemente sobrevive a quem o praticou, através das consequências dos comportamentos que podem tornar-se um fardo pesado na consciência e memória dos descendentes.
Neste contexto, pode-se falar de uma solidariedade que une o passado e o presente numa relação de reciprocidade. Em determinadas situações, o peso que sobrecarrega a consciência pode ser de tal modo pesado que constitua uma espécie de memória moral e religiosa do mal provocado, que, por sua natureza, é uma memória colectiva. Ela testemunha de modo eloquente a solidariedade existente entre aqueles que fizeram o mal no passado e os seus herdeiros no presente. É então que se torna possível falar de responsabilidade comum objectiva. Do peso de uma tal responsabilidade libertamo-nos, antes de mais, implorando o perdão de Deus pelos erros do passado e, depois, quando for o caso, através da "purificação da memória", culminando no perdão recíproco dos pecados e ofensas no presente.
Purificar a memória significa eliminar da consciência pessoal e colectiva todas as formas de ressentimento ou violência que a herança do passado aí tenha deixado, na base de um novo e rigoroso juízo histórico-teológico que funde um consequente e renovado comportamento moral. Isso acontece todas as vezes que se atribui a actos históricos passados uma diferente qualidade, comportando uma sua nova e diversa incidência no presente com vista ao crescimento da reconciliação, na verdade, na justiça e na caridade entre os seres humanos e, em particular, entre a Igreja e as diversas comunidades religiosas, culturais ou civis com que tem relações. Modelos emblemáticos desta incidência que um posterior juízo interpretativo autorizado pode ter na inteira vida da Igreja, são a recepção dos concílios ou actos como a abolição de recíprocos anátemas, o que exprime uma nova qualificação da história passada de modo a produzir uma diversa caracterização das relações vividas no presente. A memória das divisões e contraposições é purificada e substituída por uma memória reconciliada, a que todos na Igreja são convidados a abrir-se e a adequar-se.
A combinação de juízo histórico e juízo teológico no processo de interpretação do passado salda-se aqui pelas repercussões éticas que pode ter no presente e que implicam alguns princípios, correspondentes, no plano moral à fundação hermenêutica da relação entre juízo histórico e juízo teológico. São os seguintes:
a. O princípio de consciência. A consciência, quer enquanto "juízo moral" quer enquanto "imperativo moral", constitui a avaliação última de um acto em relação à sua bondade ou malícia perante Deus. Com efeito, só Deus conhece o valor moral de cada acto humano, mesmo se a Igreja, como Jesus, pode e deve classificar, julgar e por vezes condenar alguns tipos de acções (cf. Mt 18,15-18).
b. O princípio de historicidade. Justamente na medida em que cada acto humano pertence a quem o pratica, toda a consciência individual e toda a sociedade escolhe e age no interior de um determinado horizonte de tempo e espaço. Para compreender verdadeiramente os actos humanos ou as dinâmicas a eles associadas, devemos, por isso, entrar no mundo daqueles que os realizaram, pois só assim poderemos chegar a conhecer as suas motivações e os seus princípios morais. Esta afirmação é feita sem prejuízo da solidariedade que liga os membros de uma comunidade específica no decurso do tempo.
c. O princípio de mudança de "paradigma". Enquanto antes do Iluminismo existia uma espécie de osmose entre Igreja e Estado, entre fé e cultura, moralidade e lei, a partir do sec. XVIII esta relação foi consideravelmente alterada. O resultado foi a transição de uma sociedade sacral para uma sociedade pluralista ou, como aconteceu em alguns casos, para uma sociedade secular. Os modelos de pensamento e acção, os chamados "paradigmas" de actuação e avaliação mudaram. Semelhante transição tem um impacto directo sobre os juízos morais, mesmo se esta influência não justifica, de modo algum, uma ideia relativista dos princípios morais ou da natureza da própria moralidade.
O inteiro processo de purificação da memória, porém, enquanto exige a correcta combinação de avaliação histórica e olhar teológico, é vivido por parte dos filhos da Igreja não só com o rigor que dê conta precisamente dos critérios e princípios morais, mas também na contínua invocação da assistência do Espírito Santo, para que não se caia no ressentimento ou na autoflagelação mas, ao contrário, se chegue à confissão do Deus cuja "misericórdia se estende de geração em geração" (Lc 1,50), que quer a vida e não a morte, o perdão e não a condenação, o amor e não o temor. Saliente-se aqui o carácter de exemplaridade que a honesta admissão dos erros passados pode exercer sobre a mentalidade na Igreja e na sociedade civil, solicitando um renovado empenho de obediência à Verdade, e de consequente respeito pela dignidade e os direitos dos outros, sobretudo os mais fracos. Neste sentido, os inúmeros pedidos de perdão formulados por João Paulo II constituem um exemplo, que põe em evidência um bem e estimula à imitação, chamando os indivíduos e os povos a um exame de consciência honesto e frutuoso tendo em vista os caminhos da reconciliação.
À luz destes esclarecimentos no plano ético, pode-se agora aprofundar alguns exemplos - entre os mencionados pela carta apostólica Tertio millennio adveniente (cf. 34-36) - de situações nas quais o comportamento dos filhos da Igreja parece ter contrariado, de maneira relevante, o Evangelho de Jesus Cristo.
5.2. A divisão dos cristãos
A unidade é a lei da vida do Deus trinitário, revelada ao mundo por seu Filho (cf. Jo 17,21) que, pelo poder do Espírito Santo, amando até ao fim (Jo 13,1) faz participar esta vida aos seus. Esta unidade deverá ser a fonte e a forma da comunhão de vida da humanidade com o Deus trino. Se os cristãos viverem nesta lei de amor recíproco, para serem um, "assim como o Pai e o Filho são um", daí resultará que o "mundo acreditará que o Filho foi enviado pelo Pai" (Jo 17,21), e "todos saberão que eles são seus discípulos" (Jo 13,35). Infelizmente assim não aconteceu em particular no milénio que chega ao fim, no qual surgiram grandes divisões entre os cristãos, em aberta contradição com a vontade explícita de Cristo, como se Ele próprio estivesse dividido (cf. 1Co 1,13). O concílio Vaticano II ajuíza sobre este facto do seguinte modo: "Esta divisão contradiz abertamente a vontade de Cristo e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura." (UR 1)
As principais cisões que durante este milénio "ferem a túnica inconsútil de Cristo" (UR 13)37 são o cisma entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente no início do milénio e, no Ocidente - quatro séculos depois -, a laceração causada pelos acontecimentos "comummente conhecidos com o nome de Reforma" (UR 13). É verdade que "estas diversas divisões diferem muito entre si, não apenas em razão da origem, lugar e tempo, mas principalmente pela natureza e gravidade das questões relativas à fé e à estrutura da Igreja" (UR 13). No cisma do sec. XI, factores culturais e históricos desempenharam papel importante, ao passo que o aspecto doutrinal dizia respeito à autoridade da Igreja e ao Bispo de Roma, assunto que naquele momento não havia alcançado a clareza com que se apresenta hoje graças ao desenvolvimento doutrinal deste milénio. Com a Reforma, ao contrário, outros domínios da revelação e da doutrina foram objecto de controvérsia.
O caminho aberto para superar estas diferenças é o do diálogo doutrinal, encorajado pelo amor recíproco. Comum a ambas as dilacerações parece ter sido a falta de amor sobrenatural, de ágape. A partir do momento em que esta caridade é o mandamento supremo do Evangelho, sem o qual tudo o resto é apenas "bronze que soa ou címbalo que retine" (1Co 13,1), uma tal falta é tomada em toda a sua seriedade diante do Ressuscitado, Senhor da Igreja e da história. Devido ao reconhecimento desta falta, o Papa Paulo VI pediu perdão a Deus e aos "irmãos separados" que se sentissem ofendidos "por nós" (Igreja católica).(38)
Em 1965, no clima criado pelo Concílio Vaticano II, o Patriarca Atenágoras, no seu diálogo com Paulo VI, salientou o tema da restauração (apokatástasis) do amor recíproco, essencial após uma história tão carregada de contradições, de mútua desconfiança e de antagonismos.(39) O que estava em jogo era um passado ainda influente através da memória: os acontecimentos de 1965 (que culminaram a 7 de Dezembro de 1965, com a abolição dos anátemas de 1054 entre Oriente e Ocidente) representam uma confissão da culpa contida na anterior exclusão recíproca, de modo a purificar a memória e a partir daí gerar uma nova. O fundamento desta nova memória só pode ser o amor recíproco ou, melhor, o renovado empenho em vivê-lo. É este o mandamento ante omnia (1Pd 4,8) para a Igreja, quer no Oriente quer no Ocidente. De tal modo a memória liberta da escravidão do passado e convida católicos e ortodoxos, assim como católicos e protestantes, a serem os arquitectos de um futuro mais conforme ao mandamento novo. O testemunho dado a esta nova memória pelo Papa Paulo VI e pelo Patriarca Atenágoras é, neste sentido, exemplar.
Relativamente ao caminho em direcção à unidade dos cristãos, pode resultar particularmente relevante a tentação de se ser guiado, ou até deteminado, por factores culturais, condicionalismos históricos ou preconceitos, que alimentam a separação e desconfiança recíproca entre cristãos, ainda que nada tenham a ver com matérias de fé. Os filhos da Igreja devem examinar a sua consciência com seriedade, para verem se estão activamente empenhados em obedecer ao imperativo da unidade e se vivem a "conversão interior", "pois o desejo de unidade nasce e amadurece a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo e da libérrima efusão da caridade" (UR 7). No tempo passado entre a conclusão do Concílio e hoje, a resistência oposta à sua mensagem entristeceu certamente o Espírito de Deus (cf. Ef 4,30). Na medida em que alguns católicos se comprazem em permanecer associados às divisões do passado, nada fazendo para remover os obstáculos que impedem a unidade, dever-se-ia justamente falar de solidariedade no pecado da divisão (1Co 1,10-16). Neste contexto, podem ser atendidas as palavras do Decreto sobre o Ecumenismo: "Pedimos humildemente perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam." (UR 7)
5.3. Uso da violência ao serviço da verdade
Ao contratestemunho da divisão entre os cristãos é necessário acrescentar o das várias ocasiões em que, ao longo deste milénio, foram empregues meios duvidosos para atingir fins justos, que são quer a pregação do Evangelho quer a defesa da unidade da fé: "Outro capítulo doloroso sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de reflectir, com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade." (TMA 35) Referem-se aqui as formas de evangelização que utilizaram instrumentos impróprios para anunciar a verdade revelada, ou que não operaram um adequado discernimento evangélico dos valores culturais dos povos, ou não respeitaram a consciência das pessoas a quem a fé era apresentada, além das formas de violência exercidas na repressão e correcção dos erros.
Análoga atenção é reservada às possíveis omissões das quais os filhos da Igreja se tornaram responsáveis nas mais diversas situações da história, respeitando à denúncia de injustiças e violências: "Há, depois, o falhado discernimento de não poucos cristãos a respeito de situações de violação dos direitos humanos fundamentais. O pedido de perdão é válido por tudo quanto foi omitido ou calado, por fraqueza ou errada avaliação, pelo que foi feito ou dito de modo indeciso ou pouco idóneo."(40)
Como sempre, é decisivo estabelecer, mediante a investigação histórico-crítica, a verdade histórica. Estabelecidos os factos, será necessário avaliar o seu valor espiritual e moral, como também o seu significado objectivo. Só assim será possível evitar toda a espécie de memória mítica e aceder a uma justa memória crítica, capaz - à luz da fé - de produzir frutos de conversão e renovação: "Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo o cristão a manter-se bem firme sobre aquela regra áurea ditada pelo Concílio: 'A verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte' (DH 1)." (TMA 35)
5.4. Cristãos e judeus
Um dos domínios que exige particular exame de consciência é a relação entre cristãos e judeus.(41) A relação da Igreja com o povo hebraico é diferente da que tem com todas as outras religiões. (42) Contudo, "a história das relações entre judeus e cristãos é uma história tormentosa […] Com efeito, o balanço destas relações durante os dois milénios tem sido predominantemente negativo".(43) A hostilidade ou a desconfiança de inúmeros cristãos para com os hebreus ao longo dos tempos é um facto histórico doloroso e causa de profundo pesar para os cristãos conscientes do facto de "que Jesus era um descendente de David; que do povo hebraico nasceram a Virgem Maria e os Apóstolos; que a Igreja é sustentada pelas raízes daquela boa oliveira em que foram enxertados os ramos da oliveira brava dos gentios (cf. Rm 11,17-24); que os judeus são nossos caros e amados irmãos e que, em certo sentido, são verdadeiramente os "nossos irmãos mais velhos".(44)
A Shoah foi certamente resultado de uma ideologia pagã, como era o nazismo, animada de um cruel anti-semitismo, a qual não só desprezava a fé mas também negava a própria dignidade humana do povo hebraico. Contudo, "deve-se perguntar se a perseguição do nazismo nos confrontos com os judeus não foi facilitada por preconceitos antijudaicos presentes nas mentes e corações de alguns cristãos […] Ofereceram os cristãos toda a assistência possível aos perseguidos e, em particular, aos judeus?" (45) Sem dúvida que foram muitos os cristãos que arriscaram a vida para salvar e assistir os judeus seus conhecidos. Parece, porém, igualmente verdade que "ao lado destes corajosos homens e mulheres, a resistência espiritual e a acção concreta de outros cristãos não foi aquela que se poderia esperar de discípulos de Cristo".(46) Este facto constitui um apelo à consciência de todos os cristãos, hoje, exigindo "um acto de arrependimento (teshuva)",(47) e tornando-se um estímulo a que redobrem os seus esforços para serem "transformados, adquirindo uma nova mentalidade" (Rm 12,2) e para manterem uma "memória moral e religiosa" da ferida infligida aos judeus. Nesta área, o muito que já foi feito poderá ser consolidado e aprofundado.
5.5. A nossa responsabilidade pelos males de hoje
"A época actual, a par de muitas luzes, apresenta também muitas sombras." (TMA 36) Entre estas, pode-se assinalar em primeiro plano o fenómeno da negação de Deus nas suas múltiplas formas. O que fere particularmente é ser esta negação, em especial nos seus aspectos mais teóricos, um processo surgido no mundo ocidental. Relacionado com o eclipse de Deus encontra-se, em seguida, uma série de fenómenos negativos, como a indiferença religiosa, a difusa ausência do sentido transcendente da vida humana, um clima de secularismo e relativismo ético, a negação do direito à vida da criança não nascida, que chega a ser sancionado nas legislações em favor do aborto, e uma grande indiferença perante o grito dos pobres em vastos sectores da família humana.
A inquietante questão que se coloca é em que medida os crentes serão eles mesmos responsáveis por estas formas de ateísmo, teórico e prático. A Gaudium et spes responde com palavras cuidadosamente escolhidas: "Os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo considerado no seu conjunto não é um fenómeno originário, antes resulta de várias causas, entre as quais se conta também a reacção crítica contra as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes podem ter tido parte não pequena na génese deste ateísmo." (19)
A partir do momento em que o rosto autêntico de Deus foi revelado em Jesus Cristo, aos cristãos é oferecida a graça incomensurável de conhecer este Rosto: mas têm, igualmente, a responsabilidade de viverem de modo a manifestar aos outros o verdadeiro Rosto do Deus vivo. São chamados a difundir no mundo a verdade que "Deus é amor (ágape)" (1Jo 4,8.16). Porque Deus é amor, Ele é Trindade de Pessoas, cuja vida consiste na recíproca comunicação infinita no amor. Deste modo se conseguirá que a vida melhore, pois os cristãos difundem que a verdade do Deus amor é o amor recíproco: "Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros." (Jo 13,35) E isto até ao ponto de se poder dizer que muitas vezes os cristãos "pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião" (GS 19).
Sublinhe-se, por fim, que mencionar estas culpas dos cristãos do passado não é apenas confessá-las a Cristo Salvador, mas também louvar o Senhor da história pelo Seu amor misericordioso. Os cristãos, de facto, não crêem apenas na existência do pecado, mas também e sobretudo no "perdão dos pecados". Além disso, mencionar estas culpas quer dizer também afirmar a nossa solidariedade com aqueles que no bem e no mal nos precederam na via da verdade, oferecer no presente um forte motivo de conversão às exigências do Evangelho, e proporcionar o necessário prelúdio ao pedido de perdão a Deus que abre caminho à recíproca reconciliação.
6. PERSPECTIVAS PASTORAIS E MISSIONÁRIAS
À luz das considerações feitas, é possível agora perguntar: quais as finalidades pastorais que levam a Igreja a assumir o peso das culpas, cometidas no passado pelos seus filhos em seu nome, e a reconhecê-las como tais? Quais as implicações desta atitude na vida do povo de Deus? E quais as suas ressonâncias em relação à missão da Igreja e ao seu diálogo com as diversas culturas e religiões?
6.1. Finalidades pastorais
Entre as múltiplas finalidades pastorais do reconhecimento dos erros do passado, podem salientar-se as seguintes:
- em primeiro lugar, estes actos tendem à purificação da memória que, como foi dito, é o processo de renovada avaliação do passado, capaz de uma não desprezível incidência no presente, pois os pecados passados fazem, com frequência, ainda sentir o seu peso e permanecem também hoje como outras tantas tentações. Sobretudo se amadurecida no diálogo e na paciente procura da reciprocidade com quem se possa sentir ofendido por acontecimentos ou palavras do passado, a remoção da memória pessoal e colectiva de todas as causas de possível ressentimento pelo mal sofrido e de toda a influência negativa daquele facto, pode contribuir para fazer crescer a comunidade eclesial em santidade, pela via da reconciliação e da paz na obediência à Verdade.
"Reconhecer as fraquezas de ontem - sublinha o Papa - é acto de lealdade e coragem que ajuda a reforçar a nossa fé, tornando-nos atentos e prontos para enfrentar as tentações e dificuldades de hoje." (TMA 33) É exactamente com tal fim que a memória da culpa deve abranger todas as possíveis faltas cometidas, mesmo se apenas algumas são hoje mais frequentemente mencionadas. De qualquer modo, nunca se pode esquecer também o preço pago por tantos cristãos pela sua fidelidade ao Evangelho e ao serviço do próximo na caridade.(48)
- Uma segunda finalidade pastoral, estreitamente ligada à anterior, pode ser reconhecida na promoção da perene reforma do povo de Deus: "se, em vista das circunstâncias das coisas e dos tempos houve deficiências, quer na moral, quer na disciplina eclesiástica, quer também no modo de enunciar a doutrina - modo que deve cuidadosamente distinguir-se do próprio depósito da fé - tudo seja recta e devidamente restaurado no momento oportuno" (UR 6).(49) Todos os baptizados são chamados a "examinar a sua fidelidade à vontade de Cristo acerca da Igreja e, na medida da necessidade, empreender com vigor a obra de renovação e reforma" (UR 4: opus renovationis nec non reformationis). O critério da verdadeira reforma e da autêntica renovação só pode ser a fidelidade à vontade de Deus respeitante ao Seu povo,(50) que supõe um esforço sincero por libertar-se de tudo o que afasta dela, quer se trate de culpas presentes quer diga respeito a heranças do passado.
- Uma ulterior finalidade pode ser vista no testemunho que, desse modo, a Igreja dá do Deus da misericórdia e da Sua Verdade que liberta e salva, a partir da experiência que d'Ele fez e faz na história; e no serviço que, desse modo, presta nos confrontos da humanidade para contribuir à superação dos males presentes. João Paulo II afirma que "um sério exame de consciência foi desejado por numerosos cardeais e bispos, principalmente sobre a Igreja de hoje. No limiar do novo milénio, os cristãos devem pôr-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempo" (TMA 36), e para contribuir, por consequência, ao seu superamento na obediência ao esplendor da Verdade salvífica.
6.2. Implicações eclesiais
Que implicações tem um acto eclesial de pedido de perdão na vida da própria Igreja? Emergem vários aspectos:
- Impõe-se, antes de mais, ter em conta os processos diversificados de recepção dos actos de arrependimento eclesial, pois esses variam consoante os contextos religiosos, culturais, políticos, sociais, pessoais, etc.. A esta luz tome-se em consideração que acontecimentos ou palavras ligados a uma história contextualizada não têm necessariamente alcance universal e, vice-versa, que actos condicionados por determinada perspectiva teológica e pastoral trouxeram consequências de grande peso na difusão do Evangelho (pense-se, p. ex., nos vários modelos históricos da teologia da missão). Além disso, tenha-se em conta a relação entre benefícios espirituais e possíveis custos de semelhantes actos, considerando-se também as acentuações indevidas que os media podem dar a alguns aspectos das declarações eclesiais; tenha-se sempre presente o conselho do apóstolo Paulo de acolher, considerar e apoiar com prudência e amor os "fracos na fé" (cf. Rm 14,1). Em particular, impõe-se prestar atenção à história, à identidade e aos contextos das Igrejas orientais e das Igrejas que actuam em continentes ou países em que a presença cristã é largamente minoritária.
- É necessário precisar o sujeito adequado chamado a pronunciar-se em relação a culpas passadas, quer se trate de pastores locais, pessoal ou colegialmente considerados, quer se trate do Pastor universal, o Bispo de Roma. Nesta perspectiva é oportuno ter em conta - no reconhecimento das culpas passadas e dos agentes actuais que melhor poderão tomar isso a seu cargo - a distinção entre Magistério e autoridade na Igreja. Nem todo o acto de autoridade tem valor de Magistério, pelo que um comportamento contrário ao Evangelho da parte de uma ou mais pessoas revestidas de autoridade não implica de per si um envolvimento do carisma magisterial, confirmado pelo Senhor aos pastores da Igreja, e não requer por consequência nenhum acto magisterial de reparação.
- Sublinhe-se que o destinatário de todo o possível pedido de perdão é Deus e que eventuais destinatários humanos, sobretudo se colectivos, dentro ou fora da comunidade eclesial, devem ser determinados com oportuno discernimento histórico e teológico, quer para se realizarem convenientes actos de reparação quer para se lhes testemunhar a boa vontade e o amor à verdade dos filhos da Igreja. Isto será feito tanto melhor quanto mais diálogo houver e reciprocidade entre as partes em causa num eventual caminho de reconciliação, ligado ao reconhecimento das culpas e arrependimento por elas, sem ignorar que a reciprocidade - por vezes impossível por causa das convicções religiosas do interlocutor - não pode ser, todavia, considerada condição indispensável e que a gratuidade do amor se exprime frequentemente numa iniciativa unilateral.
- Os eventuais gestos de reparação estão associados ao reconhecimento de uma responsabilidade que perdura no tempo, e poderão tanto ter um carácter simbólico-profético como um valor de efectiva reconciliação (p. ex., entre os cristãos divididos). Também na definição destes actos é desejável uma procura comum com os eventuais destinatários, ouvindo os legítimos pedidos que eles possam apresentar.
- No plano pedagógico é oportuno evitar a perpetuação de imagens negativas do outro, assim como activar processos de autoculpabilização indevida; enfatizando que o carregar o fardo das culpas passadas é, para quem crê, um modo de participação no mistério de Cristo crucificado e ressuscitado que carregou as culpas de todos. Esta perspectiva pascal revela-se particularmente apta a produzir frutos de libertação, reconciliação e alegria para todos aqueles que, com fé viva, estão implicados no pedido de perdão, seja como sujeitos seja como destinatários.
6.3. Implicações no plano do diálogo e da missão
São diversas as implicações previsíveis no plano do diálogo e da missão, em consequência de um reconhecimento eclesial de culpas passadas:
- No plano missionário deve-se, antes de mais, evitar que actos semelhantes contribuam para inibir o impulso da evangelização mediante o exacerbar dos aspectos negativos. Do mesmo modo, deve-se tomar em consideração o facto de que estes mesmos actos poderão fazer crescer a credibilidade da mensagem, se nascerem da obediência à verdade e tenderem a dar efectivos frutos de reconciliação. Em particular, os missionários ad gentes terão o cuidado de contextualizar a proposta destes temas em relação à efectiva capacidade da sua recepção nos ambientes em que trabalham (assim, p. ex., aspectos da história da Igreja na Europa poderão ser pouco significativos para muitos povos não europeus).
- No plano ecuménico, a finalidade de eventuais actos de eclesiais de arrependimento só pode ser a unidade querida pelo Senhor. Nesta perspectiva é tanto mais desejável que eles se efectuem na reciprocidade, mesmo que por vezes gestos proféticos possam reclamar uma iniciativa unilateral e absolutamente gratuita.
- No plano inter-religioso é oportuno salientar como, para os crentes em Cristo, o reconhecimento das culpas passadas por parte da Igreja está conforme às exigências da fidelidade ao Evangelho e, portanto, constitui um luminoso testemunho da sua fé na verdade e na misericórdia do Deus revelado por Jesus. Deve evitar-se que actos semelhantes sejam tomados equivocamente como confirmação de eventuais preconceitos nos confrontos do cristianismo. Seria, além disso, desejável que estes actos de arrependimento estimulassem também os fiéis de outras religiões a reconhecerem as culpas do seu próprio passado. Tal como a história da humanidade está cheia de violências, genocídios, violações dos direitos humanos e dos povos, exploração dos mais fracos e divinização dos poderosos, assim também a das várias religiões está coberta de intolerância, superstição, conivência com poderes injustos e negação da dignidade e liberdade das consciências. Os cristãos não foram excepção, e estão conscientes de como todos são pecadores perante Deus!
- No diálogo com as culturas deve-se, antes de mais, ter presente a complexidade e pluralidade das mentalidades com que se dialoga a respeito da ideia de arrependimento e perdão. Em todo o caso, o facto de a Igreja assumir as culpas do passado é esclarecido à luz da mensagem evangélica e, em particular, da apresentação do Senhor crucificado, revelação da misericórdia e fonte de perdão, para além da peculiar natureza da comunhão eclesial, una no tempo e no espaço. Onde haja uma cultura de todo alheia à ideia de um pedido de perdão, devem ser oportunamente apresentadas as razões teológicas e espirituais que motivam este acto a partir da mensagem cristã, tendo em conta o seu carácter crítico-profético. Sempre que se tenha de fazer face a uma preconceituosa indiferença para com a palavra da fé, tome-se em consideração o duplo efeito possível destes actos de arrependimento eclesial que se, por um lado, podem confirmar preconceitos negativos ou atitudes de desprezo e hostilidade, por outro, participam da misteriosa atracção característica do "Deus crucificado".(51) Além disso, considere-se o facto de que no actual contexto cultural, sobretudo no Ocidente, o convite à purificação da memória envolve num comum empenhamento crentes e não crentes. Este empreendimento comum constitui já testemunho positivo de docilidade à verdade.
- Em relação à sociedade civil, por fim, tenha-se em conta a diferença que existe entre a Igreja, mistério de graça, e uma qualquer sociedade temporal; mas não deve ser menos sublinhado o carácter de exemplaridade que o pedido eclesial de perdão pode apresentar e o consequente estímulo que pode oferecer a se efectuarem análogos passos de purificação da memória e reconciliação nas mais diversas situações em que poderá ser reconhecida a sua urgência. Afirma João Paulo II: "O pedido de perdão […] diz respeito, em primeiro lugar, à vida da Igreja, à sua missão de anúncio da salvação, ao seu testemunho de Cristo, ao seu empenhamento pela unidade, numa palavra, à coerência que deve marcar a existência cristã. Mas, a luz e a força do Evangelho de que a Igreja vive, têm a capacidade de iluminar e sustentar, como por superabundância, as escolhas e acções da sociedade civil, no pleno respeito da sua autonomia […] No limiar do terceiro milénio, é legítimo esperar que os responsáveis políticos e os povos, sobretudo aqueles envolvidos em conflitos dramáticos, alimentados pelo ódio e pela lembrança de feridas frequentemente antigas, se deixem guiar pelo espírito de perdão e reconciliação de que a Igreja dá testemunho, e se esforcem por resolver as oposições mediante um diálogo leal e aberto."(52)
CONCLUSÃO
A concluir a reflexão feita, é oportuno salientar, uma vez mais, como em todas as formas de arrependimento pelas culpas do passado e em cada um dos gestos a ele ligados, a Igreja se dirige antes de tudo a Deus, querendo glorificá-l'O e à Sua misericórdia. Justamente desse modo ela sabe celebrar também a dignidade da pessoa humana, chamada à plenitude da vida na aliança fiel com o Deus vivo: "A glória de Deus é o homem vivo; a vida do homem é a visão de Deus."(53) Agindo assim, a Igreja dá testemunho também da sua confiança no poder da Verdade que nos torna livres (cf. Jo 8,32). O seu "pedido de perdão não deve ser entendido como ostentação de dissimulada humildade, nem como negação da sua história bimilenária, claramente rica de méritos nas áreas da caridade, cultura e santidade. Ela responde, ao contrário, à irrenunciável exigência de verdade a qual, a par dos aspectos positivos, reconhece os limites e as fraquezas humanas das várias gerações de discípulos de Cristo".(54) E a Verdade reconhecida é fonte de reconciliação e de paz, pois, como afirma o mesmo Papa, "o amor da verdade, procurada com humildade, é um dos grandes valores capazes de reunir os homens de hoje através das várias culturas".(55) Também pela sua responsabilidade para com a Verdade, a Igreja "não pode transpor o limiar do novo milénio sem incitar os seus filhos à purificação, pelo arrependimento, dos erros, infidelidades, incoerências, atrasos. Reconhecer as quedas de ontem é acto de lealdade e coragem" (TMA 33). O que abre para todos um novo amanhã.
Siglas
AAS Acta Apostolicae Sedis
CIC Catecismo da Igreja Católica
CTI Comissão Teológica Internacional
DH Dignitatis humanae
GS Gaudium et spes
LG Lumen gentium
NA Nostra aetate
RP Reconciliatio et paenitentia
TMA Tertio millennio adveniente
UR Unitatis redintegratio
Notas
1. Incarnationis mysterium 11.
2. Ibid. Já em várias intervenções e, em particular, no n. 33 da carta apostólica Tertio millennio adveniente (TMA), o Papa havia indicado à Igreja o caminho a seguir para purificar a própria memória relativamente às culpas do passado e para dar o exemplo de arrependimento aos indivíduos e às sociedades civis.
3. Cf. Extravagantes communes, lib. V, tit. IX, c. 1 (A. Friedberg, Corpus iuris canonici, t. II, c. 1304).
4. Cf. CLEMENTE XIV, Carta Salutis nostrae (30 de Abril de 1774), § 2.
5. Neste sentido vai a definição de indulgência que Clemente VI dá ao instituir, em 1343, a periodicidade do jubileu de 50 em 50 anos. Clemente VI vê no jubileu eclesial "o cumprimento espiritual" do "jubileu de remissão e júbilo" do Antigo Testamento (Lv 25).
6. "Cada um de vós deve examinar em que é que caiu e examinar-se a si mesmo mais rigorosamente de quanto o será por Deus no dia da Sua cólera", in: Deutsche Reichstagsakten, n. série, III 390-399, Gotha 1893.