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REFLEXÕES DO CARDEAL FRANCIS ARINZE
 SOBRE A JORNADA DE ORAÇÃO EM ASSIS 2002

 


O dia 24 de Janeiro verá os representantes das religiões do mundo caminharem rumo a Assis. Eles respondem ao convite do Santo Padre e acorrem para rezar. Estão conscientes das tensões existentes no cenário internacional. Há acontecimentos que inquietam, existem preocupações. As coisas poderiam melhorar, mas também piorar. A humanidade tem necessidade da paz. São Francisco de Assis atrai as pessoas pertencentes a muitas religiões porque foi irmão de todos, amou cada um e o seu coração estava aberto a todos. Os representantes das várias religiões estão a peregrinar rumo a Assis para pedir a Deus, mediante a oração, o dom da paz.

A sociedade humana no mundo está a tornar-se cada vez mais pluralista, sob os pontos de vista cultural e religioso. A relativa facilidade dos modernos meios de comunicação e de transporte é um dos factores [desta mudança]. O mesmo acontece com a realidade da crescente interdependência dos povos nos âmbitos económico, cultural, social e educativo.

Esta pluralidade é um dado de facto. As pessoas devem aprender a aceitá-la. Hão-de continuar a fazer os esforços positivos para promover uma melhor compreensão recíproca e uma melhor colaboração entre povos de diferentes tradições religiosas ou culturais. A cultura e as religiões podem confrontar-se. Todavia, não é necessário que elas se embatam entre si. Este embate deve ser impedido. Por conseguinte, a humanidade há-de ir mais além, evitando o acometimento e promovendo a harmonia e a colaboração.

Existem muitos desafios e tarefas que exigem a colaboração das pessoas de diferentes tradições. São exemplo disto a maior justiça na sociedade, a redução do fosso entre ricos e pobres, a promoção da paz, a prevenção da guerra, o uso dos bens terrestres e as problemáticas ecológicas.

Convicto da necessidade da colaboração, o Papa João Paulo II convida os representantes das várias religiões a irem a Assis. Já em 1991, ele afirmou:  "Estou persuadido de que as religiões têm hoje, e continuarão a ter, um papel proeminente a desempenhar na conservação da paz e na construção de uma sociedade digna do homem" (Centesimus annus, 60). Dez anos mais tarde, reiterou a mesma convicção, por ocasião  do  encerramento  das  celebrações do Grande Jubileu:

 "Na condição de um pluralismo cultural e religioso mais acentuado, como se prevê na sociedade do novo milénio, isto é importante até mesmo para criar uma segura premissa de paz e afastar o espectro funesto das guerras de religião, que já cobriram de sangue muitos períodos na história da humanidade" (Novo millennio ineunte, 55).

Todas as religiões dignas deste nome ensinam o amor ao próximo. É verdade que a dimensão primeira da religião é vertical:  atenção a Deus Criador, que há-de receber a nossa adoração, louvor e acção de graças. Contudo, a dimensão horizontal da religião vem imediatamente depois e consiste em aceitar e respeitar as outras pessoas.

O amor ao próximo, que o cristianismo professa como a regra de ouro da conduta moral:  "Tudo o que desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles, pois é nisto que consistem a Lei e os Profetas" (Mt 7, 12), faz também parte do património doutrinal das outras grandes religiões do mundo. Cito a seguir as máximas de seis destas religiões: 

Hinduísmo:  "O ponto mais elevado do dever consiste em não fazermos aos outros o que nos causaria sofrimento se nos fosse feito a nós" (Mahabharata, 5.15.17).

Budismo:  "Não firas o próximo, para que também tu não sejas ferido" (Udanavarga, 5, 18).
Confucionismo:  "O grau mais excelso da benevolência amável (jin) consiste em  não  fazermos  aos  outros  aquilo que não gostaríamos que nos fizessem a  nós  mesmos"  (Analects  [Rongo], 15, 23).

Hebraísmo:  "Não faças ao teu companheiro aquilo que para ti é odioso:  nisto se resume toda a Lei; o resto é um seu comentário" (Talmude, Shabbat, 31 a).

Islão:  "Nenhum de vós é um crente, enquanto não amar o seu irmão como ama a si mesmo" (As 42 Tradições de An-Nawawi).

Religião Tradicional Africana:  "Aquilo que deres (ou fizeres) ao próximo, será dado (ou feito) também a ti" (Provérbio ruandês).

Deus é o Deus do amor, e não do ódio; o Deus da vida, e não da morte, o Deus da paz, e não da guerra. "O nome do único Deus deve tornar-se cada vez mais aquilo que é:  um nome de paz, um imperativo de paz" (Novo millennio ineunte, 55). Aqueles que promovem os conflitos, o ódio, a violência e o terrorismo devem saber que, na medida em que o fazem, não são bons membros de nenhuma religião. A violência em nome de Deus e da religião constitui uma contradição, como disse também o Santo Padre, durante a Assembleia Geral da Conferência Mundial sobre Religião e Paz, no dia 13 de Novembro de 1994 (cf. Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII, 2 [1994], pp. 597-601). O encontro de Assis, a 24 de Janeiro de 2002, diz "não" às guerras de religião e a todos os actos violentos ou terroristas, de maneira especial quando são perpetrados em nome da religião. Ao mesmo tempo, pessoas de muitas religiões defendem implicitamente o respeito pelo direito fundamental que o homem tem à liberdade religiosa e para que cessem todas as perseguições e discriminações contra as pessoas, em virtude da sua pertença religiosa.

O
caminho de Assis é inclusivamente uma vereda da paz. Seria mais positivo para a humanidade, se os seguidores das várias religiões se convencessem de que é necessário percorrer em conjunto o caminho que há-de levar para a paz.

Trata-se de um caminho assinalado pela aceitação da realidade da interdependência entre os povos, aceite na liberdade e vivida com generosidade. É assim que se gera a virtude moral da solidariedade. As pessoas aprendem a aceitar-se umas às outras, não como inimigos ou como quem ameaça, mas como companheiros de peregrinação na viagem da vida.

A solidariedade inclui a atenção às situações de injustiça, opressão ou repressão. Compreende também um compromisso realista em ordem ao desenvolvimento dos povos. O Papa Paulo VI afirma que "o desenvolvimento é o novo nome da paz" (cf. Populorum progressio, 76-80). Se as pessoas sentem fome, não têm uma casa onde morar, são ignorantes, desprovidas da assistência médica e despojadas dos seus direitos políticos, então ainda nos encontramos longe do caminho da paz.

A mensagem de amor e de sacrifício pessoal, que Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem, anuncia ao mundo inteiro é significativa para todos os povos, línguas, culturas e religiões. Jesus Cristo desejou nascer na Palestina, na Ásia Menor, ou Ásia Ocidental, ou ainda Médio Oriente, como hoje se diria no Ocidente. Todavia, a religião que foi estabelecida é destinada a todas as nações. Ele veio "para reunir os filhos de Deus, que estavam dispersos" (Jo 11, 52).

São Paulo, um dos primeiros missionários, trouxe imediatamente o cristianismo à Europa (cf. Act 16, 9-10). Depois, seguindo o desenvolvimento da história, o cristianismo assumiu alguns elementos da cultura greco-romana. Até ao século passado, muitos missionários provinham da Europa. Contudo, esta equação está a mudar. O cristianismo chegou às Américas há quinhentos anos. Com excepção do Norte da África, que foi cristão desde os primeiros séculos, a região do Continente africano que se encontra ao Sul do Saara fez grandes progressos na fé cristã ao longo dos últimos 150 anos.

A Congregação para a Evangelização dos Povos, que enviou missionários para a Ásia (Extremo Oriente), deu-lhes instruções claras (1659) para respeitar as culturas dos novos povos que haveriam de receber o Evangelho e para mudar somente o que fosse incompatível com o Evangelho (cf. Instrução de 1659, em:  Collectanea SCPF 1, n. 135, pág. 42).

Especialmente no nosso tempo, a Igreja sublinha a necessidade e a urgência da inculturação. Embora, no que tange a esta problemática, nem todos os missionários tenham alcançado a estatura de Padre Mateus Ricci, e mesmo reconhecendo também que alguns missionários cometeram verdadeiros erros, não se põe em dúvida o ensinamento da Igreja.

Por conseguinte, não é justo identificar o cristianismo com o Ocidente ou atribuir-lhe os elementos negativos da cultura ocidental, como o liberalismo, a permissividade e a tendência secularista a viver como se Deus não existisse.

As pessoas religiosas estimam a necessidade humana de Deus. A oração nasce do coração do homem e volta-se para Deus Criador, porque o ser humano aceita a sua total dependência de Deus.

É necessário dizer e fazer tudo mas, em última análise, a paz continua a ser um dom de Deus. Embora a humanidade tenha necessidade dos governos, das Organizações das Nações Unidas e das diversas Associações nacionais e internacionais promotoras da paz, a humanidade inteira recebe a dádiva da paz sobretudo de Deus, como resultado da oração humilde. E quando a oração é acompanhada do jejum e da solidariedade para com os pobres, torna-se uma súplica mais forte a Deus.

A valorização desta dimensão espiritual na busca da paz ajuda a explicar por que motivo o convite do Santo Padre, enviado aos representantes das religiões mundiais, a irem a Assis em 1986 para rezar e jejuar pela paz, foi recebido com tanto entusiasmo. A nossa oração e a nossa esperança é de que o convite a ir a Assis no dia 24 de Janeiro do corrente ano tenha uma recepção tão calorosa como a precedente, e que os crentes do mundo inteiro encontrem as formas de se unirem espiritualmente para este grandioso acontecimento.

8 de Dezembro de 2001.

 

CARD. FRANCIS ARINZE
Presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso



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