Terça-feira, 16 de Setembro de 2003
"A sua alma era agradável ao Senhor": com estas palavras do livro da Sabedoria (4, 14), somos introduzidos na recordação do Cardeal Van Thuân, que há um ano nos deixou para voltar para a casa do Pai. A sua alma estava pronta para o encontro eterno com o Amor e com a Paz. "Ele agradou a Deus e foi por Ele amado". Também estas palavras do livro da Sabedoria (4, 10) nos ajudam a compreender melhor o sentido da morte do Cardeal Van Thuân: um acontecimento que nos permite ter uma compreensão total e verdadeira de toda a sua existência porque também ele se distinguia pelo amor.
Deus, com o seu amor providente e misericordioso, acompanhou-o, amparou-o, salvou-o nas vicissitudes complicadas de uma vida vivida nas encruzilhadas mais dramáticas do século passado. O Cardeal soube responder a este amor com um abandono confiante; permaneceu fiel ao Senhor também nos momentos mais obscuros e perigosos da prova e da tentação. Ele afirmava que permanecer no Senhor não é ócio nem passividade. É uma acção, um acto de amor a Deus: "Quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto" (Jo 15, 5). O testemunho radioso do Cardeal faz-nos compreender profundamente o significado do evangelho de São Paulo: "já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl 2, 20). Assim também a nossa oração sabe tornar-se palavra de amor: Senhor Jesus, desejo permanecer em Ti, seremos um só, uma única vontade, um só coração, um só impulso, um único amor. Deixará de se distinguir entre o que pertence a Ti ou a mim.
Quando, no desempenho das práticas e das actividades do Dicastério, surgiam problemas ou dificuldades difíceis de resolver e governar, o Cardeal costumava tranquilizar-me, exclamando com simplicidade evangélica: "Não se preocupe, o Senhor salva-nos!". Não evitava as suas responsabilidades, mas orientava tudo para a justa perspectiva da vontade misericordiosa de Deus e do Seu amor providente. Aquela sua exclamação revelava a qualidade espiritual da vida interior do Cardeal e constitui a chave para penetrar o mistério da sua alma. Tudo está nas mãos de Deus e deve colocar-se tudo nas suas mãos, sem resistências e com absoluta confiança. Escreve estas palavras a D. Martino num artigo publicado hoje em L'Osservatore Romano: "Para todos os que tiveram a sorte de se encontrar com o Cardeal Van Thuân, foi imediata a impressão de se encontrarem na presença de um autêntico homem de Deus, um homem de oração, que reconduzia todas as coisas a Deus, sabendo reconhecer em cada experiência a mão providente do Senhor. No martírio do amor de Deus ele tinha vivido a sua atormentada e dramática vicissitude pessoal de cristão e de Bispo, participando sempre, com todo o seu ser, na divina comunhão misericordiosa. Durante os treze anos de aprisionamento injusto nas prisões vietnamitas, o Cardeal enfrentou e sofreu a tentação angustiante da solidão e do desespero. Precisamente naquela terrível desolação existencial, que o tinha privado de qualquer referência humana e de todas as relações eclesiais, a sua alma teve a graça de não desesperar, mas antes de se abrir ao jubiloso reconhecimento do amor de Deus e da Sua presença misericordiosa. Deus manifestava-se-lhe como o Tudo". Isto era suficiente para reduzir o peso e o sofrimento da privação da dignidade pessoal e da liberdade: quando se está em comunhão com Deus, que é Tudo, porque motivo nos devemos angustiar pelo resto?
Meditava, nos dias terríveis da prisão, sobre a pergunta feita pelos discípulos a Jesus, durante a tempestade: "Mestre, não se Te dá que pereçamos?" (Mc 4, 39), até que uma noite, do fundo do coração, uma voz lhe falou: "Porque te atormentas tanto? Deves distinguir entre Deus e as obras de Deus, tudo o que realizaste e desejas continuar a fazer, visitas pastorais, formação de seminaristas, religiosos, religiosas, leigos, jovens, construção de escolas, de centros para estudantes, missões para a evangelização dos não-cristãos..., tudo isto é uma obra excelente, são obras de Deus, mas não são Deus! Se Deus quiser que tu abandones todas estas obras, pondo-as nas Suas mãos, fá-lo imediatamente, e tem confiança n'Ele. Deus fá-lo-á infinitamente melhor do que tu; ele confiará as Suas obras a outros, muito mais capazes do que tu. Tu escolheste unicamente Deus, e não as suas obras!". Tinha aprendido a fazer a vontade de Deus. Esta luz deu-lhe uma nova força, que mudou completamente o seu modo de pensar e o ajudou a superar momentos fisicamente quase impossíveis. Temos aqui, com palavras essenciais, a verdade total e profunda de um cristianismo vivido de maneira santa e exemplar. Foi este, deveras, o grande segredo do Cardeal Van Thuân!
Assim, soube viver na alegria de Cristo ressuscitado, no perdão, no amor e na unidade, mesmo no meio das dificuldades quase insuportáveis. Esta sua atitude fez mudar os seus algozes, que se tornaram seus amigos. Até o ajudaram, às escondidas, a fazer uma cruz com pedaços de madeira, e depois a fazer também a corrente para ela, com fio eléctrico da prisão, que ele usou sempre, porque lhe recordava o amor e a unidade que Jesus nos deixou no Seu testamento. Aquela corrente segurou sempre a sua cruz peitoral de Bispo e depois de Cardeal, aquela velha cruz de madeira, coberta com um pouco de metal. Cruz de testemunho heróico, cruz de amor.
O amor conferia uma evidente tonalidade eucarística à sua espiritualidade. Dá testemunho disto o ensinamento do Cardeal sobre a Eucaristia, pronunciado pouco antes de morrer. Nele podem-se ver toda a sua delicadeza e a sensibilidade da sua alma, a complexa simplicidade do seu grande espírito: "Aquilo de que temos necessidade é-nos dado por Jesus na Eucaristia: o amor, a arte de amar: amar sempre, amar com o sorriso, amar imediatamente e amar os inimigos, amar perdoando, esquecendo o facto de ter perdoado. Penso que Jesus na Eucaristia nos possa ensinar sete aspectos deste amor. No cenáculo Jesus manifesta-nos o amor sacrificado: "Isto é o meu corpo oferecido em sacrifício por vós". Quando, no fim da ceia, vai ao Getsémani, é um amor abandonado: Jesus sente-se abandonado pelo Pai, mas, ao contrário, ele abandona-se completa e totalmente nas mãos do Pai: "Non sicut ego volo sed sicut tu". Na cruz, Jesus manifestou o amor consumado porque nos amou até ao fim e disse: "Tudo está consumado". Nada resta, que Ele não tenha feito por nós. E quando, depois de ter ressuscitado, acompanha os dois discípulos a Emaús e fala com eles explicando as Escrituras e na fracção do pão se lhes revela como Eucaristia, é um amor profundo. Na Missa, Jesus oferece-se nas nossas mãos todos os dias; o Seu sacrifício por nós, o Seu sangue derramado por nós e por todos é um amor imolado, um amor comido, como dizia o Cura d'Ars. No tabernáculo, Jesus manifesta-nos o amor escondido no silêncio a na oração. No ostensório, Jesus mostra-nos o amor radioso e nós somos todos um raio de Jesus, devemos ser luz como Ele nos quer".
Confiamos estes pensamentos a Maria, que o Cardeal Van Thuân amava com ternura e à qual rezava com fervor: ela saberá guardá-los no seu coração de Mãe e torná-los fecundos de bem e de graça, no céu e na terra.