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PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ"

CONFERÊNCIA DE APRESENTAÇÃO À IMPRENSA DO
 "COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA"

INTERVENÇÃO DO CARDEAL RENATO RAFFAELE MARTINO

 

 

Sinto-me particularmente feliz por tornar público hoje o esperado documento "Compêndio da doutrina social da Igreja", elaborado, por encargo do Santo Padre e a ele dedicado, pelo Pontifício Conselho "Justiça e Paz" que tem a sua plena responsabilidade. Agora o documento é posto à disposição de quantos católicos, outros cristãos e pessoas de boa vontade procuram indicações concretas para melhor promover o bem social das pessoas e das sociedades. A obra foi iniciada há cinco anos com a presidência do meu venerado predecessor, o Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân. Um inevitável atraso no trabalho foi determinado pela doença e morte do Cardeal Van Thuân e pela consequente mudança de Presidência no Pontifício Conselho "Justiça e Paz".

A elaboração do "Compêndio da doutrina social da Igreja" não foi uma tarefa simples. As problemáticas mais complexas enfrentadas essencialmente foram determinadas:  a) pelo facto de que se tratava de elaborar um texto que não tinha precedentes na história da Igreja; b) pela ordenação de algumas complexas questões epistemológicas relacionadas com a natureza da doutrina social da Igreja; c) pela necessidade de dar ao documento uma dimensão unitária e universal apesar dos numerosos aspectos e das infinitas diversidades em que se declina a realidade social no e do mundo; d) pelo cuidado de oferecer um ensinamento que resistisse ao desgaste do tempo, numa fase histórica caracterizada por mudanças sociais, económicas e políticas muito rápidas e radicais.

O "Compêndio da doutrina social da Igreja" oferece uma visão de conjunto das orientações fundamentais do "corpus" doutrinal do ensinamento social católico. Em fidelidade às autorizadas indicações que o Santo Padre João Paulo II tinha oferecido no n. 54 da Exortação Apostólica "Ecclesia in America", o documento apresenta "de maneira global e sistemática, mesmo se de modo sintético, o ensinamento social, que é fruto da sábia reflexão magisterial e expressão do compromisso constante da Igreja em fidelidade à Graça da salvação de Cristo e na amorosa solicitude pelo destino da humanidade" (Compêndio, n. 8).

O "Compêndio" tem uma estrutura simples e linear. Depois de uma Introdução, seguem-se três partes:  a primeira, composta de quatro capítulos, trata dos pressupostos fundamentais da doutrina social o desígnio de amor de Deus pelo homem e a sociedade, a missão da Igreja e a natureza da doutrina social, a pessoa humana e os seus direitos, os princípios e os valores da doutrina social ; a segunda parte, composta de sete capítulos, trata os conteúdos e os temas clássicos da doutrina social a família, a comunidade política, a comunidade internacional, o ambiente e a paz ; a terceira parte, bastante breve porque se compõe de um só capítulo, contém uma série de indicações para o uso da doutrina social na práxis pastoral da Igreja e na vida dos cristãos, sobretudo dos fiéis leigos. A Conclusão, intitulada "Para uma civilização do amor", exprime o objectivo fundamental de todo o documento.

A obra é completada por um conjunto de índices extenso, mas de fácil e utilíssima consulta.

O "Compêndio" tem uma finalidade precisa e caracteriza-se por alguns objectivos bem claros na Introdução no n. 10. De facto, ele, "propõe-se como um instrumento para o discernimento moral e pastoral dos complexos acontecimentos que caracterizam o nosso tempo; como uma guia para inspirar, a níveis individual e colectivo, comportamentos e opções que permitam olhar para o futuro com confiança e esperança; como um subsídio para os fiéis sobre o ensinamento da moral social". Um instrumento elaborado, além disso, com o objectivo preciso de promover "um novo compromisso capaz de responder às exigências do nosso tempo e medido sobre as necessidades e os recursos do homem, mas sobretudo o anseio por valorizar com novas formas a vocação própria dos vários carismas eclesiais em vista da evangelização do social, porque "todos os membros da Igreja são partícipes da sua dimensão secular" (1)(n. 10).

Um dado que é oportuno realçar, porque se encontra em várias partes do documento, é o seguinte:  o texto é proposto como um instrumento para alimentar o diálogo ecuménico e inter-religioso dos católicos com quantos desejam sinceramente o bem do homem. De facto, afirma-se no n. 12 que "Este documento é proposto também aos irmãos das outras Igrejas e Comunidades Eclesiais, aos seguidores das outras religiões, assim como a quantos, homens e mulheres de boa vontade, se comprometem a servir o bem comum". A doutrina social tem, de facto, um destino universal, além daquele, primário e específico, para os fiéis da Igreja. A luz do Evangelho, que a doutrina social reflecte sobre a sociedade, ilumina todos os homens:  cada consciência e inteligência estão em condições de compreender a profundidade humana dos significados  e  dos  valores  expressos nesta doutrina e a carga de humanidade e de humanização das suas normas de acção.

Evidentemente, o "Compêndio da doutrina social da Igreja" refere-se antes de mais aos católicos, porque "Primeira destinatária da doutrina social é a comunidade eclesial em todos os seus membros, porque todos assumem responsabilidades sociais... Nas tarefas de evangelização, isto é, de ensino, de catequese e de formação, que a doutrina social da Igreja suscita, ela é destinada a todos os cristãos, segundo as competências, os carismas, os ofícios e a missão de anúncio próprios de cada um" (n. 38). A doutrina social implica também responsabilidades relativas à construção, à organização e ao funcionamento da sociedade:  obrigações políticas, económicas, administrativas, ou seja, de natureza secular, que pertencem aos fiéis leigos de modo peculiar, em virtude da condição secular do seu estado de vida e da índole secular da sua vocação:  mediante estas responsabilidades, os leigos põem em prática o ensinamento social e cumprem a missão secular da Igreja.

Na elaboração do "Compêndio" levantamos constantemente a questão relativa à colocação da doutrina social da Igreja no mundo de hoje. Ao dar forma à resposta, considerámos que não deveríamos proceder apenas pelo caminho de uma simples análise sociológica ou de um elenco de propriedades sociais ou de problemas emergentes. Julgámos melhor que o "Compêndio" deveria constituir um sério e rigoroso instrumento adequado a subsidiar aquele discernimento acto cognoscitivo eclesial e comunitário hoje tão indispensável. O discernimento cristão funda-se na leitura dos sinais dos tempos, feita à luz da Palavra de Deus e daquele "corpus" de verdade que o Magistério constituiu como doutrina social da Igreja, com a finalidade de orientar a práxis comunitária e pessoal. Com isto atinge-se o próprio coração da doutrina social da Igreja, a sua natureza íntima de "encontro da mensagem evangélica e das suas exigências... com os problemas que derivam da vida da sociedade (2). O "Compêndio da doutrina social da Igreja" apresenta a doutrina social da Igreja como uma doutrina que nasce do discernimento, que é ela mesma discernimento e está finalizada para o discernimento.

Nesta perspectiva de fundo, o "Compêndio" tem a nobre finalidade de subsidiar um discernimento capaz de se encarregar de alguns desafios decisivos e de grande relevo e importância.

a) O primeiro desafio é cultural, que a doutrina social enfrenta fazendo tesouro da sua constitutiva dimensão interdisciplinar. Mediante a sua doutrina social a Igreja "proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem, aplicando-a a uma situação concreta"(3):  por conseguinte, é evidente que, sobretudo em vista do futuro, a doutrina social deverá desenvolver cada vez mais a sua dimensão interdisciplinar(4). A interdisciplinaridade não é um excedente, mas uma dimensão intrínseca da doutrina social da Igreja, porque está estreitamente relacionada com a finalidade de encarnar a verdade eterna do Evangelho nas problemáticas históricas que a humanidade deve enfrentar. A verdade do Evangelho deve encontrar-se com o saber elaborado pelo homem, porque a fé não está separada da razão; os frutos históricos da justiça e da paz amadurecem quando a luz evangélica filtra e penetra as culturas, no respeito das autonomias recíprocas, mas também das conexões analógicas, entre fé e saberes. Quando o diálogo com as várias disciplinas do saber se torna íntimo e fecundo, a doutrina social da Igreja consegue desempenhar a sua tarefa de estimular uma nova projectualidade social, económica e política  capaz  de  colocar  a  pessoa  humana  no  centro,  em  todas  as  suas dimensões.

É o caso de observar como a interdisciplinaridade orientada seja capaz de responder às exigências muito sentidas pela cultura de hoje. A cultura actual rejeita qualquer sistema "fechado", mas ao mesmo tempo procura razões. A doutrina social da Igreja não é "um sistema fechado" (5). E isso por dois motivos:  porque é histórica, ou seja, "desenvolve-se em função das circunstâncias mutáveis da história"(6); e porque tem origem na mensagem evangélica(7), que é transcendente e precisamente por esta razão é a principal "fonte de renovação"(8) da história. A dimensão interdisciplinar permite que a doutrina social oriente sem ser um sistema e que não seja um sistema sem desorientar.

b) O segundo desafio provém da situação de indiferença ética e religiosa e da necessidade de uma renovada colaboração inter-religiosa. A nível social, os aspectos mais importantes da indiferença difundida são a separação entre ética e política e a convicção de que as questões não podem aspirar a um estatuto público, não podem constituir o objecto de um debate racional e político porque seriam expressões de escolhas individuais, ou até privadas. A separação entre ética e política, por extensão, tende a referir-se também às relações entre política e religião, confinada ao âmbito privado.

Neste campo a doutrina social da Igreja tem hoje e no próximo futuro uma tarefa empenhativa a cumprir, uma tarefa que é percorrível melhor se for empreendida em diálogo com as confissões cristãs e também com as não cristãs. A colaboração inter-religiosa será um dos percursos de valor estratégico para o bem da humanidade, decisivo no futuro da doutrina social. Olhando para os acontecimentos do final do século XX e do início do milénio que há pouco iniciou com o olhar da sabedoria cristã, podemos detectar, com a orientação do Santo Padre, pelo menos um âmbito histórico de importância prioritária para o diálogo inter-religioso sobre temáticas sociais. Trata-se do tema da paz e dos direitos humanos. Todos conhecem as numerosas e angustiadas solicitações do Papa sobre este tema. É suficiente mencionar apenas os Discursos ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé nestes 26 anos de Pontificado para se dar conta de como são frequentes e insistentes as chamadas a uma colaboração das religiões mundiais para a paz no "espírito de Assis". É suficiente unicamente a referência à Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, na qual o Santo Padre escreve:  "As confissões cristãs e as grandes religiões da humanidade devem colaborar entre si para eliminar as causas sociais e culturais do terrorismo, ensinando a grandeza e a dignidade da pessoa e difundindo uma consciência maior da unidade do género humano. Trata-se de um âmbito precioso do diálogo e da colaboração ecuménica e inter-religiosa, para um serviço urgente à paz entre os povos da parte das religiões" (9).

O terreno dos direitos humanos, da paz, da justiça social e económica, do progresso, no futuro próximo, estará cada vez mais no centro do diálogo inter-religioso, no qual os católicos deverão participar com a sua doutrina social, entendida como "corpus doutrinal" que estimula mas que é também alimentado pela "laboriosidade fecunda de milhões e milhões de homens, que... se esforçaram por se inspirarem nele em virtude do próprio compromisso no mundo"(10).

c) O terceiro desafio é propriamente pastoral. O futuro da doutrina social da Igreja no mundo de hoje dependerá da contínua e renovada compreensão do enraizamento da doutrina social na missão própria da Igreja; do modo como esta doutrina nasce da Palavra de Deus e da fé viva da Igreja; de como ela é expressão do serviço da Igreja ao mundo, no qual a salvação de Cristo deve ser anunciada com as palavras e com as obras; da renovada compreensão, por conseguinte, de como esta doutrina está relacionada com todos os aspectos da vida e da acção da Igreja:  sacramentos, liturgia, catequese, pastoral. A doutrina social da Igreja, que "é parte essencial da mensagem cristã"(11), deve ser conhecida, difundida e testemunhada. Quando, de qualquer forma, se perde a consciência viva desta "pertença" da doutrina social à missão da Igreja, a mesma doutrina social é instrumentalizada em função de várias formas de ambiguidade ou parcialidade.

Gostaria de recordar agora a famosa expressão:  "a doutrina social cristã da vida"(12), com a qual o beato Papa João XXIII, na encíclica "Mater et magistra", abria o caminho, já há muitos anos, aos esclarecimentos sucessivos, importantes e aprofundados, de João Paulo II:  "O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja"(13); "instrumento de evangelização"(14), a doutrina social "anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem" (15). Ela poderá desempenhar tanto melhor o seu serviço ao homem dentro do tecido da sociedade e da economia quanto menos estiver limitada a discurso sociológico ou político, a exortação moralizante, a "ciência do bom viver"(16) ou a simples "ética para as situações difíceis", o que fará com que seja cada vez mais conhecida, ensinada, vivida e encarnada em toda a plenitude da sua "vital ligação com o Evangelho do Senhor" (17).

Ao concluir a apresentação do "Compêndio da doutrina social da Igreja" com estas reflexões sobre o papel da doutrina social da Igreja no mundo de hoje face às novas exigências da evangelização, gostaria de realçar uma dupla dimensão da presença dos cristãos na sociedade, uma dupla inspiração que nos provém da própria doutrina social e que no futuro exigirá cada vez mais que seja vivida em síntese complementar. Refiro-me à exigência do testemunho pessoal, por um lado e, por outro, à exigência de uma nova projectualidade para um humanismo autêntico que envolva as estruturas sociais. As duas dimensões, a pessoal e a social, nunca devem ser separadas.

Tenho grandes esperanças de que o "Compêndio da doutrina social da Igreja" faça maturar personalidades crentes autênticas e as inspire a serem testemunhas credíveis, capazes de modificar os mecanismos da sociedade actual com o pensamento e com a acção. Há sempre necessidade de testemunhas, de mártires e de santos, também no âmbito social. Os Pontífices fizeram continuamente referência às pessoas que viveram a sua presença na sociedade como "testemunho a Cristo Salvador" (18). Trata-se de todos aqueles que a "Rerum Novarum" considerava "digníssimos de louvor"(19) por se terem comprometido a melhorar, naqueles tempos, a condição dos operários.

Aqueles de quem a "Centesimus annus" diz que "souberam encontrar sempre formas eficazes para dar testemunho da verdade"(20). Aqueles que "estimulados pelo Magistério social, se esforçaram por se inspirar nele em virtude do seu compromisso no mundo. Agindo individualmente, ou de várias formas coordenados em grupos, associações e organizações, eles constituíram como que um grande movimento pela defesa da pessoa humana e a tutela da sua dignidade"(21). Trata-se de tantos cristãos, muitos dos quais leigos, que "se santificaram nas condições mais ordinárias da vida"(22). O testemunho pessoal, fruto de uma vida cristã "adulta", profunda e madura, não pode deixar de se cimentar também com a construção de uma nova civilização, em diálogo com as disciplinas do saber humano, em diálogo com as outras religiões e com todos os homens de boa vontade pela realização de um humanismo integral e solidário.

***

Notas

1. João Paulo II, Exort. apost. Christifideles laici, 15.

2. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Inst. Libertatis conscientia, 72.

3. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 41.

4. "A doutrina social... possui uma importante dimensão interdisciplinar. Para encarnar melhor nos contextos sociais, económicos e políticos diversos e continuamente variáveis a única verdade acerca do homem, esta doutrina entra em diálogo com as várias disciplinas que se ocupam do homem, integra em si os contributos e ajuda-as a abrir-se a um horizonte mais amplo ao serviço da pessoa individualmente conhecida e amada na plenitude da sua vocação" (João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 59).

5. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Inst. Libertatis conscientia, 72.

6. Ibidem.

7. Cf. ibidem.

8. Paulo VI, Carta apost. Octogesima adveniens, 42.

9. João Paulo II, "Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão", Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2002, n. 12.

10. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 3.

11. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 5.

12. João XXIII, Carta enc. Mater et magistra, 206.

13. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 41.

14. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 54.

15. Ibidem.

16. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio, 11.

17. João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 3.

18. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 5.

19. Leão XIII, Carta enc. Rerum novarum, 41.

20. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 23.

21. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 3.

22. João Paulo II, Carta enc. Novo millennio ineunte, 31.

 

 

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