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PONTIFÍCIO CONSELHO «IUSTITIA ET PAX»

NOTA DA SANTA SÉ SOBRE FINANÇAS E DESENVOLVIMENTO
NA VIGÍLIA DA CONFERÊNCIA DA ONU EM DOHA

Financiamento e desenvolvimento

Importância da Conferência

1. A próxima Conferência internacional sobre "Financing for Development to review the Implementation of the Monterrey Consensus", que terá lugar em Doha de 29 de Novembro a 2 de Dezembro de 2008, representa o ponto de chegada de um processo de revisão, promovido pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas e com a participação da sociedade civil, dos conteúdos e da actuação do Documento sobre Financiamento para o Desenvolvimento, aprovado em 2002 em Monterrey o chamado "Monterrey Consensus". Esse documento incluía seis capítulos sobre grandes questões essenciais para financiar o desenvolvimento: a mobilização dos recursos internos; os fluxos de capitais privados; o comércio internacional; as ajudas públicas ao desenvolvimento; a questão da dívida externa; e última, mas não menos importante, a questão sistemática a respeito das modalidades para dar força e coerência ao sistema monetário, financeiro e comercial global a favor do desenvolvimento.

Em conformidade com os procedimentos das Nações Unidas, os trabalhos de revisão levaram, no decurso dos primeiros meses de 2008, à redacção de um esboço de um novo documento (o "Doha Draft Outcome Document"), que é gradualmente debatido e emendado, com a finalidade de poder concluir a Conferência de Doha com um texto que reúna o consenso de todos os participantes.

A este laborioso processo de negociação sobrepôs-se, ao longo dos últimos meses, a precipitação da crise financeira global que teve origem no mercado dos empréstimos subprime nos Estados Unidos da América. Não obstante a sua longa gestação, no início de Setembro a crise estendeu-se até envolver novos sectores do sistema financeiro e a pôr em dificuldade um número crescente de países, cuja situação financeira, na ausência do choque externo, não parecia apresentar problemas de sustentabilidade.

Portanto, ao aumento dos preços agrícolas e energéticos que se verificou nos primeiros meses de 2008, acrescentou-se uma crise financeira sob certos aspectos dramática, com consequências assaz negativas: sobretudo o tema do financiamento para o desenvolvimento corre o risco de ser posto em segundo plano.

2. Nesta situação, é indispensável que os governos e as instituições financeiras internacionais ajam a fim de contrastar o ulterior difundir-se da actual crise financeira: com efeito, muitos países introduziram decisões radicalmente opostas à tendência, predominante até a um passado recente, de confiar o funcionamento do mercado financeiro à sua capacidade de auto-regulamentação. Em síntese, os governos dos países atingidos pela crise adoptaram uma variedade de providências que comportam um retorno maciço do sector público àqueles mesmos mercados financeiros que, nas últimas décadas, tinham sido desregulamentados, privatizados e liberalizados.

Dado que uma acção política deste alcance tem maiores probabilidades de bom êxito se os países não procederem de modo desordenado, mas se coordenarem as suas iniciativas, foi convocado urgentemente para o dia 15 de Novembro um encontro dos grandes países: o chamado G-20, que contou com a participação de significativos países emergentes. Uma vez que o G-20 foi realizado duas semanas antes da Conferência de Doha, promovida pelas Nações Unidas, os numerosíssimos países que não participaram no encontro temem, não sem uma certa razão, que o primeiro acontecimento, que envolveu somente um grupo limitado de países, mas atraiu toda a atenção da opinião pública internacional, possa privar de impacto político a Conferência de Doha.

Por conseguinte, existem dois grandes grandes encontros mundiais, muito próximos entre si, com um tema semelhante as finanças e a sua crise, as finanças e o desenvolvimento embora sejam caracterizados por significados políticos e funções muito diferentes. Ambos os encontros conservam a sua importância.

Os bons votos de todos é por que, de qualquer forma, os países que se reuniram em Washington no dia 15 de Novembro tenham na devida consideração a Conferência de Doha e favoreçam o seu bom êxito. Com efeito, ela não tem apenas a finalidade de alcançar um consenso formal intergovernamental sobre os seis temas principais já presentes no "Monterrey Consensus", mas também a de amadurecer progressivamente um sentimento coral, uma avaliação compartilhada sobre aquelas que são identificadas como questões emergentes em matéria de finanças para o desenvolvimento.

Se é indispensável enfrentar, também no plano político, as emergências financeiras que se apresentam, é igualmente importante considerar com atenção o quadro integral e os nexos entre os problemas, não só do ponto de vista dos países economicamente importantes, mas no contexto de uma perspectiva tendencialmente global. Nem sempre a realidade mais urgente é também a mais importante! Aliás, reordenar as prioridades é tanto mais necessário, quando mais difícil se tornou a situação.

Indubitavelmente, chegou-se à emergência financeira de hoje depois de um longo período em que, forçados pelo objectivo imediato de alcançar resultados financeiros a curso prazo, foram descuidadas as dimensões próprias das finanças: efectivamente, a sua verdadeira natureza consiste em favorecer a utilização dos recursos poupados quando eles beneficiam a economia real, o bem-estar, o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens (cf. Paulo VI, Populorum progressio, 14). Portanto, a Conferência de Doha constitui uma ocasião que a comunidade internacional não deve perder para voltar a pôr no centro questões fundamentais extremamente importantes para o bem comum da humanidade: o financiamento para o desenvolvimento é uma delas.

As principais questões apresentadas pelo "Draft Document"

3. Com referência ao "Draft Document", parece oportuno considerá-lo tendo presente as duas faces da actual crise financeira, ou seja, por um lado a emergência que se criou nos mercados desenvolvidos e, por outro, a situação de inadequação crónica dos recursos destinados a sustentar o desenvolvimento: ambas apresentam uma questão moral iniludível.

Num momento de crise como o actual, é apropriado formular interrogações que, quando tudo parece funcionar, seriam subestimadas ou ridicularizadas. Como foi que se chegou a esta situação desastrosa, depois de uma década em que se multiplicaram os discursos sobre a ética dos negócios e das finanças, e em que se difundiu a adopção de códigos éticos? Por que não se deu demasiada importância aos episódios que deveriam levar a reflexão?

A resposta a estas perguntas não pode deixar de pôr em evidência o modo como a dimensão ética da economia e das finanças não é algo de acessório, mas de essencial, e deve ter-se constantemente em consideração e incidir de forma real, se se tencionam promover dinâmicas económicas e financeiras que sejam correctas, clarividentes e fecundas.

Nesta perspectiva a doutrina social da Igreja, com a rica variedade dos seus princípios morais, pode e deve oferecer uma contribuição de realismo e de esperança, quer aos problemas hoje em questão, como a crise financeira, quer aos problemas que, embora sejam de importância vital para a maioria do mundo, não recebem a atenção que merecem. Trata-se da necessidade de um novo pacto para refundar o sistema financeiro internacional; da questão dos centros financeiros "offshore" e do nexo entre financiamento do desenvolvimento e fiscalização; do mercado financeiro e das regras; e do papel da sociedade civil no financiamento do desenvolvimento.

Um novo "pacto" financeiro internacional

3.a. A actual crise financeira é essencialmente uma crise de confiança. Já se reconhecem entre as causas da crise, tanto o uso excessivo da alavanca financeira por parte dos agentes, como a consideração inadequada dos elementos perigosos que ela comporta. Sobretudo, reconhece-se a separação entre a necessidade que as finanças desempenhem a sua função "real" de ponto entre o presente e o futuro, e o horizonte temporal de referência dos agentes, substancialmente homologado no presente. Por outras palavras, a crise financeira global tornou urgente a reflexão e a acção sobre o sexto ponto do "Draft Document", ou seja, sobre as questões sistemáticas.

Estamos diante da necessidade de uma simples revisão, ou de uma verdadeira e própria refundação do sistema das instituições económicas e financeiras internacionais? Muitos temas, públicos e privados nacionais e internacionais, exigem uma espécie de nova Bretton Woods. Para além da expressão utilizada, indubitavelmente a crise trouxe de novo à superfície a urgência de encontrar novas formas de coordenação internacional em matérias monetária, financeira e comercial.

Hoje parece claro que a soberania nacional é insuficiente; até os grandes países estão conscientes do facto de que não é possível alcançar as finalidades nacionais contando unicamente com as políticas internas: acordos, regras e instituições internacionais são absolutamente necessários. É preciso evitar que se active a cadeia do proteccionismo recíproco; pelo contrário, devem-se revigorar as práticas de cooperação em matéria de transparência e de vigilância sobre o sistema financeiro. É mesmo possível alcançar soluções de "soberania compartilhada", como demonstra a história da integração europeia, a partir de problemas concretos, no contexto de uma visão de paz e de prosperidade, arraigada em valores compartilhados.

Por conseguinte, também quando se redefinem as políticas e as instituições internacionais apresenta-se uma questão moral de grande relevância. Em particular, é importante que o necessário confronto político entre os países "mais ricos" não leve a soluções fundamentadas sobre acordos exclusivos, mas relance um espaço de cooperação aberto e tendencialmente inclusivo. Este espaço inclusivo de cooperação é particularmente relevante em matéria de finanças para o desenvolvimento.

Os fluxos financeiros que ligam os países desenvolvidos aos países de baixa renda apresentam pelo menos dois elementos paradoxais. O primeiro é representado pelo facto de que no sistema global são os países "pobres" que financiam os países "ricos", que recebem recursos provenientes tanto das fugas de capital privado, como das decisões governamentais de separar reservas oficiais sob forma de actividades financeiras "seguras", inseridas nos mercados financeiramente evoluídos ou nos mercados "offshore". O segundo paradoxo é que as remessas dos emigrantes ou seja, do componente menos "liberalizado" dos processos de globalização comportam um fluxo de recursos que, a nível macro, superam amplamente os fluxos de ajuda pública destinada ao desenvolvimento. É como dizer que os pobres do "Sul" financiam os ricos do "Norte", e os próprios pobres do "Sul" devem emigrar e trabalhar no "Norte" para sustentar as suas famílias no "Sul".

Os centros financeiros "offshore"

3.b. Para realizar este novo pacto financeiro internacional, um primeiro passo necessário é considerar atentamente o papel, escondido mas crucial, do sistema financeiro "offshore" nos dois aspectos da actual problemática financeira global acima descrita: a emergência da crise global e a inadequação das finanças para o desenvolvimento.

Os mercados "offshore" constituíram um elo importante quer na transmissão da actual crise financeira, quer no facto de ter sustentado uma trama de práticas económicas e financeiras insensatas: fugas de capital de proporções gigantescas, fluxos "legais" motivados por finalidades de evasão fiscal e orientados também através da sobre/subfacturação dos fluxos comerciais internacionais, da reciclagem das rendas derivantes de actividades ilegais. Os cálculos da quantia da riqueza detida nos centros "offshore" são de difícil avaliação, mas bastante impressionantes se se confirmassem as informações em circulação: afirma-se que um vasto número de grupos e de indivíduos deteriam aplicações financeiras nos centros "offshore", que poderiam render cerca de 860 biliões de dólares por ano, e que corresponderiam a uma malograda receita fiscal de 255 biliões de dólares: mais de três vezes a quantia global da ajuda pública destinada ao desenvolvimento por parte dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCSE).

Uma vez que o financiamento público para o desenvolvimento não pode deixar de derivar da arrecadação fiscal, ele torna-se mais crítico do que nunca na época da globalização. Com efeito, os processos de globalização mudaram a composição da taxação não só de directa para indirecta (com a provável consequência de uma menor "progressividade" dos impostos, ou seja, de uma menor capacidade de pesar percentualmente mais sobre aqueles que dispõem de rendas mais elevadas), mas sobretudo comportaram uma mudança da taxação do capital para a taxação do trabalho.

Debilita-se a arrecadação fiscal sobre as actividades empresariais maiores e mais móveis no campo internacional, ou que podem recorrer facilmente aos centros "offshore". E tributam-se, ao contrário, em maior medida os factos produtivos menos "móveis" e que dificilmente podem evitar o ónus fiscal, ou seja, os trabalhadores e as pequenas empresas.

Estes pontos são politicamente muito complicados. Enfrentá-los significa incidir directamente sobre a esfera da soberania fiscal nacional. O "Draft Document" fala sobre isto e, no ponto 10, propõe que se revigore a cooperação internacional em matéria fiscal, acima de tudo em vista de um drástico redimensionamento das práticas financeiras "offshore".

Regulamentação do mercado financeiro

3.c. A crise actual amadureceu num contexto decisório em que o horizonte temporal dos agentes financeiros era extremamente breve e em que a confiança ingrediente essencial do "crédito" dependia mais dos mecanismos do mercado que dos relacionamentos entre os parceiros. Não é por acaso que a confiança definhou precisamente no sector que era considerado "seguro" por antonomásia, ou seja, as transacções interbancárias; no entanto, sem esta confiança tudo se bloqueia, inclusivamente a possibilidade de um normal financiamento das empresas produtivas. Com efeito, as crises financeiras e as suas consequências têm como componente a expectativa de que o clima financeiro chegue a piorar. Tudo isto induz os agentes a comportar-se de um modo que torna mais provável o pioramento efectivo da situação, com um previsível efeito cumulativo. Com a crise debelou-se repentinamente a confiança fideísta depositada no mercado, entendido como mecanismo capaz de auto-regular-se e de gerar desenvolvimento para todos.
A situação actual é de emergência, porque se adiou a abordagem de algumas questões importantes: o seguimento dos movimentos bancários, a adequada prestação de contas das operações sobre os novos instrumentos financeiros e a cuidadosa avaliação do risco. Determinadas autoridades, de modo especial dos países financeiramente mais evoluídos, adiaram decisões pontuais, impelidos pelas vantagens económicas que derivam do acolhimento de uma forte indústria financeira, vantagens que perduram enquanto dura a fase de euforia financeira.

As próprias instituições financeiras internacionais não são dotadas do mandato e dos instrumentos necessários para enfrentar com tempestividade tais questões. Em geral, julgou-se que bastasse o "mercado" para dar o justo preço ao risco.

Os mercados financeiros não podem agir sem confiança; e sem transparência e sem regras, não pode haver confiança. Por conseguinte, o bom funcionamento do mercado exige um importante papel do Estado e, onde é apropriado, da comunidade internacional para fixar e fazer respeitar regras de transparência e de prudência. No entanto, deve-se recordar que nenhuma intervenção de regulação pode "garantir" a sua eficácia prescindindo da consciência moral bem formada e da responsabilidade quotidiana dos agentes do mercado, especialmente dos empresários e dos grandes agentes financeiros.

As regras do presente, tendo sido delineadas segundo a experiência do passado, não necessariamente preservam contra os riscos do futuro. Assim, embora também existam boas estruturas e boas regras que a ajudam, é necessário recordar que sozinhas elas não são suficientes, pois o homem jamais pode ser mudado ou redimido simplesmente a partir de fora.

É necessário alcançar o ser moral mais profundo das pessoas, é preciso uma educação real ao exercício da responsabilidade em relação ao bem de todos, por parte de todos os indivíduos, a todos os níveis: agentes financeiros, famílias, empresas, instituições financeiras, autoridades públicas e sociedade civil.

Esta educação à responsabilidade pode encontrar um fundamento sólido em alguns princípios indicados pela doutrina social da Igreja, que são património de todos e fundamento de toda a vida social: o bem comum universal, o destino universal dos bens e a prioridade do trabalho sobre o capital.

Em última análise, a crise financeira é o resultado de uma práxis quotidiana que tinha a sua fortaleza na absoluta "prioridade do capital" em relação ao trabalho inclusive o trabalho, alienado, dos próprios agentes financeiros (horas de trabalho extremamente prolongadas e cansativas, e limitadíssimo horizonte temporal de referência para as decisões). É também o resultado de uma práxis deturpada, pela qual se empresta de maior boa vontade a quem é "demasiado grande para fracassar", e não tanto a quem assume o risco de criar ocasiões reais de desenvolvimento.

Papel da sociedade civil no financiamento para o desenvolvimento

3.d. As finanças para o desenvolvimento exige que se enfrente tanto o tema da ajuda pública ao desenvolvimento, como o papel das outras protagonistas: pessoas, empresas e organizações. De modo particular, a sociedade civil não só desempenha um importante papel activo na cooperação para o desenvolvimento, mas ela mesma cumpre uma função significativa também no financiamento para o desenvolvimento. E fá-lo, em primeiro lugar, através da contribuição voluntária de pessoa a pessoa, como nas remessas dos emigrantes, ou através de formas organizativas relativamente simples (pense-se na adopção à distância). Além disso, existem os recursos para o desenvolvimento, postos em movimento pelas empresas, no exercício activo da sua própria responsabilidade social; e aquelas que, às vezes bastante conspícuas, são destinadas por parte de importantes fundações.

Também a adopção de comportamentos responsáveis em matéria de consumo e de investimento constitui um importante recurso para o desenvolvimento. O difundir-se de tais comportamentos responsáveis, do ponto de vista dos efeitos materiais, pode fazer a diferença sobre o funcionamento de determinados mercados em particular; no entanto, a sua importância está sobretudo no facto de que eles expressam uma participação concreta da parte das pessoas enquanto consumidores, enquanto investidores da poupança familiar, ou então enquanto responsáveis pelas decisões relativas às estratégias empresariais na possibilidade de que os mais pobres saiam da sua condição de pobreza.

Crise financeira e ajudas públicas para o desenvolvimento

4. A preocupação pela emergência financeira que teve origem nos mercados maduros pode efectivamente ofuscar a necessidade de focalizar as finanças para o desenvolvimento. É razoável pensar que a ajuda pública ao desenvolvimento, que deriva de atribuições orçamentárias que cada país estabelece anualmente, sofrerá por causa dos ingentes recursos públicos necessários para bloquear a emergência da crise financeira. E isto é, inquestionavelmente, um mal. Um financiamento do desenvolvimento adequado exige um horizonte a longo prazo: é necessário que os recursos afluam de modo previsível, em condições favoráveis para financiar obras que por vezes requerem muito tempo antes de produzir benefício para a população local.

Todavia, a emergência financeira ligada ao breve período e a "normalidade" do financiamento a longo prazo estão estreitamente vinculadas entre si, quer negativa como positivamente: existe, e deve ser promovida com tenacidade, a possibilidade de contribuir para uma saída sustentável da crise financeira, também construindo as condições para que as economias que se geram sejam orientadas verdadeiramente para o desenvolvimento, ou seja, para a criação de ocasiões de trabalho. É suficiente pensar na existência das numerosas necessidades insatisfeitas, de modo especial nos países de baixa renda: tais carências são o outro rosto das ocasiões de trabalho que é possível, e portanto obrigatório, criar.

Para apresentar outros elementos que podem sustentar o bom senso deste caminho "real" de saída da crise "financeira", podemos recordar que as três "crises" de 2008 a crise alimentar, a crise energética e a crise financeira estão estreitamente ligadas entre si. A expectativa de preços crescentes dos produtos agrícolas e energéticos (expectativa sob certos aspectos fisiológica: pensa-se na maior exigência de alimentos e de combustíveis em países como a China e a Índia) produziu uma corrida ao abastecimento e à compra de "futures", ou seja, de promessas de entrega futura a um determinado preço. Este comportamento, por sua vez, alimentou um aumento dos preços que atraiu não só os futuros utilizadores de produtos primários, mas também agentes financeiros que, numa perspectiva puramente especulativa, apostaram na possibilidade de um ulterior aumento dos preços.

Pois bem, estes comportamentos arriscados tendem a sobressair de modo anormal quando nos mercados financeiros existe muita demasiada disponibilidade de crédito. Não é por acaso que a actual crise financeira, que se manifesta principalmente como extrema dificuldade em obter crédito, trouxe consigo uma diminuição do preço dos produtos primários e sobretudo do petróleo. Compreende-se que, não obstante seja necessário enfrentar os problemas "um de cada vez", é perigoso fazê-lo sem considerar de maneira lúcida o contexto global e as conexões existentes entre os próprios problemas. Provavelmente, a crise financeira "tirará" recursos à ajuda pública destinada ao desenvolvimento; e no entanto, só destinando recursos públicos, mas também privados ao "verdadeiro" desenvolvimento será possível construir um sistema financeiro sadio, capaz de render de forma autêntica, porque os recursos realmente sustentaram o trabalho e a economia.

Os actuais investimentos directos nos países pobres

5. Em geral, a maioria dos investimentos estrangeiros directos continua a referir-se aos países avançados, quer como proveniência quer como destino, embora nos últimos anos se tenham observado dois fenómenos decididamente novos. O primeiro é a afirmação de investimentos estrangeiros directos de proveniência dos países "emergentes", muitas vezes motivados pela finalidade de revigorar a presença da empresa investidora na sua própria macrorregião portanto, trata-se de investimentos Sul-Sul, destinados a países de média ou baixa renda. O segundo diz respeito ao crescimento significativo dos fluxos de investimento transcontinentais, destinados a determinados países de baixa renda, normalmente dotados de importantes recursos minerários ou energéticos; alguns deles são efectuados pelos chamados "fundos soberanos" e, por conseguinte, apresentam o dúplice valor de investimento económico e de importante vínculo geopolítico.

O modo de agir em vista de incrementar os investimentos estrangeiros directos é o tema do segundo capítulo do "Draft Document", que muito oportunamente sublinha o facto de que é necessário considerar de maneira atenta também os aspectos qualitativos do investimento. Com efeito, é preciso agir com cautela antes de interpretar os fluxos de capital rumo aos países como um sinal inequivocamente positivo, e portanto procurar incrementar simplesmente a quantidade. Em muitos casos, trata-se com efeito de importantes ocasiões de crescimento económico e de desenvolvimento social; noutros, não é bem assim. Efectivamente, existem investimentos que comportam o compromisso e a formação dos trabalhadores locais, a transferência de tecnologia e a difusão de práticas administrativas responsáveis; mas existem também investimentos que se limitam a valorizar os recursos minerários em benefício de poucos da elite política ou económica local e, naturalmente, do investidor estrangeiro.

Cooperação financeira para o desenvolvimento

6. A seguir à Conferência de Monterrey, foram dados alguns significativos passos em frente, buscando algumas das direcções indicadas pelo "Monterrey Consensus". Na "Action against hunger and poverty", inicialmente promovida por determinados países desenvolvidos e países em vias de desenvolvimento, e sucessivamente feita própria por numerosos Estados, foram identificadas diversas e possíveis fontes inovativas de financiamento: uma taxa de solidariedade a aplicar às tarifas aéreas; a redução daquela evasão fiscal que se tornou possível graças à existência de paraísos fiscais; a mobilização das remessas dos emigrantes para o desenvolvimento local dos países de destino com iniciativas, por exemplo, de microcrédito; a taxação das transacções em moeda e/ou do comércio armamentista; a criação de instrumentos inovativos de empréstimo como a "International Financial Facility"; e a emissão por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI) de direitos especiais de arrecadação; a contribuição voluntária associada à utilização de cartões de crédito; o investimento financeiro em "fundos éticos"; e a angariação de fundos através de lotarias de solidariedade.

Algumas destas propostas foram parcialmente realizadas. É o caso do projecto piloto para a arrecadação de solidariedade sobre as tarifas aéreas, já em execução em alguns Estados e destinada a um fundo para a aquisição de remédios contra a malária, tuberculose e o VIH/SIDA, gerido directamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda em 2006, a proposta para criar uma "International Financial Facility" traduziu-se na activação da IFFI (IFF for immunization), à qual aderiu um certo número de países. Substancialmente, tratou-se da emissão de títulos públicos internacionais, que foram inseridos nos mercados financeiros e permitiram angariar recursos privados para o financiamento de programas de vacinação. Os países que emitiram os títulos assumem o ónus para os juros e para a futura restituição dos fundos recebidos, comprometendo-se reciprocamente em oferecer recursos destinados ao desenvolvimento; este compromisso é efectivamente credível, enquanto o seu eventual fracasso exporia os países a uma perda de reputação nos mercados financeiros internacionais, dos quais dependem para o financiamento do seu déficit de balanço. Todas estas iniciativas têm em comum o facto de separar a recuperação dos recursos financeiros para o desenvolvimento mediante a taxação com decisões de balanço público dos países singularmente.

7. Porém, não obstante os progressos, a cooperação financeira para o desenvolvimento ainda representa um problema enorme. Além disso, muitos outros âmbitos de acção incluídos no "Monterrey Consensus" ainda não viram qualquer progresso; isto vale sobretudo a propósito das questões sistemáticas e em particular da coerência das políticas económicas internacionais. Pense-se, por exemplo, no nexo entre as políticas de ajuda ao desenvolvimento e nas políticas comerciais dos países avançados: as diferentes formas de proteccionismo aberto ou oculto, assim como as persistentes limitações ao acesso das exportações dos países pobres nos mercados dos países mais ricos, constituem um obstáculo enorme para o desenvolvimento. As políticas nacionais permanecem fortemente incoerentes: dá-se com uma mão, e com a outra tira-se.

Uma última, importante cautela: é necessário prestar atenção para não confundir os meios (os recursos financeiros) e a finalidade, ou seja, o desenvolvimento. Não é suficiente predispor uma adequada quantia de financiamento para pensar em alcançar, de modo mecânico, o desenvolvimento. Ele não é tanto o "resultado" que se encontrará no final, mas sim o caminho que dia após dia é traçado pelas opções concretas de múltiplos actores: governos doadores e receptores, organizações não governamentais e comunidades locais. No que diz respeito à ajuda pública ao desenvolvimento o objecto principal da Conferência de Doha, que empenhará in primis os Estados deve-se recordar que a comunidade internacional recentemente enfrentou, na Conferência de Acra, a questão da eficácia das ajudas (aid effectiveness).

Hoje, a tendência preponderante é a de considerar o canal "de Estado a Estado", o chamado budget support, como o caminho mais eficaz para fazer com que os recursos cheguem aos países de baixo rendimento. Esta tendência deve ser considerada com uma certa preocupação, porque inclui o risco de uma "burocratização" das políticas nacionais de luta contra a pobreza e de um redimensionamento dos recursos disponíveis para as várias formas de inciativa social local, tanto da parte das organizações da sociedade civil, como da parte de realidades locais arraigadas no território, como as faith based organizations. E no entanto, estas realidades representam as verdadeiras protagonistas do desenvolvimento entendido como percurso que se deve traçar dia após dia.

A África e o financiamento do desenvolvimento

8. É necessário prestar uma atenção particular ao Continente africano, onde o mapa do desenvolvimento registra fortes desigualdades. Na África, a situação é diferente de país a país; aliás, observa-se uma tendência à polarização entre situações de bom êxito na obtenção de recursos e da sua frutificação, e situações de total marginalização. Por exemplo, só poucos países africanos atraem investimentos estrangeiros directos não exclusivamente interessados na exploração dos recursos minerários ou energéticos. Depende muito da situação interna de cada um dos países; segundo os termos do "Monterrey Consensus", da capacidade de mobilizar recursos internos e de lutar contra fugas de capital, evasão fiscal e corrupção.

Além disso, é evidente que em situações de conflito armado infelizmente numerosas na África a dimensão económica do desenvolvimento torna-se simplesmente improponível.

Quanto ao perdão da dívida externa, progressos foram alcançados; todavia, os recursos para a eliminação da dívida raramente foram adicionais em relação aos fluxos de ajuda, e isto comportou efeitos de recomposição dos balanços públicos sem um real incremento dos recursos disponíveis para as acções de luta contra a pobreza.

Dois pontos devem ser oportunamente salientados. Um diz respeito às opções de política internacional dos governos africanos: deve-se apoiar a crescente vontade de cooperação internacional Sul-Sul, num continente onde adquirir uma certa familiaridade com a cooperação internacional poderia contribuir para orientar preventivamente os conflitos num espaço de negociação incruento. O segundo refere-se às opções de política interna, em matéria de luta contra a pobreza e de desenvolvimento: é necessário que sejamos promotores convictos da solução solidária, que valorize e reforce as formas de resposta às necessidades que nascem "a partir de dentro" da sociedade africana, que possui um grande património de cultura solidária que sabe manifestar-se com uma extraordinária força de testemunho.

A experiência de cooperação internacional para o desenvolvimento já é suficientemente ampla para permitir concluir que políticas e recursos "vindos do alto" podem produzir efeitos benéficos imediatos, mas sozinhos não oferecem respostas adequadas para sair, de modo sustentável, da pobreza. Os princípios de subsidiariedade e de solidariedade, tão queridos à doutrina social da Igreja, podem inspirar um desenvolvimento autêntico, no sinal de um humanismo integral e solidário.

Vaticano, 18 de Novembro de 2008.

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