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SECRETARIA DE ESTADO

HOMILIA DO CARDEAL ANGELO SODANO,
LEGADO PONTIFÍCIO, NA ABERTURA DO
46° CONGRESSO EUCARÍSTICO INTERNACIONAL

Wrocław, 25 de Maio de 1997

 

Senhores Cardeais e distintas Autoridades
Venerados Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio
Irmãos e Irmãs no Senhor!

«Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt. 28, 20).

Esta promessa de Jesus, que o Evangelho há pouco proclamado propôs à nossa meditação, enche-nos de esperança. Ela é a força da Igreja no seu caminho ao longo dos séculos. É-me grato escutá-la de novo convosco, na abertura solene deste 46° Congresso Eucarístico Internacional, enquanto desempenho o venerado encargo de vos trazer a saudação do Santo Padre, à espera de que ele mesmo venha pessoalmente concluir este evento de graça.

1. Eu estarei convosco!

Tendo já chegado ao limiar do Terceiro Milénio, podemos facilmente captar a verdade desta palavra de Cristo, verificando-a nas complexas vicissitudes de dois mil anos de história. Quantas vezes a Igreja fez a experiência da barca entre as ondas em tempestade! Mas a promessa de Cristo não foi desmentida.

Hoje, voltamos a escutá-la com emoção, nesta terra que conheceu, nos séculos, inúmeras provas, enfrentadas e superadas com a força da fé. Ao reunir-se espiritualmente aqui, de todos os Continentes, a Igreja vem dar graças pela nova liberdade de que goza nestas regiões, e invocar para a sociedade inteira o dom de um pleno desenvolvimento daquela autêntica liberdade que só Cristo sabe dar.

Eu estarei sempre convosco!

Renovamos a nossa fé nesta presença misteriosa, que se exprime de muitos modos, mas encontra precisamente na Eucaristia uma realização privilegiada.

2. Adoramos Cristo na presença criadora que Ele, Verbo eterno, compartilha com o Pai e o Espírito Santo. É a presença que tirou o mundo do nada e continuamente o sustém no ser. Em Cristo, palavra e sabedoria do Pai, foram criadas todas as coisas (Jo. 1, 3). «Ele existe antes de todas as coisas e todas têm nÂ’Ele a sua subsistência» (Col. 1, 17). É a presença cósmica.

Reconhecemos a Sua presença na Sagrada Escritura, não só no Novo Testamento, mas também, por mais que seja de maneira oculta, no Antigo Testamento. A Palavra inspirada está inteiramente impregnada do Seu mistério. «Bebe — dizia Santo Ambrósio — dos dois cálices, do Antigo e do Novo Testamento, porque em ambos bebes Cristo » (Explanatio ps. I, 33). É a presença bíblica.

Contemplamos a presença de Cristo na história. Com a encarnação Ele marcou o calendário dos homens, deu um «antes» e um «depois» à história. Mas ao mesmo tempo, em virtude da Sua divindade, Ele é «contemporâneo» de todas as gerações. É a presença histórica.

Perscrutamos, com o olhar da fé, a misteriosa presença que Cristo realiza, com o Pai e o Espírito Santo, na alma de cada justo. Ele mesmo nos deu esta certeza consoladora: «Se alguém Me ama, guardará a Minha Palavra: Meu Pai amá-lo-á e viremos a ele e faremos nele morada» (Jo. 14, 23). É a presença mística.

Admiramos depois a especial presença de Cristo na Sua Igreja. Ela é o Seu corpo, e Ele guia-a e sustenta-a como Cabeça e Pastor. É Ele que actua através dos sacramentos. Ele faz-Se particularmente próximo dos discípulos que vivem em comunhão fraterna: «lá onde estiverem dois ou três reunidos no Meu nome, Eu estou no meio deles» (cf. Mt. 18, 20). É a presença eclesial.

E como esquecer, por fim, a presença de Cristo nos irmãos que sofrem? Com eles até mesmo Se identifica: «Tive fome e destes-Me de comer... tive sede e destes-Me de beber...» (Mt. 25, 35). É a presença humana.

3. Muitas são, portanto, as vias pelas quais Cristo Se torna presente. Mas dentre todas elas, eis-nos a presença eucarística. Sob as espécies do pão e do vinho consagrados está Cristo na plenitude da Sua divindade e da Sua humanidade.

Mysterium fidei! O primeiro anúncio deste mistério causou nos ouvintes de Jesus uma viva reacção de incredulidade: como pode Ele dar-nos a comer a Sua carne? Mas Jesus reafirmou de maneira inequivocável: «a Minha carne é, em verdade, uma comida e o Meu sangue é, em verdade, uma bebida» (Jo. 6, 55). Precisamente aqui está o milagre da Eucaristia.

Diante de um semelhante dom, a alma não pode senão desfazer-se na acção de graças e no louvor: «Pange, lingua, gloriosi corporis mysterium...». Precisamente esta necessidade de louvor está na origem dos Congressos Eucarísticos, iniciados em Lila, na França, em 1881, com o encorajamento do Papa Leão XIII.

Passou mais de um século desde aquele primeiro Congresso. Muitos outros foram celebrados, enquanto sobre o cenário europeu e mundial se verificaram eventos grandiosos, transformações que deveras «marcam uma época ». Na silenciosa presença eucarística, Cristo caminhou connosco, e ainda promete acompanhar-nos rumo às incógnitas do futuro.

4. Na perspectiva do caminho que está à nossa espera, é oportuna a reflexão sobre a liberdade, que é o tema deste Congresso Eucarístico, formulado com a expressiva afirmação de Paulo: «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gál. 5, 1).

É uma escolha temática verdadeiramente feliz. Com efeito, o tema da liberdade encontra o homem contemporâneo de modo particular sensível, embora, infelizmente, mesmo sobre este tema, se registrem muitas ambiguidades.

O que é a liberdade? Qual é a liberdade que Cristo nos dá?

A afirmação paulina da carta aos Gálatas remete à controvérsia que agitou a comunidade primitiva, na qual muitos cristãos provenientes do judaísmo ainda se sentiam ligados à antiga lei mosaica e pretendiam impô-la também aos outros. Paulo insurgiu para defender os espaços da liberdade cristã. Ele reconhecia à antiga lei um carácter pedagógico e propedêutico, mas tinha sido já superada pela novidade de Cristo. O cristão, para o Apóstolo, tem como única lei, a lei da caridade, posta no seu coração pelo Espírito de Deus (cf. Gál. 5, 14).

Com efeito, na medida em que acolhemos Cristo e nos abandonamos ao seu Espírito, novo princípio de vida, a lei já não é algo que se impõe a partir do exterior, mas uma espécie de «conaturalidade » do homem remido com a lógica de Deus. O homem renovado por Cristo evita o mal e faz o bem, não como um servo obrigado pelas ordens de um senhor, mas como um filho impelido apenas pelo amor. Ele sente a casa de Deus Pai como a sua casa, e vive deveras como homem livre.

5. Com tal discurso Paulo vai ao âmago da liberdade, reafirmando um princípio que Jesus mesmo enunciara: «a verdade libertar-vos-á» (Jo. 8, 34). O grande tirano da nossa vida é o pecado, que nos «aliena» a respeito daquilo que nós verdadeiramente somos, cortando as pontes com Deus, fonte da nossa vida.

O nosso tempo, tão sequioso de liberdade, corre o perigo de novas escravidões, precisamente porque esquece esta dimensão interior, diria «qualitativa », da liberdade. Sem dúvida, também as condições e os ordenamentos exteriores da liberdade, no plano cultural, económico e político, têm a sua importância. Uma terra como a polaca, que sofreu as crueldades do totalitarismo, sabe com certeza apreciar o valor de um ordenamento jurídico baseado em princípios de liberdade e de democracia. Mas a história demonstra como são frágeis e ambíguas as instituições libertárias, que se afastam da verdade sobre o homem e da lei de Deus. «Uma democracia sem valores — adverte João Paulo II na Centesimus annus — converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado» (n. 46).

6. No fundo desta problemática percebe- se o nexo profundo que liga Eucaristia e liberdade!

A Eucaristia é libertadora, porque faz habitar dentro do homem o «libertador», o Redentor do homem. Aplicando os frutos da Redenção, subtrai-nos da escravidão do pecado.

A Eucaristia é libertadora num sentido ainda mais radical porque, unindo-nos intimamente a Cristo, nos liberta de algum modo do nosso limite, realizando aquilo a que especialmente a teologia oriental gosta de chamar a «divinização » do homem.

A Eucaristia é libertadora, porque semeia nas nossas relações o germe da solidariedade, abatendo ódios, distâncias e desconfianças. Ela é ao mesmo tempo escola de solidariedade e sinalização de liberdade. Por ela são-nos sugeridos percursos de autêntica libertação também na vida social.

A Eucaristia indica-nos o fundamento seguro dos direitos humanos, ou seja, a dignidade que cada homem possui enquanto ser criado à imagem de Deus.

Com efeito, a Eucaristia é de facto, por assim dizer, o «ósculo» de Deus à sua criatura, e por isso mesmo o grande cântico da dignidade humana. Se Deus, no pão eucarístico, Se faz de algum modo «hóspede» dos seus filhos, seu «alimento», numa intimidade que não tem comparações, isto manifesta, mais do que qualquer outra coisa, como é grande o valor do homem.

7. Sobre isto apoia o direito de liberdade, que compete a cada pessoa humana, e que o Estado não atribui, mas simplesmente reconhece, promovendo-o e regulando-o em relação ao bem comum. É um direito que deve ser reconhecido não só aos indivíduos, mas também às formações sociais nas quais eles se exprimem. Um Congresso Eucarístico Internacional, celebrado nesta amada terra da Polónia, que conheceu na sua história recorrentes e graves violações dos direitos humanos, não pode deixar de ser um hino de liberdade, daquela liberdade autêntica que está muito longe do arbítrio, porque se liga sempre à responsabilidade moral e ao reconhecimento da «verdade» da pessoa humana, à luz do desígnio de Deus.

Não menos exigente é a mensagem que a Eucaristia nos entrega na vertente da solidariedade e da justiça social, condição e expressão duma autêntica liberdade. O pão eucarístico remete necessariamente também à partilha do pão material. É significativo que, no Evangelho de João, a dissertação sobre a Eucaristia esteja ligada com o milagre da multiplicação dos pães, fazendo assim emergir a íntima conexão entre estes dois dons de Cristo: num primeiro tempo, Cristo sacia a fome material de quantos O escutam; num segundo tempo, oferece o Seu próprio corpo, para saciar a fome do espírito e dar a vida eterna (cf. Jo. 6, 54).

Ao celebrar a Eucaristia, a Igreja sente-se interpelada a fazer-se ministra destes dois dons, unindo ao mesmo tempo liturgia e caridade. Não seria crível a celebração eucarística, se não fosse acompanhada da solidariedade com os irmãos mais necessitados. Devemos ter especial consciência disto, neste nosso tempo de contrastes sociais tão estridentes, no qual a economia já «globalizada», deixada muitas vezes somente às leis do lucro, favorece o bem-estar de algumas áreas geográficas e de algumas classes sociais, enquanto em muitas partes do mundo existem homens e crianças aos quais falta até mesmo o necessário. O Santo Padre não se cansa de denunciar este escândalo, fazendo-se eco das palavras de fogo que Paulo escreveu aos cristãos de Corinto (cf. 1 Cor. 11, 17-22).

8. É um grande desafio que a Igreja deve enfrentar. Diante das antigas e novas formas de pobreza, a Eucaristia suscita um projecto de libertação e de solidariedade, o qual os cristãos são chamados a assumir, em diálogo com todos os homens de boa vontade. Projecto certamente laborioso. Com os problemas imensos que estão diante de nós, o desafio é superior às nossas possibilidades. Mas precisamente da Eucaristia haurimos continuamente força e motivos de esperança, tendo confiança na grande promessa de Cristo Ressuscitado: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo».

 

 

 

 

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