The Holy See
back up
Search
riga

DOCUMENTO

A POSIÇÃO DA SANTA SÉ NO CAMPO
DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

 

1) A Santa Sé está persuadida da necessidade de assistir e promover a investigação científica, para o benefício de toda a humanidade. Deste modo, a Santa Sé encoraja ardentemente as investigações que estão a ser levadas a cabo nos campos da medicina e da biologia, tendo em vista a cura das enfermidades e o melhoramento da qualidade de vida de todos, sob a condição de que as mesmas sejam respeitosas da dignidade do ser humano. Este respeito exige que toda a investigação que for inconsistente em relação à dignidade do ser humano, seja moralmente excluída.

2) Existem duas fontes potenciais de células estaminais para a investigação humana: em primeiro lugar, as células estaminais "adultas", que são extraídas do sangue do cordão umbilical, da substância óssea e de outros tecidos; e, em segundo lugar, as células estaminais "embrionárias", que são obtidas através da desagregação dos embriões humanos. A Santa Sé opõe-se à clonagem de embriões humanos que tenham como finalidade a sua destruição, em vista de poder obter células estaminais, mesmo que seja por uma causa nobre, porque é inconsistente em relação ao fundamento e à motivação da investigação biomédica humana, ou seja, naquilo que se refere à dignidade de todo o ser humano. Não obstante, a Santa Sé aplaude e encoraja a investigação que recorre às células estaminais adultas, porque tal prática é plenamente compatível com o respeito pela dignidade do ser humano. A surpreendente utilidade das células estaminais adultas tornou possível o recurso bem sucedido a este género de célula indiferenciada e auto-renovadora, para a cura de diversos tecidos e órgãos humanos (1), de maneira particular para os tratamentos cardíacos após um ataque miocárdico de coração (2). As conquistas terapêuticas múltiplas, que têm sido demonstradas com o recurso às células estaminais adultas, e a promessa de que elas representam também para outras enfermidades, tais como as disfunções neurodegenerativas ou o diabetes, fazem dos esforços em vista de contribuir para este fecundo campo de investigação, uma questão realmente urgente (3). Acima de tudo, concorda-se a nível universal que a utilização de células estaminais adultas não acarreta quaisquer problemáticas éticas.

3) Em contrapartida, a investigação que recorre às células estaminais embrionárias humanas tem sido impedida por algumas importantes dificuldades técnicas (4). As experiências com células estaminais embrionárias ainda não conseguiram produzir nem sequer um único resultado terapêutico a nível não profissional, nem mesmo com exemplares animais (5). Além disso, as células estaminais embrionárias têm causado tumores nos exemplares animais (6) e podem dar origem a formas cancerígenas, se forem administradas em seres humanos doentes (7). Enquanto estes graves perigos não forem eliminados, as experiências com células estaminais embrionárias não poderão ter qualquer aplicação clínica (8). Para além dos problemas técnicos, a necessidade de extrair estas células dos embriões humanos vivos levanta questões éticas de ordem mais elevada.

4) A chamada "clonagem terapêutica", que seria melhor denominada como "clonagem investigativa", dado que ainda estamos longe das aplicações terapêuticas, tem sido proposta com a finalidade de evitar a rejeição imune potencial das células estaminais embrionárias, derivadas de um doador que seja diferente do receptor. Contudo, o recurso às células estaminais embrionárias clonadas acarreta um elevado risco de introduzir nos dontes células de embriões anormais. Já se esclareceu que a maioria dos embriões não humanos, produzidos através da clonagem de transferência nuclear, são anormais e contêm deficiências em diversos dos seus genes (imprimidos e não imprimidos), necessários para o desenvolvimento do primeiro embrião (9). As células estaminais embrionárias tiradas de embriões anormais e impróprios conservam em si os seus "defeitos epigenéticos" e transmitem-nos pelo menos parcialmente às suas células derivadas. Por conseguinte, a transferência destas células estaminais embrionárias para uma pessoa doente seria extremamente perigosa: tais células estaminais podem provocar desordens genéticas ou dar origem a leucemias ou até a tumores cancerígenos. Além disso, a utilização de um macaco como modelo de clonagem, que seria necessário a fim de levar as experiências a determinar um certo nível de segurança, antes de tentar a transferência terapêutica nos seres humanos, ainda deve ser desenvolvido (10).

5) Os benefícios da clonagem terapêutica que derivam para a saúde são teóricos, uma vez que o seu próprio método continua a ser sobretudo uma hipótese. Assim, em última análise, o aumento incessante de hipérboles que exaltam a promessa deste género de investigação podem minar a própria causa que ela tem a intenção de servir (11). Efectivamente, mesmo que se ponham de lado as considerações éticas fundamentais, além das expectativas do próprio doente interessado, a actual condição de "clonagem terapêutica" impede, tanto no presente como no futuro próximo, qualquer aplicação clínica.

6) Os cientistas, os filósofos, os homens políticos e os humanistas concordam sobre a necessidade de proibir internacionalmente a clonagem reprodutiva. Sob um ponto de vista biológico, fomentar o nascimento de embriões humanos clonados seria perigoso para a espécie humana. Esta forma assexual de reprodução evitaria a "mistura" habitual dos genes, que faz com que cada indivíduo seja único no seu genoma, e determinaria de forma arbitrária o genótipo numa configuração específica (12), com as imagináveis consequências genéticas negativas para a estrutura do genoma humano. Além disso, seria proibitivamente arriscado para o clone individual (13). Sob um ponto de vista antropológico, a maioria das pessoas reconhece que a clonagem ofende a dignidade humana. Efectivamente, a clonagem daria vida a uma determinada pessoa, mas através de uma manipulação realizada em laboratórios, numa ordem de pura zootecnologia. Esta pessoa entraria no mundo como uma "cópia" (mesmo que se tratasse de uma cópia somente biológica) de outro ser humano. Enquanto ontologicamente único e digno de respeito, o modo de dar vida a um ser humano clonado caracterizaria tal pessoa mais como um artefacto do que propriamente como um irmão em humanidade; mais como uma substituição do que como um indivíduo singular; mais como o instrumento da vontade de alguém, do que como um fim em si mesmo; mais como um produto de consumo substituível, do que como um acontecimento irrepetível na história humana. Desta maneira, a clonagem leva a herdar também o desrespeito pela dignidade da pessoa humana.

7) Contudo, há pessoas que desejam deixar a perspectiva da "clonagem terapêutica" fora desta proposta de proibição internacional, como se se tratasse de um processo diferente do reprodutivo. A verdade é que a clonagem reprodutiva e a "clonagem terapêutica" ou "investigativa" não são dois tipos diferentes de clonagem: eles recorrem ao mesmo processo técnico de clonagem e só se diferenciam nas finalidades propostas. Através da clonagem reprodutiva, procura-se implantar o embrião clonado no útero de uma mãe "sub-rogada", em vista de "produzir" uma criança; mediante a clonagem "investigativa", procura-se utilizar imediatamente o embrião clonado, sem permitir que o mesmo se desenvolva, elminando-o deste modo no processo. Pode-se até mesmo afirmar que qualquer tipo de clonagem é "reprodutivo" na sua primeira fase, uma vez que, através do processo de clonagem, ela tem que "produzir" um novo organismo individual e autónomo, dotado de uma identidade específica e singular, antes de tentar qualquer outra operação com o recurso àquele mesmo embrião.

8) A "clonagem terapêutica" não é neutra sob o ponto de vista ético. Com efeito, eticamente falando, ela seria até mesmo pior do que a "clonagem reprodutiva". De facto, na "clonagem reprodutiva" ao ser humano recém-produzido, inocente acerca da sua própria origem, dá-se pelo menos a oportunidade de se desenvolver e de nascer. Mas na "clonagem terapêutica", utiliza-se o ser humano recém-produzido como um mero material de laboratório. Este uso instrumental de um ser humano ofende gravemente a dignidade do homem e todo o género humano. O termo "dignidade", como é utilizado neste Documento de apresentação da nossa posição e na Carta da Organização das Nações Unidas, não se refere a um conceito de valor, fundamentado nas capacidades e nos poderes dos indivíduos, nem no valor que os outros lhes possam atribuir, mas é um um valor que pode ser definido como "dignidade atribuída". A noção de "dignidade atribuída" dá lugar a considerações hierárquicas, desiguais, arbitrárias e até mesmo discriminatórias. Aqui, a dignidade é usada para significar o valor intrínseco que é compartilhado de maneira habitual e igual por todos os seres humanos, independentemente das suas condições sociais, intelectuais ou físicas. É esta dignidade que obriga todos nós a respeitar cada ser humano, de qualquer condição que seja, e sobretudo se ele tiver necessidade de protecção ou de cuidado. A dignidade é o fundamento de todos os direitos humanos. Nós temos o dever de respeitar os direitos dos outros, porque primeiro reconhecemos a sua dignidade.

9) A honestidade sugere que, se uma série específica de investigações já demonstrou as condições para o bom êxito e não levanta qualquer questão ética a tal respeito, ela deveria ser continuada, antes de dar início a uma outra série que, por sua vez, tem dado demonstrações de pouca perspectiva de bom êxito, enquanto continua a suscitar preocupações éticas. Os recursos nas investigações biológicas são limitados. A "clonagem terapêutica" é uma teoria que não foi confirmada e que pode realmente tornar-se um dramático desperdício de tempo e de fundos económicos. Por conseguinte, o bom senso e a necessidade de uma investigação elementar, séria e bem orientada interpela a comunidade biomédica do mundo inteiro, a fim de que destine os fundos necessários para uma investigação que possa utilizar as células estaminais "adultas".

10) O mundo não pode seguir dois caminhos diferentes: o caminho daqueles que desejam sacrificar ou comercializar seres humanos em vantagem de poucos privilegiados, e o caminho daqueles que não podem aceitar este abuso. Por amor a si mesma, a humanidade tem necessidade de uma base conjunta: de uma compreensão comum da humanidade e de um entendimento conjunto das bases fundamentais, das quais dependem todas as nossas concepções acerca dos direitos humanos. A Organização das Nações Unidas tem a tarefa urgente de realizar todos os esforços em vista de encontrar este fundamento, de tal maneira que os seres humanos possam ser respeitados por aquilo que realmente são. Promover o projecto em vista da proibição internacional e mundial da clonagem humana faz parte da missão e do dever que cabem à Organização das Nações Unidas.

Vaticano, 27 de Setembro de 2004.

***

Notas

1. Körbing M., Estrov Z., "Adult stem cells for tissue repair a new therapeutic concept?", em: New England Journal of Medicine, 2003, 349, pp. 570-582; Bunting K., Hawley R., "Integrative molecular and developmental biology of adult stem cells", em: Biology of the Cell, 95 (2003), pp. 563-578; Wang J., Kimura T., Asada R., Harada S., Yokota S., Kawamoto Y., Fujimura Y., Tsuji T., Ikehara S., Sonoda Y., 2003a, "SCIDrepopulating cell activity of human cord blood-derived CD34 cells assured by intrabone marrow injection", em: Blood, 101, pp. 2924-2931; Gluckman E., Broxmeyer HE., Auerbach AD. et al. (1989), "Hematopoietic reconstitution in a patient with Fanconi's anemia by means of umbilical-cord blood from an HLA-identical sibling", em: New England Journal of Medicine, 321, pp. 1174-1178.

2. Wollert KC., Meyer GP., Lotz J., Ringes-Lichtenberg S., Lippolt P., Breidenbach C., Fichtner S., Korte T., Hornig B., Messinger D., Arseniev L., Hertenstein B., Ganser A., Drexler H., "Intracoronary autologous bone-marrow cell transfer after myocardial infarction: the BOOST randomized controlled clinical trial", em: Lancet, 2004, 364, pp. 141-148; Beltrami AP., Barlucchi L., Torella D., Baker M., Limana F., Chimenti S., Kasahara H., Rota M., Musso E., Urbanek K., Leri A., Kajstura J., Nadal-Ginard B., Anversa P. 2003, "Adult cardiac stem cells are multipotent and support myocardial regeneration", em: Cell, 114, pp. 763-776; Stamm C., Westphal B., Kleine HD., Petzsch M., Kittner C., Klinge H., Schumichen C., Nienaber CA., Freund M., Steinhoff G., 2003, "Antologous bone-marrow stem-cell transplantation for myocardial regeneration", em: Lancet, 361, pp. 45-46.

3. Cf. por exemplo: Mezey E., Key S., Vogelsang G., Szalayova I., Lange GD., Crain B., 2003, "Transplanted bone marrow generates new neurons in human brains", em: Proceedings of the National Academy of Sciences USA, 100, pp. 1364-1369; Vescovi AL., Martino G., 2003, "Injection of adult neurospheres induces recovery in a chronic model of multiple sclerosis", em: Nature, 422, pp. 688-694; Hess D., Li L., Martin M., Sakano S., Hill D., Strutt B., Thyssen S., Gray DA., Bhatia M., 2003, "Bone marrow-derived stem cells initiate pancreatic regeneration", em: Nat. Biotechnol., 21, pp. 763-770; Horb ME., Shen CN., Tosh D., Slack J.M., 2003, "Experimental conversion of liver to pancreas", em: Curr. Biol., 13, pp. 105-115.

4. Cf. Stojkovic M., Lako M., Strachan T., Murdoch A., "Derivation, growth and applications of human embryonic stem cells", em: Reproduction (2004), 128, pp. 259-267.

5. Freed CR., "Will embryonic stem cells be a useful source of dopamine neurons for transplant into patients with Parkinson's disease", em: Proceedings of the National Academy of Sciences 2002, 99, pp. 1755-1757.

6. Tsai RY., McKay RD., "A nucleolar mechanism controlling cell proliferation in stem cells and cancer cells", em: Genes and Development 2002, 16, pp. 2991-3003; Wakitani S., Takaoka K., Hattori T., Miyazawa N., Iwanaga T., Takeda S., Watanabe TK., Tanigami A., "Embryonic stem cells injected into the mouse knee joint form teratomas and subsequently destroy the joint", em: Rheumatology 2003, 42, pp. 162-165; Erdö F., Bührle C., Blunk J., Hoehn M., Xia Y., Fleischmann B., Föcking M., Küstermann E., Kolossov E., Hescheler J., Hossmann K-A., Trapp T., "Host-dependent tumorigenesis of embryonic stem cell transplantation in experimental stroke", em: Journal of Cerebral Blood Flow and Metabolism, 2003, 23, pp. 780-785.

7. Marx J. "Mutant stem cells may seed cancer", em: Science, 2003, 301, pp. 1308-1310.

8. É preocupador o facto de que estes agentes epigenéticos, que contribuem para o desenvolvimento das células estaminais embrionárias no embrião, são também aqueles que contribuem para o desenvolvimento dos tumores cancerógenos no adulto. Efectivamente, nos tumores têm-se encontrado células estaminais. Normile D., "Cell proliferation. Common control for cancer, stem cells", em: Science, 2002, 298, pág. 1869; Valk-Lingbeek ME., Bruggeman SW., Van Lohuizen M., "Stem cells and cancer: the polycomb connection", em: Cell, 2004, 118, pp. 409-418.

9. Bortvin A., Eggan K., Skaletsky H., Akutsu H., Berry DL., Yanagimachi R., Page DC., Jaenisch R., "Incomplete reactivation of Oct4-related genes in mouse embryos cloned from somatic nuclei", em: Development, 2003, 130, pp. 1673-1680; Mann MR., Chung YG., Nolen LD., Verona RI., Latham KE., Bartolomei MS., "Disruption of imprinted gene methylation and expression in cloned preimplantation stage mouse embryos", em: Biology of Reproduction, 2003, 69, pp. 902-914; Boiani M., Eckardt S., Leu NA., Scholer HR., McLaughlin KJ., "Pluripotency deficit in clones overcome by clone-clone aggregation: epigenetic complementation?", em: EMBO Journal, 2003, 22, pp. 5304-5312; Fulka J., Miyashita N., Nagai T., Ogura A., "Do cloned mammals skip a reprogramming step?", em: Nature Biotechnology, 2004, 22, pp. 25-26; Mann MR., Lee SS., Doherty AS., Verona RI., Nolen LD., Schultz RM., Bartolomei MS., "Selective loss of imprinting in the placenta following preimplantation development in culture", em: Development, 2004, 131, pp. 3727-3735.

10. Simerly C., Dominko T., Navara C., Payne C., Capuano S., Gosman G., Chong KY., Takahashi D., Chace C., Compton D., Hewitson L., Schatten G., "Molecular correlates of primate nuclear transfer failures", em: Science, 2003, 300, pág. 297; Wolf DP., "An opinion on human reproductive cloning", em: Journal of Assisted Reproduction and Genetics, 2001, 18, pp. 474-475.

11. Knight J., "Biologists fear cloning hype will undermine stem-cell research", em: Nature, 2004, 430, pág. 817.

12. Durante a fase meiótica, tem lugar uma segregação de "alleles", com a consequente classificação fortuita de elementos homólogos. Esta "mistura" de genes, que constitui a base para a identidade genética, impede a manifestação de graves anomalias genéticas. Não existe uma "mistura" sadia de genes na clonagem, realizada através da transferência nuclear.

13. Healy DL., Weston G., Pera MF., Rombauts L., "Trounson AO. Human cloning, 2001", em: Human Fertility 2002, 5, pp. 75-77.

 

top