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SECRETARIA DE ESTADO

INTERVENÇÃO DA SANTA SÉ
NA ASSEMBLEIA PLENÁRIA DO CONSELHO EXECUTIVO
DA UNESCO

DISCURSO DE MONS. FRANCESCO FOLLO

Paris, 27 de Abril de 2005

 

Senhor Presidente
do Conselho Executivo
Senhor Director-Geral
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores!

Obrigado por me terdes dado a palavra e principalmente desejo agradecer, em meu nome e em nome da Santa Sé, pelas condolências que a UNESCO me dirigiu por ocasião do falecimento de Sua Santidade o Papa João Paulo II. De facto, o seu falecimento suscitou um profundo sofrimento, não só nos fiéis da Igreja católica, mas também nos homens de todas as religiões e culturas que nele reconheceram uma testemunha verdadeira de paz e um tenaz defensor do diálogo e dos direitos do homem. Desejo também dirigir-vos os meus sentidos agradecimentos pelas felicitações que recebi de todos vós por ocasião da eleição do novo Papa, Sua Santidade Bento XVI, e de modo particular pela homenagem vibrante que lhe foi prestada pelo Presidente do Conselho executivo, Sua Excelência o Sr. Hans-Heinrich Wrede.

O magistério do Papa João Paulo II permanece um pilar tanto na vida da Igreja como na vida internacional, e, nesta perspectiva, permiti que vos apresente algumas reflexões sobre as suas intervenções: em Junho de 1980, por ocasião da sua primeira viagem à França, o Papa João Paulo II fez questão de visitar a UNESCO. Pronunciou um discurso histórico, declarando entre outras coisas: "Vigiai, com todos os meios à vossa disposição, sobre esta soberania fundamental que cada Nação possui em virtude da sua própria cultura. Protegei-a como a pupila dos vossos olhos para o futuro da família humana".

Por este motivo, a minha delegação renova o seu apoio total à feliz iniciativa de um projecto de Convenção à protecção dos conteúdos culturais e das expressões artísticas. Após a Declaração sobre a diversidade cultural, hoje é necessário dispor de um instrumento jurídico mais específico e comprometedor, como uma convenção, a fim de permitir que os diferentes conteúdos culturais e expressões artísticas se tornem factores de progresso, mesmo a nível económico, para todos os povos, sobretudo para os mais desfavorecidos, mas também com a finalidade de evitar que a gestão destes bens que não são absolutamente particulares, tais como os bens culturais, sejam tratados como entidades unicamente económicas. A fim de reconhecer, proteger e promover a especificidade dos conteúdos culturais no seu pluralismo não reductível, é necessária uma instituição cujo papel central seja proteger e promover a cultura: este é precisamente o papel da UNESCO.

A questão muito debatida da dupla natureza, económica e cultural, dos bens e dos serviços culturais tem o mérito de evidenciar que aquilo que circula e se reproduz no âmbito económico não é só o dinheiro, mas também e principalmente, um sentido, valores e uma identidade. Os princípios de respeito dos bens culturais e do apoio recíproco, de solidariedade e cooperação, são os pilares fundamentais desta Convenção, que tem por finalidade, sob um ponto de vista humano, o enriquecimento de todas as culturas.

No célebre discurso que acabei de recordar, João Paulo II afirmou que "os problemas da cultura, da ciência e da educação não se apresentam, na vida das nações e das relações internacionais, de modo independente dos outros problemas da existência humana, como os da paz ou da fome. Os problemas da cultura são condicionados pelas outras dimensões da existência humana, assim como, por sua vez, estes condicionam aqueles". Por isso, "nenhum homem, país nem sistema político do mundo podem permanecer indiferentes diante da "geografia da fome" e das ameaças gigantescas que lhe seguirão se todas as orientações da política económica, e em particular a hierarquia dos investimentos, não mudarem de modo fundamental e radical".

Mas o Papa João Paulo II recordava-nos também que não se pode limitar a questão do pluralismo dos conteúdos e das expressões culturais a um problema de gestão de bens e serviços, isto é, de regulamentação das flutuações de mercado: "Todo o "ter" do homem não é importante para a cultura, nem é um factor gerador de cultura, a não ser na medida em que o homem, por intermédio do seu "saber", pode ao mesmo tempo "ser" mais plenamente como homem, tornar-se mais plenamente homem em todas as dimensões da sua existência, em tudo o que caracteriza a sua humanidade".

Se o "homem é o facto primordial e fundamental da cultura", seria bom, na Convenção, insistir com mais vigor e eficiência sobre o vínculo positivo entre os conteúdos e as identidades culturais. Todos os debates que se realizaram sobre as definições que estão na base desta Convenção poderiam encontrar um ponto de convergência no reconhecimento do facto que a questão da diversidade das expressões culturais é primordialmente uma questão de identidade dos sujeitos, não de objectos a serem perseguidos e enumerados: a criatividade humana multiforme concretiza-se em obras e em produções, mas ao mesmo tempo, transcende-a. Se o desafio fundamental é a identidade cultural, então é legítimo falar de protecção, porque não se trata unicamente de gerar ou favorecer certas produções em desvantagem de outras, mas de permitir que os homens cresçam como seres dotados de liberdade; de igual modo, conseguiremos sentir-nos cidadãos do mundo na medida em que formos membros de comunidades abertas que nos acolheram e que forneceram redes de relações e um plano de "sentido", um estilo e valores concretos. Quando a Igreja afirma e defende os direitos fundamentais da pessoa e das comunidades de pessoas, afirma e defende ao mesmo tempo o direito de cada comunidade de conservar e desenvolver a sua própria cultura, e de a defender das homologações forçadas.

Por outro lado, se a questão da liberdade das pessoas é a questão fundamental, seria oportuno que a Convenção desse mais importância ao papel insubstituível da sociedade civil na gestão da protecção e da promoção da diversidade cultural, sobretudo se se considera que não são os Estados que geram a cultura, mas as forças vivas de livres associações entre os cidadãos.

Reconhecendo a última palavra ao Estado em matéria de garantia, de aplicação da lei e da arbitragem, o papel das instituições educativas como as universidades deve tornar-se um papel de primeiro plano para a promoção da diversidade cultural. As suas iniciativas poderiam aproveitar dos recursos da inteligência, de tempos e de criatividade que muitas vezes são postos à disposição com generosidade mas dos quais raramente se tira o máximo proveito nos projectos de grande alcance.

Nos processos de redacção da Convenção, seria importante tomar também em consideração as propostas da sociedade civil e das ONGs.

Excelências, minhas Senhoras e meus Senhores!

Antes de concluir, gostaria de chamar a vossa atenção para um último aspecto.

Uma reflexão mais profunda sobre a questão da identidade cultural consentiria aperceber-se de que não se pode deixar de considerar a questão religiosa entre os aspectos da diferença cultural. Já realçámos várias vezes este aspecto: evidentemente não podemos limitar a religião a um fenómeno cultural, mas também é evidente que a relação vital entre cultura e religião não pode ser negada, quer sob o ponto de vista que se poderia qualificar genético (todas as culturas têm, de uma forma ou de outra, na sua base uma busca a fim de apreender o transcendente), quer sob o ponto de vista estrutural e antropológico (a relação sagrada e/ou a transcendência, mesmo através de uma negação da última, constitui um elemento fundamental da cultura como representação do mundo).

Seria necessário mencionar a importância da religião, como outros Estados sugeriram, pelo menos no Preâmbulo da Convenção, sem obrigar, em qualquer estado de causa, que esta questão diga respeito também aos aspectos "objectivos" da diversidade cultural. Nas normas de certos Estados, existe um reconhecimento específico dos "bens culturais de interesse religioso", bens que a Igreja católica, assim como outras religiões, consideram testemunhos de fé, veículos de um património de valores e de sensibilidades que não podem reduzir-se unicamente à cultura e que são utilizados para finalidades cultuais e rituais. É preciso observar que a Convenção não considera este tipo de bens e o seu carácter particular. Se, por um lado, reconhecemos facilmente que este documento não é o documento mais apropriado para conter estas questões complexas, por outro, reconhecemos nele uma tendência para ratificar uma concepção da religião que diz respeito unicamente à dimensão privada da existência, sem incidência no campo público. Por conseguinte, Excelências, Senhoras e Senhores fazemos apelo para que no futuro seja dada uma atenção mais atenta ao lugar do aspecto religioso, que não é um simples apêndice na vida das pessoas, mas pertence às suas aspirações legítimas e ao dever de reconhecimento, de justiça e de dignidade de todas as pessoas e de toda a comunidade humana.

Agradeço-vos pela atenção.

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