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 INTERVENÇÃO DO CHEFE DA DELEGAÇÃO DA SANTA SÉ
NA CIMEIRA DA ONU SOBRE OS OBJECTIVOS
 DE DESENVOLVIMENTO DO MILÉNIO

DISCURSO DO CARDEAL PETER K. A. TURKSON
PRESIDENTE DO PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ»

Nova Iorque, 20 de Setembro de 2010

 

Presidente!

Tenho a honra de transmitir as cordiais saudações de Sua Santidade o Papa Bento XVI aos chefes de Estado e de Governo aqui reunidos, nestes dias de trabalho conjunto para um mundo livre da chaga da pobreza extrema e para garantir que todas as crianças, mulheres e homens, em todos os países do mundo, tenham as condições necessárias para a consecução de uma existência livre e digna.

Como sinal de universalidade da mensagem da Igreja católica, Sua Santidade deseja colaborar com homens e mulheres de todo o mundo, tanto nos países industrializados como nos que estão em vias de desenvolvimento, nas culturas quer cristãs quer não cristãs. Por este motivo, o Santo Padre chamou-me a mim, filho da África e da Igreja, para o assistir nas questões relativas à justiça e à paz entre os povos. Assim fazendo, afirma que o cristianismo faz parte da cultura africana, rica de valores humanos fundamentais que contribuem de maneira específica para a questão «humana» dos assuntos globais, não obstante os atrasos nos séculos XX e XXI.

No ano 2000, aprovando à unanimidade a Declaração do Milénio, todos os chefes de Estado junto das Nações Unidas reconheceram que a luta internacional à pobreza não pode limitar-se à gestão das grandes variáveis económicas, como as finanças ou as dívidas externas, o comércio e a ajuda ao desenvolvimento. Antes, a família das Nações reconheceu o valor dos aspectos mais especificamente «humanos» tais como a eliminação da fome, a promoção da educação, a oferta de serviços no campo da saúde e social, a garantia de iguais oportunidades de trabalho e o apoio à administração responsável do meio ambiente.

Os esforços para alcançar os Objectivos do Milénio empenharam toda a comunidade internacional a nível mundial, regional e nacional, apesar dos conflitos armados, das crises financeiras, das diferenças comerciais, das catástrofes naturais e de muitos outros problemas humanos e sociais. Foram feitos progressos de vários modos para diminuir o número de pessoas que vivem abaixo do limite da pobreza absoluta, sobretudo na área da educação primária e das oportunidades iguais para homens e mulheres. Observam-se sinais encorajadores na área do acesso à saúde de base e à água potável.

Contudo, os resultados concentram-se principalmente nas economias «emergentes», que conseguiram alcançar um grau excepcional de progresso nos passados decénios. Infelizmente, menos da metade dos países que sofrem de desnutrição infantil conseguirá eliminar esta chaga até 2015. Não obstante o rápido crescimento económico e o melhoramento dos indicadores sociais em muitos países da África subsariana, esta região, no seu conjunto, continua a ser a que enfrenta o mais alto número de problemas na luta contra a pobreza. Como se isto não fosso o suficiente, até nos países de médio e alto rendimento, estão presentes bolsas de pobreza.

Por conseguinte, é preciso fazer ainda muito para manter e fortalecer a mobilização política, através de uma constante solidariedade económica e financeira, para garantir a disponibilidade dos recursos. A este propósito, a Santa Sé evidencia a importância de fortalecer a colaboração global para o desenvolvimento, que é uma condição necessária para a consecução de todos os outros objectivos, e apoia a adesão plena e integral ao Consentimento de Monterrey e à declaração de Doha sobre o financiamento do desenvolvimento. Além de fornecer instrumentos finalizados para resolver os problemas ligados ao sistema financeiro internacional, é necessário desempenhar um trabalho diligente para desenraizar a dívida dos países pobres e impedir que se voltem a apresentar certas situações de usura internacional que caracterizaram os últimos decénios do século XX. Precisamos de fluxos constantes de dinheiro líquido a baixo custo para os países menos industrializados, que deve ser destinado, de maneira específica, à criação de estruturas para uma produtividade local sustentável e uma ocupação estável de alto nível. Os países industrializados e as economias emergentes deveriam ser generosas ao ponto de manter abertos os próprios mercados, sem avançar pedidos excessivos de reciprocidade comercial, para ajudar os países pobres a alcançar a independência económica necessária para promover o seu desenvolvimento socioeconómico. Uma partilha constante de conhecimentos nas áreas da ciência e da tecnologia deve ser oferecida aos países mais pobres de modo que possam gerar, a nível local, as capacidades necessárias para resolver de modo eficaz, sozinhos, os próprios problemas no campo da saúde e satisfazer a sua necessidade de diversificar a produção agrícola e industrial.

Não obstante a crise financeira internacional, parte essencial de uma solução mais profunda e duradoura, é o fortalecimento dos compromissos da ODA (Assistência Oficial ao Desenvolvimento) de modo que o empenho de destinar 0,7% do PIB para este tipo de ajuda possa realizar-se rapidamente, garantindo que estas quantias alcancem efectivamente os países mais pobres. A promoção deste esforço exigirá uma nova mentalidade, que nos permitirá ampliar a nossa ideia do modelo doador/beneficiário para ver quais efectivamente somos: irmãos e irmãs com iguais dignidade e oportunidade de acesso aos mesmos mercados e às mesmas redes.

A campanha para o desenvolvimento realizada pelas agências internacionais revelou que o sucesso não consiste propriamente na assistência económica mas na criatividade e no engenho, de numerosos empenhos e sacrifícios feitos por «pequenos actores». Por exemplo, existem Governos locais e autoridades municipais, uma miríade de indivíduos que constituem a sociedade civil, grandes e pequenas organizações não governamentais (ONG), sindicatos nacionais e internacionais, cooperativas, associações dos consumidores, grupos de apoio e um grande número de organizações religiosas. Este património local é um fenómeno novo, que conseguiu, de modo bastante espontâneo, combinar a mais moderna tecnologia com a chamada tecnologia «adequada às possibilidades locais» e «intermédia», dando assim vida à expressão «pequeno é bom». De facto, esta realidade tinha sido predita há muitos anos por economistas como Ernest Friedrich Schumacher e inspirada com vigor pelas encíclicas Rerum novarum do Papa Leão XIII e Mater et magistra do Papa João XXIII (veja-se também a encíclica do Papa Bento XVI Caritas in veritate, 72).

Por conseguinte, a luta pelo desenvolvimento ressaltou a importância de mobilizar activamente todos os sujeitos da sociedade civil; e deste modo, demonstrou, além de qualquer dúvida, a centralidade da pessoa humana, a qual é o sujeito que deve assumir primeiro o dever do desenvolvimento (cf. Caritas in veritate, 47). Homens e mulheres reais, que deram início a cooperações e alianças para unir o Norte e o Sul, estão a demonstrar que é possível colocar imensas possibilidades de inteligência e de vontade humana ao serviço do desenvolvimento integral do homem. Tantas experiências da África e de outras regiões pobres demonstram que é possível uma mudança positiva. Este compromisso, a nível de base, no qual as comunidades locais se tornam artífices do próprio desenvolvimento, é indispensável para a eficácia autêntica da ajuda internacional a fim de criar melhores estruturas financeiras e comerciais, que contudo permanecem imprescindíveis.

Presidente, mesmo se as sociedades civis locais se mostram cada vez mais conscientes do papel de artífices do próprio desenvolvimento, infelizmente os obstáculos encontrados na maior parte são atribuíveis a uma má administração e a um comportamento estatal irresponsável a nível regional e internacional. Portanto, a fim de superar de modo definitivo os obstáculos que impedem o desenvolvimento, as experiências positivas da sociedade civil devem tornar-se valores-guia da acção política.

Numerosas vítimas inocentes, inteiras populações, foram abandonadas devido à crise financeira internacional. O comportamento irresponsável e imoral de grandes agentes financeiros privados juntamente com a ausência de clarividência e de controle dos Governos e da comunidade internacional fizeram a sua parte. O nacionalismo excessivo e o interesse corporativo assim como velhas e novas ideologias, que fomentam guerras e conflitos, todos são impedimentos ao desenvolvimento. O tráfico ilícito de pessoas, de substâncias entorpecentes e de matérias-primas preciosas juntamente com situações de guerra e de pobreza extrema por um lado e a ausência de escrúpulos por parte de alguns empresários económicos e sociais de regiões mais industrializadas por outro continuam a ser graves impedimentos ao desenvolvimento. A realidade da evasão fiscal, da lavagem de dinheiro e dos chamados «paraísos fiscais» para esvaziar os fundos dos Governos nos países pobres, desviando os recursos limitados do desenvolvimento, permanece um problema. A crise financeira, que no final deu vida a um comércio proteccionista, tornou-se mais um obstáculo ao desenvolvimento dos países pobres.

Todos os Governos dos países quer industrializados quer em vias de desenvolvimento devem aceitar o próprio dever de combater a corrupção e os comportamentos ousados e muitas vezes imorais nas áreas dos negócios e das finanças assim como a irresponsabilidade e a evasão fiscal para garantir o «estado de direito» e promover os aspectos humanos do desenvolvimento como a educação, a segurança ocupacional e a assistência no campo da saúde a nível básico para todos. De igual modo, todos os países, sobretudo os mais ricos e poderosos, devem agir de acordo com uma responsável solidariedade internacional. Hoje mais do que nunca, é difícil que as medidas nacionais não tenham consequências internacionais que, por vezes, possam pesar muito sobre países que estão longe e são desconhecidos como beneficiários imediatos de tais medidas. Além disso, dentro dos próprios territórios, os Governos, quer doadores quer beneficiários, não deveriam interferir com o carácter particular e com a autonomia das organizações religiosas e civis comprometidas nas áreas acima descritas nem criar-lhes impedimentos. Ao contrário, deveriam encorajar com respeito estas organizações assim como promovê-las e apoiá-las financeiramente o mais possível. A generosidade e o compromisso de organizações religiosas e civis deveriam inspirar Governos e organizações internacionais a realizar esforços proporcionados.

Por todos estes motivos, qualquer tentativa de utilizar os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio para difundir ou impor estilos de vida egoístas ou, ainda pior, políticas demográficas como instrumentos a baixo custo para reduzir o número dos pobres, seria malvado e míope. Digo isto, não só como chefe religioso, mas também porque sou um africano e uma pessoa que nasceu numa família pobre. Exorto a comunidade internacional a não ter receio dos pobres. Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio devem servir para combater a pobreza e não para eliminar os pobres! Ao contrário, dai aos países pobres um contexto financeiro e comercial favorável, ajudai-os a promover a boa administração e a participação da sociedade civil, e a África e as outras regiões pobres do mundo contribuirão de modo eficaz para a prosperidade de todos.

A igual dignidade inata, a individualidade e a transcendência de cada ser humano devem constituir o fundamento de qualquer política de desenvolvimento. «A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e económica» (Caritas in veritate, 44). O respeito pela vida humana desde a concepção até à morte natural, e pela capacidade de homens e de mulheres de viver vidas moralmente rectas, afirma a sua transcendência pessoal, mesmo se vivem em pobreza. Controlar as paixões e os impulsos hedonistas que nos esmagam constitui o ponto de partida para a edificação de uma sociedade harmoniosa. Este respeito é também a condição necessária e essencial para o desenvolvimento económico sustentável e para o desenvolvimento humano integral. Portanto, a Santa Sé reafirma a sua convicção de que todos os homens e todas as mulheres que agora vivem em pobreza só obterão grandes benefícios se os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio forem incluídos e geridos em harmonia com os critérios morais objectivos e com a natureza humana (cf. Caritas in veritate, nn. 44, 68-70 e 75).

A este propósito, sobre a questão muito debatida da saúde materna, a Santa Sé, com respeito e fervor convida os países que participam nesta cimeira a oferecer recursos qualitativos para as necessidades no campo da saúde das mães e dos seus filhos, inclusive os nascituros. Além disso, no Documento conclusivo, as referências reiteradas à «saúde sexual e reprodutiva» e à «planificação familiar» despertam graves preocupações. De facto, são expressões controversas muitas vezes interpretadas como se incluíssem o acesso à interrupção de gravidez ou métodos de planificação familiar que não estão em sintonia com o direito natural, conhecido pela recta razão.

Presidente, na sua última encíclica Caritas in veritate o Papa Bento XVI explicou que a ideia de desenvolvimento como vocação tem em si o lugar central da caridade no próprio desenvolvimento. De facto, as causas de subdesenvolvimento não são principalmente de tipo material. No anseio ao desenvolvimento, num mundo que globaliza, só «homens de pensamento capazes de reflexão profunda, voltados para a busca de um “humanismo” novo (...) permitirão que o homem moderno se reencontre a si mesmo» (Populorum progressio, 20, em Caritas in veritate, 19). Mesmo se a razão sozinha seja capaz de compreender a igualdade entre homens e mulheres e de criar os instrumentos para oferecer uma certa estabilidade à sua coexistência pacífica, ela não pode estabelecer a fraternidade, porque a fraternidade autêntica tem origem numa vocação transcendente de Deus (cf. Caritas in veritate, 19).

A família das Nações comprometeu-se a combater a pobreza material. Este é o principal e nobre objectivo que deve ser perseguido. Contudo, neste esforço nunca esqueçamos que a pobreza material está relacionada com a pobreza relacional, emotiva e espiritual. A pessoa humana deve ser o interesse central no nosso anseio pelo desenvolvimento. Se as liberdades e os direitos económicos, políticos e religiosos de todos forem respeitados, abandonaremos a mera busca de gerir a pobreza para criar prosperidade, deixaremos de considerar a pessoa como um peso e passaremos a vê-la como parte da solução. A missão fundamental da Santa Sé é sobretudo espiritual e esta missão inclui a solicitude em relação a todas as pessoas e a toda a criação. Por este motivo, a Santa Sé sente-se obrigada a estar presente na vida das Nações e a prosseguir o seu compromisso, em colaboração com a comunidade internacional e com a sociedade civil, a promover a justiça e a solidariedade entre os povos. É com esta convicção que a Santa Sé deseja cooperar com esta cimeira na busca de uma era de paz, de justiça social e de autêntico desenvolvimento humano integral.

 

 

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