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INTERVENÇÃO DO OBSERVADOR PERMANENTE DA SANTA SÉ JUNTO DAS NAÇÕES UNIDAS,
POR OCASIÃO DA 28ª SESSÃO DO CONSELHO DOS DIREITOS DO HOMEM
SOBRE A SITUAÇÃO NA SÍRIA

DISCURSO DO ARCEBISPO SILVANO M. TOMASI

Genebra, 17 de Março de 2015

 

Senhor Presidente!

Os conflitos obrigaram um número estarrecedor de 5,5 milhões de pessoas a fugir das próprias casas nos primeiros seis meses de 2014. Trata-se de um importante acréscimo ao recorde de 51,2 milhões de pessoas em todo o mundo que já se tinham deslocado forçadamente no final de 2013 (UNHCR, Mid-Year Trends 2014, p. 3). A Comissão internacional independente de inquérito sobre a República Árabe da Síria referiu recentemente que, desde o início da crise, «mais de 10 milhões de sírios fugiram das suas casas. Trata-se de quase metade da população do país, agora desprovida dos seus direitos mais elementares a um refúgio e a um alojamento adequado, à segurança e à dignidade humana. Muitos são vítimas de violações de direitos humanos e abusos e têm urgente necessidade de medidas de protecção e apoio». A agravar esta tragédia, mais de 3 milhões de pessoas, na maioria mulheres e crianças, fugiram da República Árabe da Síria e vivem como refugiados nos países limítrofes (Relatório da Comissão internacional independente de inquérito sobre a República Árabe da Síria, Conselho para os direitos humanos [27ª sessão], 5 de Fevereiro de 2015). A violência continua a provocar vítimas em particular no Médio Oriente, mas também noutras regiões, onde o ódio e a intolerância são os critérios para as relações entre os diversos grupos. Os direitos humanos dessas pessoas deslocadas com a força são violados impunemente de maneira sistemática. Diversas fontes deram testemunho do modo como as crianças sofrem devido às brutais consequências de um estado de guerra persistente no próprio país. As crianças são recrutadas, treinadas e utilizadas em posições de combate activo, muitas vezes até como escudos humanos nos ataques militares. O chamado grupo do Estado Islâmico (Is) agravou a situação adestrando e usando crianças como kamikazes; matando crianças pertencentes a comunidades religiosas e étnicas diversas; vendendo crianças como escravos nos mercados; executando um número relevante de adolescentes; e cometendo outras atrocidades (Comité das Nações Unidas sobre os direitos da infância, Concluding observations on the combined second to fourth periodic reports of Iraq, p. 5, ponto 23 [a], 4 de Fevereiro de 2015, Genebra). As crianças constituem cerca de metade da população de refugiados nos acampamentos em todo o Médio Oriente e são o grupo demográfico mais vulnerável em tempos de conflito e de migração. A sua vida no exílio é cheia de incertezas e de lutas diárias. «Muitas se separam das suas famílias, têm dificuldades de aceder aos serviços de base e vivem numa pobreza crescente. Só uma criança síria de cada duas entre as refugiadas nos países limítrofes recebe educação» (A. Guterres, Discurso durante a sessão de abertura da conferência sobre Investing in the Future em Sharjah, 15 de Outubro de 2014). Além das situações específicas que as crianças internamente desabrigadas e as que vivem nos campos de prófugos da região devem enfrentar, e das imensas tragédias que as atingem, parece importante imaginar o seu futuro, focalizando-nos em três âmbitos de preocupação.

Antes de tudo, o mundo deve enfrentar a situação das crianças apátridas que, como tais, segundo a lei, nunca nasceram. As Nações Unidas calculam que só no Líbano há cerca de 30.000 destas crianças. Além disso, devido aos conflitos médio-orientais e à erradicação de massa das famílias, milhares de crianças não registradas desaparecem nos campos de refugiados e nos países de exílio (Unicef Monthly Humanitarian Situation Report, Syria Crisis, 14 de Outubro — 12 de Novembro de 2014). Trata-se de «crianças fantasmas, cujos pais fugiram da Síria, mas dos quais o nome e a data de nascimento nunca foram registrados em cartório algum. De facto, a Unicef releva que 3.500 crianças «oficialmente» não têm uma família nem identidade. Isto acontece porque todos os documentos pessoais foram destruídos sob os escombros da guerra ou, muitas vezes, simplesmente porque os pais não tiveram tempo nem dinheiro para registrar o nascimento. As crianças apátridas atravessam sozinhas os confins internacionais e encontram-se totalmente abandonadas. O número de pessoas apátridas no mundo totaliza 10 milhões. Enquanto todos devem enfrentar grandes dificuldades, aqueles que fugiram da Síria ainda encaram o desafio mais dramático: uma criança de idade inferior a onze anos e sem documentos não tem acesso nem sequer aos serviços mais elementares. Obviamente, estas crianças não podem ir à escola e é provável que sejam adoptadas ilegalmente, recrutadas num grupo armado, abusadas, exploradas ou obrigadas à prostituição. Cada criança tem o direito a ser registrada quando nasce e portanto, a ser reconhecida como pessoa diante da lei. O cumprimento deste direito abre o caminho que permite aceder à fruição de outros direitos e benefícios relativos ao futuro de tais crianças. Simplificar os mecanismos e os requisitos para o registro, renunciar às taxas, comprometer-se por uma legislação sobre o registro que inclua os refugiados são alguns passos para debelar a chaga das crianças apátridas.

Em segundo lugar, outro elemento fundamental que incide no futuro das crianças erradicadas é a educação. Na Síria e nos acampamentos da região, oferecer uma educação tornou-se extremamente problemático. Cerca de 5.000 escolas (Relatório da Comissão internacional independente de inquérito sobre a República Árabe da Síria, Conselho para os direitos humanos [27ª sessão], 5 de Fevereiro de 2015) foram destruídas na Síria, onde mais de um milhão e meio de estudantes já não recebem educação e os ataques contra os edifícios escolares continuam. Os extremistas do Is fecharam um número consistente de escolas nos territórios sob o seu controle. A situação de perigo do país não permite que as crianças frequentem a escola nem que tenham uma educação adequada. Parece que a comunidade internacional no seu conjunto avaliou mal a dimensão da crise síria. Muitos pensaram que o fluxo de refugiados sírios fosse temporário e que eles teriam deixado o país de exílio em poucos meses. Agora, após quatro anos de conflito, parece provável que estes refugiados permanecerão e que a população local deverá aprender a viver com eles lado a lado. Devido ao conflito, as crianças estão atrasadas na educação e perdem a alegria da sua infância. Nos acampamentos só há 40 professores para mais de 1.000 estudantes, entre 6 e 17 anos. A maior parte dos docentes são voluntários, muitas vezes também eles refugiados. As aulas são baseadas em desenhos e músicas a fim de aliviar o trauma; quando há livros disponíveis são ensinadas a escrever e a fazer cálculos matemáticos. Na Turquia as crianças têm dificuldades ulteriores devido à barreira linguística. Os refugiados falam árabe e curdo, por conseguinte não podem frequentar as escolas públicas onde se fala só turco. Por várias razões, quer no país natal quer nos campos de refugiados as crianças encontram um sistema educativo inadequado que transtornam o seu futuro. Em toda a parte há necessidade urgente de um sistema educativo que possa assimilar essas crianças e proporcionar uma certa normalidade nas suas vidas.

Em terceiro lugar, outra séria consequência da violência persistente que atormenta o Médio Oriente é a separação dos membros da família, que obriga muitos menores a defender-se sozinhos. Na raiz da desestabilização da sociedade está a violência generalizada que leva à desagregação da família, unidade fundamental da sociedade. A fim de evitar a ulterior exploração das crianças e de as proteger de modo adequado, é preciso adicionar outro esforço para facilitar a reunificação dos menores com as respectivas famílias.

Senhor Presidente!

Os direitos a uma identidade legal, a uma educação adequada e à família são elementos-chave e requisitos específicos num sistema completo de protecção da infância. Tais medidas exigem a colaboração estreita de todas as partes interessadas. O acesso a uma boa educação e a uma assistência psicossocial, assim como a outros serviços fundamentais, é extremamente importante. Todavia, as crianças só podem beneficiar de tais serviços se forem registradas quando nascerem e se as suas famílias e comunidades forem ajudadas para as proteger melhor. Se a violência não acabar e se não se restabelecer o ritmo normal da educação e do desenvolvimento, estas crianças correrão o risco de se tornar uma geração perdida.

A paz na Síria e no Médio Oriente é a prioridade para um crescimento sadio de todas as crianças. Com convicção, durante a sua peregrinação à Terra Santa, o Papa Francisco afirmou: «Cessem as violências e seja respeitado o direito humanitário, garantindo a necessária assistência à população que sofre! Todos ponham de parte a pretensão de deixar às armas a solução dos problemas e voltem ao caminho das negociações. Na realidade, a solução só pode vir do diálogo e da moderação, da compaixão por quem sofre, da busca de uma solução política e do sentido de responsabilidade pelos irmãos» (Encontro com os refugiados e com os jovens deficientes na igreja latina em Betânia junto do Jordão, 24 de Maio de 2014).

Obrigado, Senhor Presidente.