SEGUNDO ESCRITO DE SUA EXCELÊNCIA DOM AGOSTINO FERRARI-TONIOLO, OBSERVADOR PERMANENTE DA SANTA SÉ JUNTO DA FAO SOBRE A VIII SESSÃO ANUAL DO CONSELHO MUNDIAL DA ALIMENTAÇÃO E ESTRATÉGIA ALIMENTAR* (Acapulco, México, 21-24 de Junho de 1982) Como preparação da recente oitava Sessão do Conselho Mundial da Alimentação, houve uma reunião preparatória em Roma, de 10 a 13 de Maio, com a presença dos Estados Membros das Nações Unidas e das várias Organizações Intergovernamentais a nível mundial e continental ou de grupo. Em tal ocasião apareceu ainda mais evidente a tentativa de propor um novo esforço na política alimentar. Parte-se da verificação, que é agora universalmente aceita: a prioridade absoluta do problema alimentar. Isto é confirmado nos documentos preparatórios em que é também feita alusão a todas as diversas Reuniões de Vértice, que se realizaram neste último ano em Otava entre os países mais industrializados; em Melburne entre os países do Commonwealth; em Paris entre os países industrializados e os países mais atrasados no meio das nações em vias de desenvolvimento; e também em Cancún, reunião ligada com a Comissão independente do conhecido Relatório Brandt Norte-Sul; como também, nestes últimos tempos, a chamada "Reunião de Roma" por iniciativa do Governo italiano. É ainda mais evidente que o problema alimentar não pode ser enfrentado senão gradualmente e tendo em vista, ao mesmo tempo, quer o aumento da produção, quer sobretudo a distribuição, como também a fiscalização do comércio. Daqui a necessidade de definir um programa de cooperação global e de precisar-lhe os objectivos, colocando-os de maneira mais consciente nas linhas da Estratégia internacional para o desenvolvimento do Terceiro Decénio dos anos de 80. O novo esforço é dado pela ainda mais acentuada definição de uma estratégia alimentar nacional, segundo a qual se pretende sustentar directamente o autodesenvolvimento dos países mais atrasados, como parte do desenvolvimento económico complexivo, orgânico e continuado, de cada país determinado. É interessante notar que nas propostas formuladas em vista desta VIII Sessão do Conselho Mundial da Alimentação, se prevê dar relevo de modo particular à conservação dos pequenos cultivadores, considerados mais eficientes produtores e ao mesmo tempo como autoconsumidores; e apoiar-se sobre todas as formas que podem acentuar a participação no processo de desenvolvimento da mesma população interessada. Em princípio, pretende-se favorecer os modelos de desenvolvimento que tendem a uma absorção mais extensa da mão-de-obra disponível, mesmo com trabalhos públicos que obtêm a absorção do desemprego. Vão-se aprofundando as actuações com medidas "directas", e já não só com providências com eficácia indirecta; e com uma forma de assistência que se define mais como "assistência técnica". A problemática actual coloca em evidência que o verdadeiro problema é a distribuição, mais que o aumento da produção mundial. Sobretudo quer-se evitar que o aumento da produção fique praticamente concentrado nalguns países altamente produtores. É bastante insistente a afirmação de que, mais que os "auxílios", são importantes as "medidas comerciais". Neste sentido há a preocupação da disponibilidade de todos os factores do desenvolvimento, em formas que não constituam pesos insuportáveis por parte dos países que têm uma economia mais fraca. Por isso não só se deve obter que os produtos alimentares estejam disponíveis em medida suficiente e proporcionada às necessidades alimentares das populações (embora seja necessário recorrer à importação), mas que se proceda a "ajustar as trocas". Assim torna-se de primeira importância a constituição de um "sistema de financiamento compensatório" e a instituição de órgãos que venham garantir a estabilização dos preços. Em tal sentido encontra sempre menor acolhimento a afirmação, apresentada com frequência pelos países altamente produtores, de que a preocupação primária deva ser o aumento da produção (sem definir que tal aumento deve ser obtido também nos países em vias de desenvolvimento). Por outro lado, permanece aguda a questão do significado negativo de reivindicar a "liberalização" das relações comerciais; ou se não se deve chegar a maior fiscalização das trocas e dos preços, não só dos produtos agrícolas mas também dos produtos manufacturados, oferecidos pelos países industrializados. Também sobre o tema da segurança nas reservas de cereais — de trigo ou arroz segundo as regiões, e de outros produtos fundamentais —, aparece uma mudança de proposta. Nas oscilantes tomadas de posição — que partiram em 1972 com um intento de verdadeiro compromisso para reais reservas internacionais confiadas a um órgão Intergovernamental — chegou-se à actual proposta de reconstituição de reservas em cada país. Há anos começou a polémica sobre se as reservas em tais países são, no plano mundial, reguladoras do mercado, ficando embora disponíveis no território do país altamente produtor. Tal é também a recente iniciativa de reservas realizadas em Março de 1981 nos Estados Unidos (apresentadas como aplicação das propostas do Conselho Mundial da Alimentação) ou se tais reservas são antes instrumento regulador do mercado, mais no interior que nas relações exteriores, mas em defesa dos interesses do mesmo país altamente produtor. Isto explicaria a contínua hostilidade que aparece também nas declarações finais referidas nos Relatórios dos dois últimos Conselhos Mundiais da Alimentação. Teme-se a criação de um "sistema de reservas", de maneira que haja pelo menos uma conexão e regulamentação internacional dessas mesmas, apesar de feitas ou constituídas nos vários países. Mas a passagem é, na presente proposta, formulada em vista da VIII Sessão. Trata-se de uma constituição de reservas pertencentes como coisa própria a cada país em vias de desenvolvimento. No intento dos que fizeram a proposta, deveria assumir o valor de um Acordo realmente obrigatório. Mas já surgiram pareceres claramente contrários, quer por parte dos grandes países produtores, quer por parte da CEE. Em oposição, a tendência dos países em vias de desenvolvimento é para obter o mais possível um compromisso que seja eficaz e concreto. Pelo menos dever-se-ia chegar a definir se e como devem cumprir os próprios deveres os países prósperos, com uma acentuação do auxílio "técnico" e dos problemas de financiamento, que das formas até aqui aplicadas de "auxílio" alimentar. É aceitável a tomada de responsabilidade directa por parte de cada país em vias de desenvolvimento. Não é porém de situar na sombra a co-responsabilidade de todos os membros da Comunidade Internacional na sua diversa, mas obrigatória, capacidade de contribuir de fora, mas sem substituir-se à iniciativa própria dos países. Eles têm urgência de atingir a auto-suficiência alimentar mediante o próprio desenvolvimento ordenado, que na maioria dos casos parte de uma economia agrícola notavelmente atrasada. Se nos pomos nesta perspectiva, compreende-se como o Conselho Mundial da Alimentação pode ter uma sua preeminente função política, e como se torna cada vez mais importante que se lhe reconheça a competência de impulso para as iniciativas e de coordenação em todo o sector agrícola e alimentar relativamente às linhas de acção dos Governos e das várias Organizações interessadas. Antes de tudo, o problema põe-se directamente no que diz respeito às Organizações e aos Organismos especializados na matéria: a FAO, o IFAD, o PAM, todos agora cora sede definitiva em Roma. Por parte de todos os responsáveis dos Governos e das Organizações oficiais, como também por parte da opinião pública, dever-se-ia, com maior coerência, recordar que a função estatutária primária da FAO não é propriamente operativa. Sobre a base do programa do trabalho e do balanço ordinário da FAO, pode-se requerer uma eficiência funcional em ordem a duas principais actividades próprias. A primeira é em vista de garantir o contínuo conhecimento actualizado da situação agrícola e alimentar no mundo. É ele recolhido e posto à disposição com os sucessivos Relatórios apresentados nas várias Reuniões durante o ano, mas sobretudo com o Relatório fundamental que se publica por ocasião da Conferência Geral. Além disso, é adquirido o contributo precioso derivante do sistema mundial da informação e de rápido alarme acerca da alimentação e da agricultura, que publica os conhecidos Boletins mensais sobre os factos mais importantes acerca das trocas e dos preços no mercado mundial e também sobre o andamento da produção ou sobre a não favorável disponibilidade ou mesmo anormal escassez de produtos alimentares, país por país. A segunda é dada pelo encargo próprio de servir os Governos que o requeiram, em predispor os seus projectos e programas de desenvolvimento agrícola e alimentar; e também de definir a comum acção sobre o plano mundial, desejada nos primeiros princípios estatuários. É claro que, em consequência, só reconhecendo — por parte da FAO, e por parte da opinião pública — tais critérios de justa defesa e delimitação do próprio trabalho, pode a FAO colocar-se em leal posição diante do Conselho Mundial da Alimentação, na sua atitude de orientamento político e de coordenação. No âmbito da relação mais imediata com o Conselho Mundial da Alimentação, acrescentou-se o IFAD, desde o momento da sua instituição e início de funcionamento em 1977, e especialmente desde a decisão da sede definitiva em Roma no mês de janeiro de 1982. O Conselho Mundial que sustentou a fase de formulação do Acto Institutivo do IFAD tem constantemente presente a actividade desta nova Organização Intergovernamental que forma um encontro entre os seus Estados Membros, de igual valor que a FAO na recíproca autonomia, com a finalidade específica de realizar investimentos para projectos de desenvolvimento agrícola, especialmente para bem dos países mais atrasados e que tenham efeitos redistributivos do rendimento no interior dos países beneficiados. Ainda mais evidente é a natureza operativa do Programa Alimentar Mundial, que desde 1963 realiza uma bastante concreta e fiscalizada actividade de ajuda alimentar, segundo uma específica e característica utilização dos alimentos, como capital de investimento primeiro em ordem aos projectos de desenvolvimento continuado, antes ainda que em vista de distribuições para realizar com vistas no consumo imediato nas situações de urgência. Mas a área das Organizações que operam no sector alimentar ampliam-se. Primeiro que tudo, deveria ser mais constantemente feita referência à Organização Intergovernativa delimitada pelos produtos do trigo, como é o Conselho Internacional do Trigo (IWC). É óbvio que o Conselho Mundial da Alimentação sustenta o mais possível a rápida formulação e aceitação dos textos das novas Convenções, quer directamente pela regulamentação das trocas comerciais, quer pelas formas de "auxílio" em cereais, incluídas as metas dos 10 milhões de toneladas anuais e das 500 mil toneladas da Reserva de urgência, estabelecidas pela Conferência Mundial da Alimentação. Naturalmente, uma vez notado o bloco das negociações em curso desde Fevereiro de 1980, podem ser adoptadas soluções que em via subordinada aparecem politicamente mais realizáveis. A panorâmica das actividades importantes no campo da alimentação, que está presente ao juízo e impulso por parte do Conselho Mundial da Alimentação, aplica-se também à consideração das actividades que, no campo agrícola e alimentar, têm importância, realizadas por todas as Organizações Intergovernamentais ou por Agências especializadas do Sistema das Nações Unidas. Entre estas, faz-se referência cada vez mais frequente ao Fundo Monetário Internacional (IMF), especialmente em relação com pôr à disposição dos países membros dois dispositivos especiais permanentes, quais são o mecanismo de compensação para sustentar os países fornecedores dos produtos de base com agudas dificuldades na balança dos pagamentos, e o mecanismo para a facilitação nos financiamentos em vista da constituição de "reservas reguladoras" internacionais, destinadas a estabilizar o mercado mundial. Além disso, são bastante importantes as ajudas anuais dadas em formas diversas de empréstimos ou dons, concedidos em atenção às condições efectivas monetárias e de disponibilidade dos vários factores do desenvolvimento nos diversos países que têm de afrontar programas de reforma e de potenciamento da actividade agrícola: trata-se do Grupo do Banco Mundial, no qual entram as várias formas de empréstimos do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (IDRD) com taxas de mercado; da Sociedade Financeira Internacional (IFC) e da Associação Internacional para o Desenvolvimento (IDA) nas diversas formas de ajudas respectivamente às empresas privadas ou aos governos, concorrendo para os respectivos projectos em ordem ao desenvolvimento económico e às trocas internacionais com ele relacionadas. Junta-se a sempre crescente importância dos diversos Bancos para o Desenvolvimento, que surgiram ao lado das Organizações Intergovernamentais Regionais, como o Banco Europeu para os Investimentos (BEI) ou o Banco Interamericano do Desenvolvimento (IDB), o Banco Africano do Desenvolvimento (BAD) ou o ainda mais importante Banco Asiático para o Desenvolvimento (ADB). Vasto alcance têm também os Bancos e os Fundos relacionados com as Organizações Intergovernamentais como as do Grupo dos países árabes: o Fundo Árabe para o Desenvolvimento Económico e Social e o Banco Árabe para o Desenvolvimento Económico na África, em relação com a Liga dos Estados Árabes; ou em relação com a Organização da Conferência Islâmica como o Banco Islâmico para o Desenvolvimento; ou para o Grupo dos Países Socialistas da área da URSS como o Banco Internacional para a Cooperação Económica e o Banco Internacional dos Investimentos, relacionado com o Conselho para a Mútua Assistência Económica (COMECON/CMEA). A explícita relação, que é posta em evidência particularmente na recente proposta entre a criação de reservas nacionais nos países em vias de desenvolvimento e a regulamentação do comércio internacional, comporta certamente uma acentuada correlação entre as opções políticas anuais do Conselho Mundial e as Decisões que se dão no âmbito das Conferências e Actividades da UNCTAD, como também no quadro das negociações no "Round" do GATT (como o conhecido precedente Kennedy "Round" ou o último chamado de Tóquio), em que foram combinadas normas de redução das barreiras derivantes das tarifas alfandegárias com particular atenção aos problemas dos países em vias de desenvolvimento e aos seus produtos agrícolas. Ainda mais uma vez se confirma que a verdadeira vontade de enfrentar os problemas da fome e da subalimentação no mundo se manifesta só através de um paciente reconhecimento dos objectivos possíveis, com base no efectivo conhecimento das situações; uma calculada e actualizada escolha de métodos e de meios de acção para as operações bilaterais e multilaterais referidas em vista dos diversos modelos de desenvolvimento que adopta cada país; obrigações assumidas e praticadas lealmente nas relações entre Estados a nível tanto zonal ou continental, como sobretudo na visão de conjunto mundial. A solução possível é certamente não miraculista, mas gradual. São necessárias propostas válidas a nível técnico e económico. Mas eles incluem opções concretas em função dos objectivos humanos conexos, considerados na sua efectiva possibilidade de aplicação histórica, mediante uma acção pré-ordenada e concorde. Tais decisões são e continuam a ser, afinal, da responsabilidade dos Governos, como particulares ou como participantes nas diversas expressões da Comunidade Internacional no conjunto da intrincada série de relações bilaterais e multilaterais que aí se realizam: elas portanto são de natureza política. Eis porque um encontro, como o que se realizou no Conselho Mundial da Alimentação, em particular na recente Oitava Sessão, tem uma importância a que uma opinião pública informada é chamada a dar a sua atenção e o seu apreço. * L'Osservatore Romano, ed. semanal em Português, 12 de Setembro de 1982 |