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INTERVENÇÃO DO REPRESENTANTE DA SANTA SÉ
NA SESSÃO PLENÁRIA DA REUNIÃO SOBRE SEGURANÇA E COOPERAÇÃO
 NA EUROPA(C.S.C.E.) REALIZADA EM MADRID

DISCURSO DE MONS. FRANCESCO CANALINI

Madrid, 16 de Novembro de 1982

 

Senhor Presidente

No momento em que a nossa Reunião retoma as suas actividades, eu queria fazer meus, para lhos transmitir, os votos que o Papa nos dirigiu no seu discurso sobre a Europa em Santiago de Compostela, no último dia da sua viagem à Espanha: "Eu formulo para a Reunião C.S.C.E. de Madrid, disse João Paulo II, os melhores votos, num momento não fácil para a Europa".

Pemita-me também exprimir a nossa simpatia pelo povo espanhol e pelo seu governo que nos recebem calorosamente e repetir ao nosso secretário executivo. Senhor Embaixador Perez Hernandez, e à sua equipa quanto apreciamos a qualidade da sua organização e dos seus serviços. Eis que há mais de dois anos que eles no-lo demonstram com extraordinária constância. A Delegação da Santa Sé agradece-lhes vivamente e sabe de antemão que no futuro ela poderá ainda contar com a sua disponibilidade c eficácia.

É costume na nossa assembleia mostrar uma viva sensibilidade a todos os acontecimentos que afetam, de uma maneira ou de outra, os seus participantes. Ela tem-nos distinguido sempre com respeito e simpatia. Ainda nestes dias, a perda sofrida por um grande país com o falecimento do Senhor Leónidas Brejnev, presidente do supremo presidium da U.R.S.S., foi assinalada com a expressão de sentimentos aos quais se associa profundamente a delegação da Santa Sé.

A nossa sessão de Feverei ro-Março conheceu momentos difíceis. Razões mais políticas que técnicas constrangeram-nos a decidir por uma pausa longa. Retomamos agora os nossos trabalhos numas condições e num clima internacional tão pesado — e sob certos aspectos mesmo muito pesado — dc tensões desconhecidas em Fevereiro.

Nestas circunstâncias, parece útil, na opinião da delegação da Santa Sé, não perder de vista o nosso objectivo essencial: salvaguardar e reforçar os fundamentos das relações entre as nações participantes no Acto Final.

Mais do que um simples anunciado do fim fundamental da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa, interessa o seu conteúdo real, o seu alcance exacto e o seu significado concreto.

A vida pacífica na sociedade e as relações amistosas entre Estados e povos não se fazem por si, como sabemos. É preciso também trabalhar para as cultivar constantemente, atacando pelas raízes o ódio, o engano e a guerra. O Acto Final constitui nisto uma guia segura quando afirma que o respeito pelos direitos do homem "é um factor essencial da paz". A novidade e o valor original desta afirmação num documento internacional situam-se na profundidade ética desta verdade. Ela atinge as raízes múltiplas e profundas da guerra. Em 1979, perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, o Papa João Paulo II resumiu estas mesmas ideias nestes termos: "O espírito de guerra, diz ele, no seu significado primário e fundamental, surge e amadurece lá onde os direitos inalienáveis do homem são violados" (n. 1. 11).

Com efeito, o homem não vive nunca abstractamente. Ele está sempre inserido num contexto social, cultural, económico, político e espiritual. E não é defendido verdadeiramente senão quando se favorece o desenvolvimento equilibrado de todas as suas dimensões. A defesa da dignidade da pessoa, condição de uma verdadeira paz, inclui a defesa de cada uma das liberdades fundamentais. Estas correspondem à essência do ser humano, compreendido na sua integralidade e não reduzido a uma só dimensão. Como diz ainda João Paulo II na ONU, a sua violação "é uma forma de guerra contra o homem" (n. 16). O seu respeito é portanto o caminho mais seguro para a paz.

O compromisso assumido em Helsínquia de seguir esta moral internacional está cheio de responsabilidades. Na delicada, digamo-lo, e frágil estrutura da CSCE, as Reuniões como as de Belgrado e de Madrid desempenham um papel insubstituível porque elas proporcionam a única ocasião de verificar como é aplicado e vivido este código de conduta. Com toda a honestidade, é impossível fugir a esta análise.

Nos nossos dias, ainda se verificam frequentes e graves violações dos direitos do homem no nosso continente. A gama destes direitos é tão vasta que as situações onde se observam estas lacunas são extremamente variáveis e diverso o seu grau de gravidade. É necessário continuar a deplorar estas situações e a Santa Sé é a primeira a estar preocupada com todos os atentados contra a dignidade do homem.

Existe atentado contra o homem cada vez que os direitos democráticos são autoritária ou subtilmente abolidos. Existem, por outro lado, casos típicos que vão directamente contra as medidas particulares previstas no Acto Final, quando, por exemplo, um indivíduo é exilado na sua própria pátria ou outros são expulsos do território nacional por razões ideológicas. Pelo contrário — e paradoxalmente — os pedidos de emigração são muitas vezes recusados ou atrasados e isto acontece mesmo nos casos urgentes por motivos de casamento ou por razões de família. Existe também incompatibilidade com o Acto Final quando aqueles que têm a responsabilidade do serviço de informação são impedidos de exercer efectivamente a sua profissão.

De todas as formas da injustiça deriva um gérmen de desordens e de tensões que não são menos ameaças de guerra que a acumulação de armamentos, porque cias rompem o carácter orgânico da ordem social e se repercutem imediatamente sobre todo o sistema das relações internacionais.

Ao mesmo tempo, é preciso distinguir as violações sistemáticas das violações pontuais. É impossível não dar prioridade às situações onde um conjunto de pessoas se encontrem oprimidas, onde cada um dos seus direitos seja negado com a justificação teórica de apoio.

A este título, o caso polaco é preocupante, porque uma situação contrária aos princípios do Acto Final se encontra legalizada. Desde Agosto de 1980, assistiu-se a uma tentativa de pôr em prática um entendimento e um diálogo com os diversos organismos de expressão da vontade popular. E o governo tinha reconhecido os valores fundamentais que se traduziam na concessão de um estatuto legal aos sindicatos autónomos e independentes.

Em Dezembro último, este processo sofreu radical e grave golpe de interrupção. O sindicato "Solidariedade", símbolo de todo um povo, foi reduzido ao silêncio, provisoriamente, como se afirmava em Varsóvia. Via-se assim convidado a não abandonar toda a esperança.

E eis que muito recentemente o retardamento da morte de "Solidariedade" foi assinado. Assim, em vez de proceder à renovação deste sindicato, como tinha sido anunciado a 13 de Dezembro de 1981, pronunciou-se a sua dissolução. O que impeliu Mons. Glemp, Primaz da Polónia, a declarar: "Depois de 8 de Outubro, somos obrigados a partir de zero, e isto sem a consulta à classe operária".

Esta nova situação leva a delegação da Santa Sé a interrogar-se seriamente. Porque, doravante, que meios restam para salvaguardar o direito de um povo de dispor de si mesmo como prevê o oitavo princípio do Acto Final? Que esperança resta para preservar o respeito dos direitos fundamentais afirmados no sétimo princípio, quando continuam os internamentos de trabalhadores que reclamam os seus justos direitos?

Outras situações ainda obrigam a delegação da Santa Sé a interrogar-se seriamente, porque elas. atentam contra a dimensão incorruptível e indestrutível do homem, contra a sua espiritualidade. Esta dimensão espiritual, indispensável para o superamento das divisões, faz comunicar as pessoas e os povos entre si e os une. Aqui a relação entre os direitos do homem e a paz aparece em toda a sua clareza. O Acto Final reconhece especificamente esta dimensão do ser humano quando ele apela para "o respeito da liberdade, de o indivíduo professar só ou em comum, uma religião ou uma convicção, agindo segundo os imperativos da sua própria consciência".

Precisamente em vista da Reunião de Madrid, de 1.9.1980, o Papa tinha dirigido a todos os Chefes de Estado, signatários do Acto Final, uma carta acompanhada do documento relativo ao direito à liberdade religiosa que dava um quadro da reflexão global e precisava as exigências concretas desta liberdade. É necessário admitir que infelizmente existem numerosas situações onde este direito não é reconhecido de maneira efectiva, mesmo se em certas regiões — reconheçamo-lo honestamente — se verificam progressos.

Acontece que recebemos continuamente listas e apelos de pessoas privadas das suas liberdades por terem defendido c proclamado a sua fé.

Além disto, como esquecer que em algumas regiões existem dioceses que, em razão de obstáculos persistentes, se encontram privadas do seu bispo praticamente desde há 25 anos?

Mais graves ainda são os casos de comunidades religiosas inteiras que se vêem privadas do direito à existência legal, quando outras, nas mesmas condições são admitidas a usufrui-lo. Quanto ao que diz respeito aos católicos, já em Belgrado a delegação da Santo Sé tinha apresentado concretamente o problema, pondo em evidência os sofrimentos prolongados das Igrejas católicas de rito oriental que se encontram numa tal situação. Novamente em Madrid, a delegação da Santa Sé apresentou uma proposta análoga que deveria ser admitida por todos, porque ela decorre naturalmente dos compromissos do Acto Final.

A mesma passagem do Acto Final parece exigir que, quando o teor exacto do exercício da liberdade religiosa é discutido ou definido, as instituições que pela sua natureza estão ao serviço da vida religiosa, sejam consultadas. Eis o objecto de uma segunda proposta razoável da delegação da Santa Sé.

Enfim, a Santa Sé pediu que no domínio da informação radiotelevisão, seja concedido às igrejas um lugar justo, o que não parece ser um privilégio numa sociedade onde a comunicação social assume uma importância em todos os aspectos da vida.

Senhor Presidente, o substancial documento final que nós preparamos, qualquer que seja o seu tamanho, deverá reflectir a filosofia da paz contida no Acto Final, RM/39, elaborado com cuidado e diligência pelas delegações de oito países neutros e não-alinhados é o primeiro esboço neste sentido.

Sem ser tecnicamente competente no domínio referente à segurança militar, a minha delegação pensa que a convocação de uma Conferência sobre o Desarmamento na Europa com base num mandato preciso e realista, contribuirá para dissipar a desconfiança das relações entre os Estados; mas este objectivo não pode ser conseguido senão paralelamente à procura de melhor aplicação dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa. A delegação da Santa Sé empregará todos os seus esforços para que o equilíbrio entre o factor militar e o factor humano de segurança e de paz seja cuidadosamente medido.

Com efeito, a desconfiança que põe em perigo as relações pacíficas entre os povos fundamenta as suas raízes igualmente na dimensão humana da vida dos cidadãos. Quanto mais as pessoas sentem aspirações profundas pela sua libertação e expressão, tanto mais as sociedades podem contar com um capital de entendimento, de compreensão e de tranquilidade, e mais a confiança inspira as suas relações recíprocas. Também é absolutamente necessário que a segurança militar e a serenidade do homem encontrem uma justa medida; medida esta que não faça abstracções das diversas situações concretas mas adira a elas com escrúpulo. A tarefa é difícil, mas possível; os primeiros sinais de disponibilidade das diferentes partes para se comprometerem seriamente, encoraja-nos a dizê-lo.

Desta maneira, também se deve trabalhar para recuperar progressivamente uma certa unidade perdida da Europa. O Acto Final põe as bases disto, quando no seu preâmbulo afirma a consciência de uma "história comum", "a existência de elementos comuns nas suas tradições e nos seus valores". Como escreveu o Papa Paulo VI no momento da assinatura do Acto Final: "Uma tal herança baseia-se essencialmente sobre a mensagem cristã, anunciada a todas as populações da Europa, que a acolheram e a fizeram sua; compreende, além dos valores sagrados da fé em Deus e do carácter inviolável das consciências, os valores da igualdade e da fraternidade humanas, da dignidade do pensamento consagrado à investigação da verdade, da justiça individual e social, do direito concebido como critério do comportamento no relacionamento entre os cidadãos, as instituições, os Estados". Neste património comum reside a origem de uma unidade que ultrapassa a diversidade dos sistemas económicos e das ideologias políticas.

No seu recente discurso de Santiago de Compostela, o Papa João Paulo II, referiu-se a esta mesma unidade, dirigindo a toda a Europa o. brado de amor: "Encontra-te a ti mesma. Sê tu mesma. Descobre as tuas origens, reaviva as tuas raízes. Torna a dar vida aos valores autênticos que foram a glória da tua história e tornaram benéfica a tua presença nos outros continentes. Reconstrói a tua unidade espiritual num clima e pleno respeito por outras religiões e pelas verdadeiras liberdades (...). Não te orgulhes das conquistas a ponto de esquecer as possíveis consequências negativas. Não te deixes desencorajar pela perda da tua grandeza visível no mundo, nem pelas crises sociais e culturais que agora te afectara. Tu ainda podes ser um farol de civilização e um promotor de progresso para o mundo".

Quem compartilha esta visão unitária da Europa, que é inspirada no Acto Final, não pode senão identificar-se com esta mensagem de coragem e de esperança dirigida primeiro que tudo à juventude. Um pouco por toda a Europa, em numerosos países, a juventude deve fazer face a crescentes dificuldades de vida, porque o agravamento da crise económica a priva muitas vezes do trabalho e torna árdua a sua inserção profissional e social. Nos nossos trabalhos e nas nossas deliberações, esta juventude deveria estar sempre presente no nosso espírito, porque da sua inteligência e da sua qualidade cultural depende o renova mento da velha Europa.

Senhor Presidente

Eu quis recordar os objectivos fundamentais e ilustrar com alguns exemplos a amplitude do papel que nos espera e a gravidade das responsabilidades que pesam sobre nós, desde a assinatura do Acto Final.

Com este espírito a minha delegação se esforçará por não deixar perder nenhuma ocasião para obter os resultados positivos que possam contribuir para uma melhor aplicação do Acto Final, segura de que assim se prestará um serviço pela causa da cooperação entre os nossos povos.

Obrigado, Senhor Presidente.

 

 

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