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SECRETARIA DE ESTADO

DISCURSO DO CARDEAL TARCISIO BERTONE
NA CONCLUSÃO DO V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DE SÃO FRANCISCO XAVIER, PADROEIRO DAS MISSÕES

Pontifícia Universidade Urbaniana
Terça-feira, 5 de Dezembro de 2006

 

Aceitei com alegria o convite que me foi feito pelo vosso Reitor, Mons. Spreafico, para estar aqui convosco, no encerramento deste ano que recorda os 500 anos do nascimento de São Francisco Xavier. Considero que a Universidade Urbaniana, que acolhe pessoas provenientes de todos os continentes e muitos da Ásia represente o contexto mais apropriado para recordar a figura e a obra de Francisco Xavier, padroeiro das missões.

A obra mais extraordinária realizada pela Companhia de Jesus na sua história plurissecular é a obra missionária (cf. Revista Gesuiti 2006 ; Roberto Card. Tucci, S.I.). Ela foi grande antes de tudo pelo número de Países nos quais desempenharam a sua actividade apostólica: de facto, estiveram presentes em todos os Países da Ásia, da Oceânia, da América e nalguns Países da África, onde foi possível anunciar o Evangelho. Foi grande, sobretudo, pelas dificuldades que os jesuítas tiveram que enfrentar: são de facto muitíssimos os que, depois de terem vivido em condições de extrema pobreza e dificuldades devido a situações climáticas invivíveis para os europeus, sofreram violentas perseguições e, muitos deles, o martírio. Por fim, foi grande a intrepidez e a grandiosidade dos projectos e das iniciativas apostólicas que caracterizaram a sua actividade missionária: pense-se nas "Reduções" para o Paraguai, na introdução do cristianismo na China por obra de Matteo Ricci.

Foi São Francisco Xavier que deu início e estimulou esta extraordinária acção missionária da Companhia de Jesus. Ele foi o primeiro Jesuíta que partiu de Lisboa para as missões a 7 de Abril de 1541, nomeado pelo Papa Paulo III, núncio apostólico "para todos os príncipes e senhores do oceâno, das províncias e Terras das Índias, aquém e além do Cabo que se chama da Boa Esperança e das terras vizinhas".

Neste nosso encontro gostaria de tentar relacionar os tempos de Xavier com os nossos e gostaria de o fazer sob o perfil da missão como comunicação da fé.

Sob este perfil, estes dois tempos têm muitas semelhanças: ambos se caracterizam por uma profunda aceleração da socialização humana que adquire maior amplitude e complexidade. Em 1500, o uso da bússula e da vela latina moderna dão às nações ibéricas a possibilidade de enfrentar o oceano e de suplantar os venezianos no controle do comércio com as Índias; enquanto os portugueses começam a descer a costa da África, os espanhóis tentam alcançar o Levante pelo Ponente. Em 1483 Diogo Cão chega à foz do rio Congo, em 1492 Colombo desembarca na ilha das Caraíbas, em 1500 Cabral chega ao Brasil. Tem assim início uma história mundial e começa com base numa unificação do mundo sob a hegemonia do Ocidente; a sua potência militar e tecnológica tende para unificar o mundo em termos de domínio e de interesse, termos que projectam a sua luz negativa também sobre o nosso mundo.

Como então, também hoje a comunicação sofreu uma impressionante aceleração; o desenvolvimento da informática fortaleceu o progresso tecnológico e quase anulou o peso das distâncias de geografia e de tempo. Hoje é possível conhecer e participar em tempo real nas realidades que se verificam a grandes distâncias; contudo, também hoje, as possibilidades de maior participação e responsabilidade, que estas novidades trazem consigo, estão em contradição com uma orientação cultural e política que favorece mais o interesse de alguns do que a dignidade de todos. Surgiu disto uma dificuldade e uma crise das instituições sociais e políticas que está sob os nossos olhos. Podem-se traçar algumas analogias entre aquele tempo e o nosso, há quem veja o nosso tempo como o fim de uma época que começou então (1).

Podemos iluminar esta analogia com a luz da fé e interrogar-nos sobre como ela veja este improviso ampliar-se e unificar-se do mundo. Os primeiros a aceitar o desafio ínsito nas mudanças de 1500 posso recordar com particular prazer o facto de que foi aos diplomatas que a experiência habituou a avaliar o sentido dos acontecimentos são patrícios venezianos que, depois do serviço na diplomacia, escolhem concluir a sua existência como monges camaldolenses. Trata-se de Paulo Giustiniani (1476-1528) e Pietro Quirini (1479-1514). Em 1513, com base em notícias ainda genéricas, enviam um tratado ao Papa Leão X (2) para chamar a sua atenção: este ampliamento do mundo é um desafio e uma oportunidade para a fé. Depois de ter recordado o zelo de Paulo e dos apóstolos, concluem: "não podes hesitar em assumir a solicitude por todas as criaturas humanas, para que não seja desconhecido à verdade da religião cristã povo algum mesmo sendo bárbaro, ou infiel" (3).

Mesmo conscientes de que crer é um acto livre e que, por conseguinte "ninguém deve ser obrigado à fé", eles insistem com o Papa para que a Igreja lhes testemunhe quer a sua caridade quer a sua fé. Antes de tudo a sua caridade. As riquezas da Igreja devem ser usadas para proporcionar a este povo o necessário para a sobrevivência, de modo que, também por esta via, seja facilitado o seu caminho de fé: de facto, "a caridade que é realizada para a salvação das almas é mais autêntica da que é feita para alimento dos corpos"(4). Quanto à fé, pedem tanto que o Papa envie missionários virtuosos como que prepare os seus sucessores; eles mesmos, aliás, se oferecem para este cargo. O que é evidente é que, aos seus olhos, só uma redescoberta da missão e um firme compromisso para a viver pode ser a resposta que a Igreja uma Igreja que acolhe e salva todos pode dar às descobertas do tempo. Para eles, é totalmente inaceitável que se conheça a existência de pessoas afastadas da fé sem que isto cause uma explosão de zelo apostólico.

Mesmo na comum partilha da mesma fé, devemos reconhecer que o nosso tempo é profundamente diverso. Por um lado, o fim da segunda guerra mundial originou, com a independência política, a busca e a afirmação do património cultural daqueles povos, de forma que já é comum falar de uma passagem das missões às jovens Igrejas(5). Por outro, a secularização causou uma mudança profunda nas dinâmicas da vida das terras de mais antiga cristandade; desfazendo a unidade orgânica da vida cristã, pôr de novo em questão o valor humanista, salvando-o apenas como reserva de solidariedade para as necessidades mais graves. O resultado é que a nossa Igreja se encontra hoje a dever fazer frente não só a uma diminuição de fé, que se tornou minoritária sob o perfil cultural e a capacidade de orientar a vida, mas também uma perda de humanismo. A missão, juntamente com a proclamação do Evangelho de Jesus Senhor, deve recordar hoje também o seu valor antropológico e a sensatez social(6).


Eis então a tarefa hoje da Igreja hoje. Aberta positivamente às transformações em acto, ela capta nela aquela "progressiva aproximação dos povos aos valores evangélicos" que o Papa João Paulo II descreveu como "uma grande primavera cristã, da qual já se entrevê o início(7). Este optimismo cristão não pode ser ingénuo, não pode não notar a complexidade das situações em que a missão se encontra hoje; sentimos todos o surgimento de "perguntas novas, às quais se procura dar respostas percorrendo novos caminhos de pesquisa, progredindo e sugerindo comportamentos que necessitam de cuidadoso discernimento"(8). Neste contexto gostaria de desenvolver uma reflexão sobre as analogias entre os tempos de Xavier e os nossos e, juntamente convosco, procurar alguns caminhos que nos levem "a recordar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente, a abrir-nos com confiança ao futuro"(9).

Ao fazê-lo gostaria de me inspirar nas indicações dedicadas pela Redemptoris missio à espiritualidade missionária; para o cristão ou para a Igreja, de facto, a espiritualidade não pode ser apenas um resíduo de orações e de boas intenções, a cultivar no próprio íntimo mas, ao contrário, porque nos mantém unidos a Cristo, é a fonte da qual a missão nasce e onde cresce continuamente.

1. Deixar-se guiar pelo Espírito

É este o título com que Redemptoris missio 87 pede para "viver em plena docilidade ao Espírito": só uma atitude semelhante nos torna conformes a Cristo, nos enche dos "dons da fortaleza e do discernimento" e nos transforma em "testemunhas iluminadas da sua Palavra". Esclarecendo ulteriormente "estas atitudes, a Redemptoris missio convida a manter juntas "a franqueza de proclamar o Evangelho" e o compromisso para "perscrutar os caminhos misteriosos do Espírito e a deixar-se guiar por ele em toda a verdade".

Não é difícil compreender que a proclamação do Evangelho evoca o ministério apostólico que a Igreja recebeu do seu Senhor enquanto os caminhos misteriosos do espírito recordam as modalidades de acção divina que, segundo o concílio (10), agem também fora dos confins da Igreja. Trata-se de dois elementos irrenunciáveis porque remetem para o único Senhor que, enquanto estabeleceu para a sua Igreja uma tarefa específica (11), manteve para si a liberdade de desenvolver esta acção salvífica nas formas que quiser (12). Recentemente, também Bento XVI insistiu sobre a universalidade do amor desenvolvendo quer o seu carácter eclesial "pertence à sua [da Igreja] natureza, é expressão irrenunciável da sua essência" quer a dimensão extra-eclesial: a "caritas-agape ultrapassa as fronteiras da Igreja" (13).

Parece-me que esta foi a atitude de Xavier, cujo zelo apostólico é ao mesmo tempo necessidade de proclamar o Evangelho e abertura ao Espírito. Presumivelmente reencontramos aqui o fruto do magis inaciano, isto é, da convicção de que se deva responder ao amor de Deus com um amor que nunca esmorece, sempre maior. Este princípio torna-se nele gerador de energias até ao ponto que a sua pessoa, totalmente animada pelo amor de Deus, vive para a missão. Em pouco mais de uma dezena de anos, percorrerá mais de cinquenta mil quilómetros passando da Índia a Singapura, da Malásia ao Japão. Como não ver algo de semelhante à experiência de Paulo que, segundo Act 16, 9-10, tem uma visão que o leva à Macedónia, "considerando que Deus nos tivesse chamado para anunciar ali a palavra do Senhor"?

Certamente nem todas as acções de Xavier são fruto da chamada divina; há várias razões que o indicam como filho do seu tempo: basta pensar em como Xavier leu o impulso apostólico para a salvação das almas da sua perdição, de outro modo certa, ou nas consequências da sua falta de conhecimentos dos mundos onde trabalhava. De Xavier podemos igualmente apreciar o esforço de entrar pessoalmente em contacto com as pessoas; não lhe passa despercebido que um verdadeiro e profundo encontro pessoal exige também a inculturação mas considera que, para proclamar Cristo, seja suficiente usar o português dos mercantes e dos servos, do povo comum e dos colonos. Em poucas palavras, Xavier, sem instrumentos para se preparar para o encontro com a Ásia do seu tempo, mesmo se pede pessoal instruído capaz de dialogar com as pessoas cultas, porá no centro a pregação de Cristo e enriquecê-la-á com o testemunho de uma vida virtuosa, recta e misericordiosa. Na sua opinião, deveria bastar para conquistar o coração das pessoas (14). Se abandonarmos uma visão ética para arriscar uma hipótese teológica, podemos dizer que Xavier, mesmo se com limites, vê o apostolado como a revelação e a expressão do amor de Deus na humanidade do amor do missionário (15).

A nossa visão actual é subtilmente diversa. Nós continuamos a missão de Cristo num modo que reconhece abertamente a dignidade de cada ser humano(16); se afirmamos com Xavier que não há verdadeira evangelização sem a proclamação da fé em Jesus Cristo, ao mesmo tempo sabemos que esta missão deve ter em consideração as circunstâncias. Há tantas, diversas modalidades de exercer a missão mas as diferenças "dentro da única missão da Igreja nascem não de razões intrínsecas à própria missão mas das diversas circunstâncias em que ela se desenvolve"(17). Entre estas circunstâncias, reconhecemos o valor do diálogo inter-religioso: "entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíprocos, ele não se contrapõe à missão ad gentes, aliás tem vínculos especiais com ela e é uma sua expressão"(18).

Nesta situação complexa, também hoje a Igreja está chamada a ouvir e a seguir aquele Espírito que "sopra onde quer e ouves a sua voz mas não sabes de onde vem nem para onde vai"(19); sabemos bem que, como ensinou João Paulo II, "o Espírito estimula a ir sempre adiante, não só em sentido geográfico, mas também além das barreiras étnicas e religiosas, para uma missão verdadeiramente universal"(20). Este "ir adiante", convida a superar qualquer barreira, a não temer mas a procurar em todas as coisas servir o amor de Deus; sabemos também que é impossível "vincular-se totalmente à obra evangélica [...] sem a inspiração e a força do Espírito Santo"(21). Por isso toda a Igreja deverá pôr-se à escuta da missão como um lugar privilegiado de escuta do Espírito mas, também, o mundo da missão deverá ouvir a Igreja quando recorda a impossibilidade de "uma economia do Espírito Santo com um carácter mais universal da do Verbo encarnado, crucificado e ressuscitado"(21).

2. Viver o mistério de Cristo "enviado"

O segundo aspecto que os trechos da Redemptoris missio sobre a espiritualidade missionária recordam é a necessidade de "uma comunhão íntima com Cristo"(23); sem esta conformação com Cristo não pode haver missão alguma. Desta orientação, a encíclica elenca uma série de comportamentos que tornam esta referência decisiva e concreta. A citação do texto de 1 Cor 9, 22-23, com o seu radical convite a "fazer-se tudo em todos para salvar alguém", remete não só para um agir mas para aquela mesma "presença confortadora de Cristo" que, enquanto acompanha o missionário em cada momento da sua vida, "o espera no coração de cada homem"(24).

Estes temas são facilmente documentáveis na pessoa de Xavier que, quase espontaneamente, os encontra na espiritualidade que rege a sua acção missionária: a glória de Deus, o amor pascal de Cristo crucificado, a salvação das almas são os elementos que guiam a sua personalidade apostólica. Longe das escolhas molinistas, que mais tarde os jesuítas abraçarão, Xavier coloca-se na tradição agostiniano-tomista que vê Deus como o único autor de todos os bens; disto tira tanto uma lição de humildade, porque sabe que é apenas um instrumento nas mãos de Deus, quer um total abandono ao seu Senhor. Este último aspecto toca a mística porque a confiança radical no Deus amor leva Xavier, à semelhança do seu Senhor, a viver de amor e, portanto, a sentir no próprio coração o pecado da humanidade como um tormento. Para alcançar o coração dos homens, sabe que deve entrar nesta miséria e sabe que não o pode fazer sem o apoio de Deus. Isto leva-o à comunhão com Cristo, à sua oração contínua, ao seu natural passar do amor de Deus ao amor pelo homem. Só assim, só aceitando amar como ama o seu Deus, livre e gratuitamente, ele alcança o segredo último da vida missionária; trata-se do mistério da encarnação e da Páscoa: só ao preço da kénosis, só ao preço de um seu total despojamento, Xavier sente com os sentimentos de Deus e, reencontrando o amor que Deus já derramou sobre as suas criaturas, dele tira o compromisso necessário para o fazer resplandecer.

Penso que não se possa, ainda hoje, não estar de acordo com esta orientação e com a antropologia que ela supõe. Mesmo se uma tradição teológica, devedora da heresia ariana(25), falou de uma criatura humana que só num segundo momento entra em relação com Cristo, a valorização plena do amor cristão salvífico do Senhor Jesus comporta uma plena correspondência da pessoa a este dom. No amor com que Deus constitui a pessoa humana como destinatária da sua vida, o homem encontra-se contemporaneamente na sua diferença criatural e na sua semelhança participada com Deus. Se a liberdade criada exprime ambas, ambas estão interpeladas pelo Evangelho de Cristo. O encontro com o Deus de Jesus está assim na origem quer do crente quer do homem.

Pode-se compreender assim a expressão de Redemptoris missio 88 que a presença de Cristo "espera o missionário no coração de cada homem".

Se, como o próprio Papa João Paulo II ensinou, "a realidade incipiente do reino pode encontrar-se também além dos confins visíveis da Igreja em toda a humanidade"(26) enquanto a acção do Espírito se revela "presente em todos os tempos e lugares"(27), então a missão não é uma comunicação em sentido único mas, enquanto se proclama o Evangelho, é um captar também a sua misteriosa vitalidade que predispõe ao acolhimento do próprio Evangelho(28). Sabemos o número de problemas que se encontram neste campo e as consequências impróvidas derivantes para alguns teólogos. É suficiente dizer que Jesus Cristo, sendo Deus, representa aquele amor pessoal que entrega o homem a si mesmo de modo livre, que lhe permitirá ser partícipe do dom recebido e acolhido; enquanto homem, representa aquela figura finita e histórica que se deixa modelar pelo Verbo de forma a representar pela sua plena correspondência a forma definitiva e insuperável da efusão do amor divino na história.

No mistério da encarnação explica-se assim a estrutura última das pessoa humana como constituição aberta a uma excedência que a supera. Dado que nesta abertura da pessoa ao Ser está implícita a abertura a ser-mais, isto é, um caminho rumo à maturação, então a teologia que indica esta plenitude na relação com Cristo vê inscrita, na abertura do homem ao ser, como que uma exigência religiosa, como que uma exigência de encontro com o mistério santo de Deus. Esta exigência não pode senão ser ainda anónima e indefinível, suscitadora de admiração e de tremor: só o amor livre de Deus a pode realizar. Contudo, se é esta a vontade do Pai, como afirma 1 Tm 2, 3-6, então ela realiza-se naquela forma transcendente e insuperável, a única que é digna de Deus, realizar-se-á no mistério daquele Cristo no qual encontra plana luz o mistério do homem.

Conclusão

Desejo concluir esta reflexão com uma última observação que se refere ao amor profundo de Xavier pela Igreja. Xavier era uma personalidade eclesial no sentido mais profundo e nobre da palavra: isto é, sentia pela Igreja a mesma atitude de Jesus Cristo que "amou a Igreja e se entregou por ela"(29). É quanto desenvolve o extracto de Redemptoris missio que escolhemos como guia; o n. 89 recorda de facto que "só um amor profundo pela Igreja pode amparar o zelo do missionário". Dado que a sua preocupação quotidiana é "a preocupação por todas as Igrejas" assim escreve Paulo em 2 Cor 11, 28 está chamado a encher de sensibilidade católica todos os momentos. Transformado pelo amor divino, cheio de zelo pelas almas, o missionário está cheio de amor pela Igreja. Xavier foi homem de Igreja de modo sincero e profundo.

Deixai que me dirija a vós, estudantes provenientes das Igrejas dos vários continentes, para vos exortar e encorajar a cultivar este profundo sentido eclesial. O aperfeiçoamento dos vossos estudos aqui, em Roma, nesta universidade católica única na Igreja Católica pelo seu carácter missionário, tem este significado: apaixonar-vos pela Igreja. Aqui, onde Pedro e Paulo derramaram o seu sangue pelo Senhor, aqui onde Xavier recebeu a sua obediência, aqui onde surgiu a Congregação de Propaganda Fide para animar a obra missionária da Igreja, aqui onde é quase natural raciocinar com respiro católico, aqui espero de vós as mesmas palavras ricas de fé e de docilidade eclesial com que Francisco Xavier respondeu a Inácio quando lhe propôs a missão. "Pues, sus, hème aqui": pois bem, eis-mepronto. Este espírito eclesial permitirvos-á reviver o espírito de Xavier, juntamente com uma profunda, renovada preparação intelectual e humana, e fará que sejais capazes de realizar aquela primavera missionária que, hoje, a Igreja e a humanidade esperam.


NOTAS

1. Era este o parecer de F. Fukuyama (The End of History and the Last Man, Nova Iorque 1992; tr. It. La fine della storia e l'ultimo uomo, Milão 1996) que, com base num finalismo histórico, supunha o seu cumprimento com a globalização tecnológica e com a afirmação do modelo liberal-democrático do Ocidente; a seu parecer, a queda do império soviético era o seu evidente sinal. De parecer totalmente oposto é S. Huntington (The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, Nova Iorque 1997; tr. it. Lo scontro delle civiltà e il nuovo ordine mondiale, Milão 1997) que rejeita esta visão do modelo único; para ele o fim do bipolarismo libertou as diversas civilizações, de que as religiões fazem parte fundamental, desta construção e vê-as agora em contraposição. Ao bipolarismo não se sucedeu uma civilização unitária mas um multipolarismo.

2. Não tendo notícias concretas sobre estes povos, os dois camaldolenses atêm-se à comum interpretação de Rm 10, 18 e continuam a considerar que os apóstolos tenham pregado o Evangelho também a estes povos mas que eles, depois, tenham esquecido aquele primeiro anúncio (P. Giustiniani P. Quirini, "Lettera al Papa". Libellus ad Leonem X [1513]. Notícias introdutivas e versão italiana de G. Bianchini, Módena 1995).

3. P. Giustiniani P. Quirini, "Lettera al Papa", cit., 13.

4. Ibid., 17

5. J. Metzler, Dalle missioni alle Chiese locali (1846-1965), Paoline, Cisinello Balsamo (MI) 1990.

6. Em relação a isto, o texto magisterial talvez mais claro é o do Sínodo dos Bispos de 1971: "o agir pela justiça e o participar na transformação do mundo aparecem claramente como ratio constitutiva da pregação do Evangelho, ou seja, da missão da Igreja para a redenção do género humano e a libertação de qualquer situação opressiva" (Sínodo dos Bispos, A justiça no mundo, 30 de Novembro de 1971); texto em Enchiridion Vaticanum. IV, Dehoniane, Bolonha 1978, 803.

7. Redemptoris missio, 86.

8. Dominus Iesus 3.

9. Novo millennio ineunte 1.

10. "Por conseguinte, mesmo se Deus, através de vias que lhe são conhecidas, possa guiar os homens, que sem culpa ignoram o Evangelho, à fé..." (Ad gentes 7). Fórmulas semelhantes, "do modo que Deus conhece", encontram-se em Gaudium et spes, 22.

11. É o tema do "grande mandamento": Mt 28, 16-20; Mc 16, 15; Act 1, 8.

12. É suficiente recordar o comentário de Tomás sobre a salvação de quem, mesmo se privado do Baptismo, sente dele um profundo desiderium; Tomás reconhecerá igualmente a sua salvação "propter desiderium Baptismi, quod procedit ex fide per dilectionem operante, per quam Deus interius hominem sanctificat, cuius potentia sacramentis visibilibus non alligatur" (Summa Theologica III, q. 68, a.2, em c.). De modo análogo Redemptoris missio 10 fala da universalidade da graça pascal de Cristo que considera verdadeira também para quantos não têm a possibilidade de conhecer o Evangelho e de se converter: "Para eles a salvação de Cristo é acessível em virtude de uma graça que, mesmo tendo uma relação misteriosa com a Igreja, não os introduz formalmente nela mas os ilumina de modo adequado à sua situação interior e ambiental".

13. Deus caritas est 25. Falando da Igreja, família de Deus no mundo não deve haver quem sofre por falta do necessário. Ao mesmo tempo a caritas-agape ultrapassa as fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impõe a universalidade do amor que se destina ao necessitado que se encontra "casualmente", seja ele quem for (Ibid.).

14. Na carta de Fevereiro de 1548 escreve: "recomendo vivamente que vos comprometais para vos fazer amar nas aldeias que visitais ou onde residis, com obras boas e palavras gentis, para serdes amados por todos e nunca detestados. Deste modo, tereis maiores frutos".

15. Este fio que liga o missionário a Deus parece-me ser intuído por J. Polanco, secretário de Inácio; quando é informado da morte de Xavier, escreve: "a bondade divina cortou o fio dos projectos do padre Francisco. E você, lhos tinha sugerido, mas desejava que primeiro morresse ele mesmo, à imitação de Cristo, como um grão de mostarda lançado no limiar da China: assim outros teriam colhido frutos mais abundantes. Um semeia, outro colhe". Quando Xavier morreu, Matteo Ricci tinha apenas dois meses.

16. O Concílio "declara que o direito à liberdade religiosa funda-se realmente sobre a mesma dignidade da pessoa humana, como se conhece quer por meio da Palavra de Deus revelada quer através da razão" (Dignitatis Humanae, 2).

17. Redemptoris missio 33.

18. Ibidem, 55.

19. Jo 3, 8.

20. Redemptoris missio, 25.

21. Ad gentes, 24.

22. Dominus Iesus, 12.

23. Redemptoris missio, 88.

24. Ibidem.

25. Por receio de cair em erro ariano, a teologia pós-nicena abandona totalmente o papel cósmico do Verbo; a criação em Cristo será substituída pela criação do Pai omnipotente com o resultado que a relação do mundo criado com o Verbo não é constitutivo da sua existência mas é só sucessivo ao seu existir.

26. O texto preciso, reafirmado em Dialogo e Annuncio 35 e globalmente presente em Dominus Iesus 12, diz: "É verdade que a realidade incipiente do reino pode encontrar-se também além dos confins da Igreja em toda a humanidade, se ela viver os "valores evangélicos" e se abrir à acção do Espírito que sopra onde e como quer; mas é preciso acrescentar que esta dimensão temporal do reino é incompleta se não estiver coordenada com o reino de Cristo presente na Igreja e tendente para a plenitude escatológica" (Redemptoris missio, 20).

27. Redemptoris missio 29. Além desta acção universal, actuante também nas outras religiões, o mesmo número refere mais dois esclarecimentos: o Espírito não é "alternativo a Cristo, nem enche uma espécie de vazio [...]. Tudo o que o Espírito realiza no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e nas religiões, assume um papel de preparação evangélica e não pode ter referência com Cristo...".

28. São os temas da "semina Verbi", da "praeparatio evangelica", dos "elementos de santidade e verdade" presentes também fora da Igreja visível.

29. Ef 5, 25.

 

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