INTERVENÇÃO DO CARDEAL TARCISIO BERTONE
Senhor Presidente Como diz o Concílio Vaticano II, a Igreja por sua própria natureza é real e intimamente solidária com o género humano e com a sua história: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe de verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração" (Gaudium et spes, 1). Mas a história da Igreja católica do século XX cruzou-se com uma tragédia sem precedentes como o extermínio planificado de seis milhões de judeus. Averiguar os acontecimentos e debater sobre o seu desencadeamento é tarefa dos historiadores, que já se confrontam há decénios sobre as fontes, procurando sempre novas e enriquecendo o património das nossas consciências. A tragédia bélica e o Shoah marcaram profundamente a nossa civilização. O património de tolerância e de democracia foi submetido a uma dura prova, mas foi também posta em perigo a Europa com os seus valores religiosos. Os homens de boa vontade defenderam sempre este património, estes valores, quando tudo já parecia estar perdido. "Tu, ó meu Senhor, fizeste de tudo para que eu não acreditasse em Ti. Mas eu morro do modo como vivi: com uma fé em Ti inabalável". O judeu Yossl Rakover, do qual narra Kolitz, dirige-se ao Omnipotente com estas palavras, antes de sucumbir aos nazistas na insurreição do Gueto de Varsóvia. Parece-nos ler nestas palavras também a história dos Justos, tão analiticamente descrita no livro de Sir Martin Gilbert, que hoje apresentamos. É uma história de bem, aliás, de uma corrente de bem que atravessa a humanidade prescindindo das diferenças religiosas. Os cristãos, entre os quais muitíssimos católicos, mas também os muçulmanos, aceitaram (ao preço da própria vida) salvar os judeus do Shoah. Por vezes agiram sem esperar ter medo, por vezes perseguidos pelo terror de um trágico destino, outras vezes duvidosos, outras hesitantes. Mas agiram e fizeram-no conduzindo uma guerra pacífica e silenciosa para a salvação dos numerosos judeus que corriam o risco de morrer nos Lagers. Esta, foi uma guerra feita sem proclamas, sem manifestos, sem teorias, sem rectórica, e estes "Justos" combateram-na por vezes contra as convicções e os preconceitos do seu próprio ambiente. Nesta guerra a Igreja católica, entendida como instituição, desempenhou a sua parte. Específica e relevante, sob Pio XII e seguindo as suas orientações, ela procurou coordenar os esforços em favor das vítimas de guerra, sobretudo em transmitir um exemplo aos fiéis. Não se tratava apenas de organizar burocraticamente a pesquisa dos dispersos e a assistência aos presos. Foi ao contrário uma atitude concreta em relação aos judeus perseguidos. Eles precisavam de ajuda, de todas as formas possíveis. É este o pressuposto sobre o qual se fundou a acção do Papa e dos seus colaboradores, como sobressai da documentação existente. Recebi recentemente a Irmã Margherita Marchione que me apresentou a Obra "Cruzada de caridade: o compromisso de Pio XII pelos presos da segunda guerra mundial". É uma documentação impressionante. Por conseguinte, a história dos Justos católicos cruza-se com a acção de Pio XII. Ela é antes de tudo uma história de compreensão e de diálogo na caridade, assim como está registrada nos numerosos testemunhos referidos por Gilbert. Trata-se de uma história que viu comprometidos juntos católicos e judeus (pensemos no papel de Mons. Roncalli em Istambul), intercalado de compromisso, de esperança e de gratidão dos isreelenses pela Igreja e pelo Papa. Mas é sobretudo uma história que priva qualquer razão de ser as recorrentes acusações de "colaboracionismo" papal e de anti-semitismo católico. Porque independentemente dos condenáveis preconceitos de alguns núcleos de cristãos, permanece o facto de que o anti-semitismo já tinha sido há muito tempo condenado pelo Vaticano. É este o tecido sobre o qual se desenvolve a história dos "Justos", tornada ainda mais preciosa pelo facto de provir de um celebrado e autorizado estudioso judeu, cuja obra é publicada na Itália por uma editora católica. Mas a história que se lê neste volume de Martin Gilbert merecia ser conhecida também por outro motivo: porque ela não é só a história daqueles "Justos" proclamados tais diante do mundo; mas é também a história dos tantos "Justos implícitos", que não puderam ser honrados porque se tinha perdido a sua memória histórica. Recuperar esta memória foi a tarefa do Autor, cuja intenção teve um brilhante êxito, oferecendo-nos um património de conhecimentos a serem transmitidos sobretudo às jovens gerações: para que elas aprendam a não esquecer o Shoah e o valor da memória do bem que se liga a ela. Desejo aqui citar os justos de um país muito martirizado devido a razões contrastantes, isto é, da Polónia. Segundo o historiador polaco Jan Zaryn, membro do Instituto da Memória Nacional, nas várias formas de ajuda aos judeus estavam comprometidos cerca de um milhão de polacos. Um milhão de polacos em todos os momentos corriam o perigo da morte imediata por obra dos invasores alemães (este risco alargava-se com frequência a toda a família da pessoa que oferecia ajuda). Muitas vezes esquecemo-nos de que a Polónia era o único pais onde estava em vigor a pena de morte para quem ajudava os judeus. Um activista judeu, Adolf Barman recordou este facto importantíssimo durante a conferencia relativa à ajuda aos judeus durante a guerra mundial, realizada em Jerusalém em 1974 (veja Rescue Attempts during the Holocaust, Yad Vashem, Jerusalém 1977, p. 453). Por isso foram milhares os polacos que morreram para ajudar os seus concidadãos judeus. Alguns deles receberam a medalha dos "Justos entre as Nações do Mundo", outros são vistos como exemplos de virtudes cristas, sobretudo da caridade. Em Agosto de 2003 na diocese de Przemysl teve início o processo diocesano de uma família inteira: Giuseppe Ulma, sua esposa Vittoria, seis filhos e outro filho que não nasceu (Vittoria estava nos últimos meses de gravidez) massacrados pelos policias alemães na aldeia Markowa, por terem escondido em casa oito judeus. Termino citando o discurso feito por Bento XVI, por ocasião dos votos de natal à Cúria Romana, durante o qual sintetizou as emoções sentidas durante as suas viagens apostólicas, entre as quais a que fez à Polónia: "Nas minhas deslocações na Polónia disse não podia faltar a visita a Auschwitz-Birkenau no lugar da barbárie mais cruel da tentativa de cancelar o povo de Israel, de vanificar assim também a eleição feita por Deus, de eliminar o próprio Deus da história. Foi para mim motivo de grande conforto ver aparecer no céu naquele momento o arco-íris, enquanto eu, diante do horror daquele lugar, com a atitude de Job, gritava a Deus, abalado pelo receio da sua aparente ausência e, ao mesmo tempo, amparado pela certeza de que Ele também no seu silencio não deixa de estar e de permanecer connosco. O arco-íris era como que uma resposta: sim, eu estou aqui, e as palavras da promessa, da Aliança, que pronunciei depois do dilúvio, são válidas também hoje (cf. Gn 9, 12-17). |
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