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DISCURSO DO CARDEAL TARCISIO BERTONE
SOBRE A ENCÍCLICA «CARITAS IN VERITATE»
NO SENADO DA REPÚBLICA ITALIANA

Terça-feira 28 de Julho de 2009

A encíclica de Bento XVI começa com uma introdução, que constitui uma densa e profunda reflexão em que são retomados os termos do próprio título, que une estreitamente entre si a caritas e a veritas, o amor e a verdade. Trata-se não apenas de uma espécie de explicatio terminorum, de um esclarecimento inicial, mas deseja-se indicar os princípios e as perspectivas fundamentais de todo o seu ensinamento. Efectivamente, como numa sinfonia, o tema da verdade e da caridade retorna em seguida ao longo de todo o documento, precisamente porque é aqui que está, como escreve o Papa, "a principal força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira". (Caritas in veritate, n. 1).

Mas — interrogamo-nos — de que verdade e de que amor se trata? Não há dúvida de que precisamente estes conceitos suscitam hoje todas as suspeitas — principalmente o termo verdade — ou são objecto de mal-entendido — e isto é válido sobretudo para o termo "amor" —. Por isso, é importante esclarecer de que verdade e de que amor fala a nova encíclica. O Santo Padre faz-nos compreender que estas duas realidades fundamentais não são extrínsecas ao homem, ou mesmo impostas a ele em nome de uma visão ideológica qualquer, mas têm um profundo arraigamento na própria pessoa. Com efeito, "amor e verdade afirma o Santo Padre — são a vocação posta por Deus no coração e na mente de cada homem" (n. 1) daquele homem que, em conformidade com a Sagrada Escritura, é precisamente criado "à imagem e semelhança" do seu Criador, ou seja, do Deus bíblico, que é ao mesmo tempo Ágape e Lógos: Caridade e Verdade, Amor e Palavra" (n. 3).

Esta realidade é-nos testemunhada não apenas pela Revelação bíblica, mas pode ser compreendida por todos os homens de boa vontade que recorrem rectamente à sua razão quando reflectem sobre si mesmos ("A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade", n. 3). A este propósito, parecem explicar bem tal visão alguns conteúdos de um significativo e importante documento emanado pouco tempo antes da publicação da Caritas in veritate: a Comissão Teológica Internacional ofereceu-nos nos meses passados um texto intitulado: "Em busca de uma ética universal: um novo olhar sobre a lei natural". Ele enfrenta algumas temáticas de grande importância, que faço questão de indicar e recomendar especialmente neste contexto do Senado, ou seja, de uma instituição que tem como função precípua a produção normativa. Com efeito, como o Santo Padre disse à Assembleia da Organização das Nações Unidas em New York, durante a sua visita do ano passado ao Palácio de Vidro, a propósito do fundamento dos direitos humanos: "Estes direitos encontram o seu fundamento na lei natural inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações. Separar os direitos humanos de tal contexto significaria limitar o seu alcance e ceder a uma concepção relativista, pela qual o sentido e a interpretação dos direitos poderia variar e a sua universalidade poderia ser negada em nome das diversas concepções culturais, políticas, sociais e também religiosas" (18 de Abril de 2008). São considerações que valem não apenas para os direitos do homem, mas para cada intervenção da autoridade legítima, chamada a regular em conformidade com a verdadeira justiça a vida da comunidade mediante leis que não sejam fruto de um mero entendimento convencional, mas tenham em vista o autêntico bem da pessoa e da sociedade e, por este motivo, façam referência a esta lei natural.

Pois bem, a Comissão Teológica Internacional, ao expor a realidade da lei natural, explica precisamente o modo como a verdade e o amor são exigências essenciais de cada homem, profundamente arraigadas no seu ser. "Na sua busca do bem moral, a pessoa humana coloca-se à escuta daquilo que ela é e toma consciência das inclinações fundamentais da sua natureza" (Em busca de uma ética universal: um novo olhar sobre a lei natural, n. 45), que orientam o homem para os bens necessários para a sua realização moral. Como se sabe, "distinguem-se tradicionalmente três grandes conjuntos de dinamismos naturais... O primeiro, que lhe é comum com todos os seres substanciais, compreende essencialmente a inclinação a conservar e a desenvolver a própria existência. O segundo, que lhe é comum como todos os seres vivos, compreende a inclinação a reproduzir-se para perpetuar a espécie. O terceiro, que lhe é próprio como ser racional, comporta a inclinação a conhecer a verdade sobre Deus e a viver na sociedade" (n. 46). Aprofundando este terceiro dinamismo, que se encontra em cada pessoa, a Comissão Teológica Internacional afirma que ele "é específico do ser humano como ser espiritual, dotado de razão, capaz de conhecer a verdade, de entrar em diálogo com os outros e de estabelecer relacionamentos de amizade (...) O seu bem integral está tão intimamente ligado à vida em comunidade, que se organiza em sociedade política em virtude de uma inclinação natural e não de uma simples convenção. O carácter relacional da pessoa exprime-se também com a tendência a viver em comunhão com Deus ou o Absoluto (...) Sem dúvida, pode ser negada por aqueles que rejeitam admitir a existência de um Deus pessoal, mas permanece implicitamente presente na busca da verdade e do sentido presente em cada ser humano" (n. 50).

Por conseguinte, o homem é feito para conhecer mediante a "vastidão da razão" (cf. Discurso de 12 de Setembro de 2006 na Universidade de Regensburg) a verdade em toda a sua amplitude, ou seja, sem se limitar a adquirir conhecimentos técnicos para dominar a realidade material, mas abrindo-se a ponto de encontrar o Transcendente, e para viver plenamente a dimensão interpessoal do amor, "princípio não só das microrrelações: relacionamentos de amizade, de família, de pequeno grupo, mas também as macrorrelações: relacionamentos sociais, económicos e políticos" (Caritas in veritate, 2). São precisamente a veritas e a caritas que nos indicam as exigências da lei natural, que Bento XVI coloca como critério fundamental da reflexão de ordem moral sobre a actual realidade socioeconómica: ""Caritas in veritate" é princípio ao redor do qual gira a doutrina social da Igreja, um princípio que adquire forma operativa em critérios orientativos da acção moral" (n. 6). Com expressão eficaz, o Santo Padre afirma portanto que "a doutrina social da Igreja (...) é caritas in veritate in re sociali: anúncio da verdade do amor de Jesus Cristo na sociedade. Tal doutrina é serviço da caridade, mas na verdade" (n. 5).

A proposta da encíclica não é de carácter ideológico, nem é reservada unicamente àqueles que compartilham a fé na Revelação divina, mas fundamenta-se em realidades antropológicas fundamentais, que são precisamente a verdade e a caridade rectamente entendidas, ou como afirma a própria encíclica, concedidas ao homem e por ele recebidas, não por ele produzidas arbitrariamente ("A verdade, que é dom tal como a caridade, é maior do que nós, conforme ensina Santo Agostinho. Também a verdade acerca de nós mesmos, da nossa consciência pessoal é-nos primariamente "dada"; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade não é produzida por nós, mas sempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela "não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano"" Caritas in veritate, n. 34). Bento XVI deseja recordar a todos que somente ancorando-se neste dúplice critério da veritas e da caritas, entre si inseparavelmente vinculadas, se pode construir o autêntico bem do homem, criado para a verdade e o amor. Segundo o Santo Padre, "somente mediante a caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de um valor mais humano e humanizador" (n. 9).

Depois desta premissa indispensável, em que desejei evidenciar alguns aspectos antropológicos e teológicos do texto pontifício, talvez menos comentados pelos serviços jornalísticos, desejo expor agora somente alguns pontos, sem ter a pretensão de abranger o vasto conteúdo da encíclica da qual, de resto, comentadores autorizados, também nas páginas de "L'Osservatore Romano" ou alhures, já ofereceram aprofundamentos específicos.

Uma mensagem importante que nos advém da Caritas in veritate é o convite a superar a dicotomia já obsoleta entre a esfera do económico e a esfera do social. A modernidade deixou-nos como herança a ideia com base na qual, para poder trabalhar no campo da economia, é indispensável ter em vista o lucro e ser animado prevalecentemente pelo próprio interesse; como se disséssemos que não se é plenamente empresário, se não se persegue a maximização do lucro. Caso contrário, dever-nos-íamos contentar com fazer parte da esfera do social.

Esta conceitualização, que confunde a economia de mercado, que é o genus com uma sua species particular como é o sistema capitalista, levou a identificar a economia com o lugar da produção da riqueza (ou do rendimento) e o social com o lugar da solidariedade, para uma distribuição equitativa da mesma.

A Caritas in veritate diz-nos, pelo contrário, que ser empresário é possível até quando se perseguem finalidades de utilidade social e se é impelido à acção por motivações de tipo pró-social. Este é um modo concreto, ainda que não o único, de preencher a lacuna entre o económico e o social, dado que um agir económico que não incorporasse no seu próprio interior a dimensão do social, não seria eticamente aceitável, como é igualmente verdade que um social meramente redistributivo, que não considerasse o vínculo dos recursos, não seria sustentável a longo prazo: antes de poder distribuir é necessário, efectivamente, produzir.

Devemos estar particularmente gratos a Bento XVI por ter desejado sublinhar o facto de que o agir económico não é algo separado e alheio aos princípios fulcrais da doutrina social da Igreja, que são os seguintes: centralidade da pessoa humana, solidariedade, subsidiariedade e bem comum. É necessário superar a concepção prática com base na qual os valores da doutrina social da Igreja deveriam encontrar espaço unicamente nas obras de natureza social, enquanto aos especialistas de eficácia caberia a tarefa de governar a economia. O mérito, certamente não secundário, desta encíclica é o de contribuir para remediar esta lacuna, que é cultural e, ao mesmo tempo, também política.

Contrariamente àquilo que se pensa, não é a eficácia o fundamentum divisionis para distinguir aquilo que é empresa e o que não o é, e isto pela simples razão que a categoria da eficácia pertence à ordem dos meios, e não à ordem dos fins. Efectivamente, devemos ser eficazes para alcançar o melhor fim que, livremente, escolhemos atribuir à nossa própria acção. O empresário que se deixa orientar por uma eficácia que é fim em si mesma, corre o risco de decair no eficientismo, que hoje em dia é uma das causas mais frequentes de destruição da riqueza, como a crise económico-financeira em acto tristemente confirma.

Ampliando um instante a perspectiva do discurso, dizer mercado significa dizer competição, e isto no sentido que não pode existir o mercado lá onde não existe prática de competição (embora o contrário não seja verdadeiro). E não há quem não veja como a fecundidade da competição está no facto de que ela implica a tensão, a dialéctica que pressupõe a presença de outra pessoa e o relacionamento com outro. Sem tensão não existe movimento, mas o movimento — eis a questão — ao qual a tensão dá lugar pode ser também mortal, ou seja gerador de morte.

Quando a finalidade do agir económico não é a tensão para um objectivo comum — como a etimologia latina cum-petere — deixaria claramente entender mas a hobbesiana mors tua, vita mea, o vínculo social é reduzido à relação mercantil e a actividade económica tende a tornar-se desumana e, por conseguinte, em última análise, ineficaz. Portanto, inclusive na competição, a "doutrina social da Igreja considera que possam ser vividos relacionamentos autenticamente humanos, de amizade e de sociabilidade, de solidariedade e de reciprocidade, também no interior da actividade económica e não apenas fora dela ou "depois" dela. A esfera económica não é eticamente neutral nem por sua natureza desumana e anti-social. Ela pertence à actividade do homem e, precisamente porque é humana, deve ser estruturada e institucionalidade eticamente" (n. 36).

Pois bem, o lucro, decerto não indiferente, que a Caritas in veritate nos oferece é o de tomar em profunda consideração aquela concepção do mercado, típica da tradição de pensamento da economia civil, em conformidade com a qual pode-se viver a experiência da sociabilidade humana no interior de uma vida económica normal, e já não fora dela ou ao lado dela. Esta é uma concepção que se poderia definir alternativa, quer a respeito daquela que vê o mercado como lugar da exploração e da prepotência do forte sobre o fraco, quer àquela que, em sintonia com o pensamento anarquista-liberalista, o vê comolugarcapaz de oferecer uma soluçãoa todos os problemas da sociedade.

Este modo de fazer empresa diferencia-se da economia de tradição smithiana que vê o mercado como a única instituição verdadeiramente necessária para a democracia e para a liberdade. A Doutrina Social da Igreja recorda-nos, ao contrário, que uma boa sociedade é certamente fruto do mercado e da liberdade, mas existem exigências, reconduzíveis ao princípio de fraternidade, que não podem ser evitadas, nem remetidas unicamente à esfera particular ou à filantropia. Sobretudo, ela propõe um humanismo com várias dimensões, em que o mercado não é combatido ou "controlado", mas é visto como um momento importante da esfera pública — esfera que é muito mais vasta daquilo — que é estatal que, se for concebido e vivido como lugar aberto também aos princípios de reciprocidade e do dom, pode construir uma convivência civil sadia.

Tomo então em consideração um dos temas presentes na encíclica que me parece ter suscitado um certo interesse público pela novidade que revestem os princípios de fraternidade e de gratuidade no agir económico. "O desenvolvimento, se quiser ser autenticamente humano", — diz Bento XVI —, deve "reservar espaço ao princípio de gratuidade" (n. 34). São necessárias "formas económicas solidárias". É significativo, neste sentido, o capítulo dedicado à colaboração da família humana, onde se coloca em evidência o facto de que "o desenvolvimento dos povos depende principalmente do reconhecimento de ser uma única família", pelo que "um pensamento semelhante obriga a um aprofundamento crítico e de valor da categoria do relacionamento". E ainda: "O tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana, que se edifica na solidariedade com base nos valores fundamentais da justiça e da paz" (nn. 53-54).

A palavra-chave que hoje, melhor que qualquer outra, exprime esta exigência é a da fraternidade. Foi a escola de pensamento franciscana que atribuiu a este termo o significado que ela conservou ao longo do tempo, que constitui o complemento e a exaltação do princípio de solidariedade. Com efeito, enquanto a solidariedade é o princípio de organização social que permite aos desiguais tornar-se iguais através da sua igual dignidade e dos seus direitos fundamentais, o princípio de fraternidade é o princípio de organização social que permite aos iguais ser diferentes, no sentido de poder expressar diversamente o seu plano de vida ou o seu carisma.

Explico melhor: as estações que deixamos atrás de nós, o século XIX e sobretudo o século XX, foram caracterizadas por grandes batalhas, tanto culturais como políticas, em nome da solidariedade, e isto foi uma coisa boa; pensemos na história do movimento sindical e na luta pela conquista dos direitos civis. O ponto é que uma sociedade orientada para o bem comum não pode contentar-se com a solidariedade, mas tem necessidade de uma solidariedade que reflicta a fraternidade, uma vez que, enquanto a sociedade fraterna é também solidária, o contrário não é necessariamente verdadeiro.

Se nos esquecermos do facto de que não é sustentável uma sociedade de seres humanos em que falta o sentido de fraternidade, e em que tudo se reduz a melhorar as transacções fundamentadas no intercâmbio de equivalentes ou a aumentar as transferências realizadas por estruturas assistenciais de natureza pública, damo-nos conta do porquê, não obstante a qualidade das forças intelectuais em campo, ainda não se alcançou uma solução credível do grande trade-off entre eficácia e equidade. A Caritas in veritate ajuda-nos a adquirir consciência de que a sociedade não é capaz de futuro, se se dissolve o princípio de fraternidade; ou seja, não é capaz de progredir, se existir e se se desenvolver unicamente a lógica do "dar para ter", ou então do "dar por dever". Eis por que motivo, nem a visão liberal-individualista do mundo, em que tudo (ou quase) é intercâmbio, nem a visão estatocêntrica da sociedade, em que tudo (ou quase) é obrigação, são guias seguras para nos fazer sair dos pântanos em que hoje as nossas sociedades estão encalhadas.

Então, formula-se esta interrogação: por que volta a nascer, como um rio latente, a perspectiva do bem comum, segundo a formulação que lhe foi atribuída pela doutrina social da Igreja, depois de pelo menos uns dois séculos durante os quais ela tinha realmente saído de cena? Por que a passagem dos mercados nacionais para o mercado global, ocorrido durante o último quarto de século, está a tornar novamente actual o discurso a propósito do bem comum? Observo, de passagem, que quanto está a acontecer faz parte de um movimento mais vasto de ideias em economia, um movimento cujo objecto é o vínculo entre religiosidade e performance económica. A partir da consideração de que os credos religiosos são de importância decisiva ao forjar os mapas de conhecimento dos sujeitos e ao plasmar as normas sociais de comportamento, este movimento de ideias procura indagar até que ponto o predomínio num determinado país (ou território) de uma certa matriz religiosa influencia a formação de categorias de pensamento económico, os programas de welfare, a política escolar e assim por diante. Depois de um longo período de tempo, durante o qual a célebre tese da secularização parecia ter pronunciado a palavra fim a respeito da questão religiosa, pelo menos no que se refere ao campo económico, aquilo que hoje está a acontecer parece verdadeiramente paradoxal.

Não é tão difícil explicar a volta ao debate cultural contemporâneo da perspectiva do bem comum, verdadeiro e próprio emblema da ética católica no âmbito socioeconómico. Como João Paulo II esclareceu em diversas ocasiões, a doutrina social da Igreja não deve ser considerada comum uma teoria ética ulterior em relação às numerosas já disponíveis na literatura, mas uma "gramática comum" a elas, porque se encontra fundamentada num ponto de vista específico, que consiste em cuidar do bem comum. Na verdade, enquanto as diversas teorias éticas lançam o seu fundamento quer na busca de regras (como acontece no jusnaturalismo positivista, segundo o qual a ética deriva da norma jurídica), quer no agir (pensemos no neocontratualismo rawlsiano ou no neo-utilitarismo), a Doutrina Social da Igreja acolhe como seu ponto arquimediano o "estar com". O sentido da ética do bem comum explica que para poder compreender a acção humana, é necessário colocar-se na perspectiva da pessoa que age (cf. Veritatis splendor, n. 78) e não na perspectiva da terceira pessoa (como faz o jusnaturalismo), ou seja, do espectador imparcial (como Adam Smith tinha sugerido). Com efeito, o bem moral, sendo uma realidade prática, é conhecido primariamente não por aquele que o teoriza, mas por quem o põe em prática: é ele que o sabe identificar e, por conseguinte, escolhê-lo todas as vezes que é posto em discussão.

Então, falemos a respeito do princípio do dom em economia. O que comporta, a nível prático, o acolhimento da perspectiva da gratuidade no interior do agir económico? O Papa Bento XVI responde que mercado e política têm necessidade "de pessoas abertas ao dom recíproco" (cf. Caritas in veritate, nn. 35-39). A consequência que deriva de reconhecer ao princípio de gratuidade um lugar de primeiro plano na vida económica tem a ver com a difusão da cultura e da prática da reciprocidade. Juntamente com a democracia, a reciprocidade — definida por Bento XVI — "a íntima constituição do ser humano" (n. 57) é o valor constituinte de uma sociedade. Aliás, poder-se-ia também afirmar que é da reciprocidade que a regra democrática haure o seu derradeiro sentido.

Em que "lugares" a reciprocidade é natural, ou seja, é praticada e alimentada? A família é o primeiro de tais lugares: pensemos nos relacionamentos entre pais e filhos, e entre irmãos e irmãs. É ao redor da própria família que se desenvolve aquele relacionamento donativo típico da fraternidade. Além disso, há a cooperativa, a empresa social e as várias formas de associações. Não é porventura verdade que os relacionamentos entre os componentes de uma família ou entre os sócios de uma cooperativa são relações de reciprocidade? Hoje nós sabemos que o progresso civil e económico de um país depende basicamente de quão difundidas são as práticas de reciprocidade no meio dos seus cidadãos. Hoje existe uma imensa necessidade de cooperação: eis por que motivo temos necessidade de ampliar as formas da gratuidade e de revigorar aquelas que já existem. As sociedades que extirpam do próprio terreno as raízes da árvore da reciprocidade estão destinadas ao declínio, como a história há tempo nos ensinou.

Qual é a função própria do dom? A de fazer compreender que ao lado dos bens da justiça existem inclusive os bens da gratuidade e, por conseguinte, que não é autenticamente humana a sociedade em que as pessoas se contentam unicamente com os bens da justiça. O Papa fala da "admirável experiência do dom" (n. 34).

Qual é a diferença? Os bens da justiça são aqueles que nascem de um dever; os bens da gratuidade são aqueles que brotam de uma obbligatio. Ou seja, são bens que nascem do reconhecimento de que eu estou ligado a outra pessoa que, num certo sentido, faz parte constitutiva de mim. Eis por que motivo a lógica da gratuidade não pode ser simplisticamente reduzida a uma dimensão puramente ética; com efeito, a gratuidade não é uma virtude ética. A justiça, como já Platão ensinava, é uma virtude ética, e todos nós concordamos com a importância da justiça, mas a gratuidade diz respeito sobretudo à dimensão que vai além da ética ética do agir humano, porque a sua lógica é a superabundância, enquanto a lógica da justiça é a lógica da equivalência. Pois bem, a Caritas in veritate diz-nos que uma sociedade, para funcionar bem e para progredir, tem necessidade de que no interior da prática económica haja sujeitos, que compreendam o que são os bens da gratuidade, que se entenda, com outras palavras, que nós temos necessidade de fazer refluir o princípio da gratuidade nos circuitos da nossa sociedade.

Bento XVI convida a restituir o princípio do dom à esfera pública. O dom autêntico, afirmando o primado da relação sobre a sua isenção, do vínculo intersubjectivo sobre o bem doado, da identidade pessoal sobre o útil, deve poder encontrar espaço de expressão em toda a parte, em qualquer âmbito do agir humano, inclusive no contexto da economia. A mensagem que a Caritas in veritate nos transmite é a de pensar na gratuidade, e por conseguinte na fraternidade, como emblema da condição humana e portanto de ver no exercício do dom o pressuposto indispensável a fim de que o Estado e o mercado possam funcionar, em ordem ao bem comum. Sem práticas alargadas de dom, poder-se-á ter também um mercado eficaz e um Estado competente (e até mesmo justo), mas certamente as pessoas não serão ajudadas a realizar a alegria de viver. Porque eficácia e justiça, ainda que estejam unidas, não são suficientes para assegurar a felicidade das pessoas.

A Caritas in veritate reflecte sobre as causas profundas (e já não sobre as causas próximas) da crise ainda em acto. Não tenho a intenção de passá-las em revista, e limitar-me-ei a resumir os três factores principais de crise, identificados e examinados.

O primeiro refere-se à transformação radical na relação entre finanças e produção de bens e de serviços, que veio a consolidar-se ao longo dos últimos trinta anos. A partir dos meados dos anos 70 do século passado, vários países ocidentais condicionaram as suas promessas em matéria de aposentadoria a investimentos que dependiam da lucratividade sustentável dos novos instrumentos financeiros, expondo deste modo a economia real aos caprichos das finanças e gerando a necessidade crescente de destinar à remuneração das poupanças neles investidos quotas de valor adjunto. As pressões sobre as empresas, derivantes das bolsas e dos fundos de private equity, repercutiram-se em várias direcções: sobre os dirigentes induzidos a melhorar continuamente as performances das suas gestões, com a finalidade de receber volumes crescentes de stock options; sobre os consumidores, para os convencer a comprar cada vez mais, mesmo na ausência de poder de aquisição; sobre as empresas da economia real, para as convencer a aumentar o valor para o accionista. E deste modo aconteceu que a exigência persistente de resultados financeiros cada vez mais brilhantes se repercutiu sobre todo o sistema económico, até se tornar um verdadeiro modelo cultural.

O segundo factor causal da crise é a difusão a nível de cultura popular do ethos da eficácia, como último critério de juízo e de justificação da realidade económica. Por um lado, isto terminou por legitimar a avidez — que é a forma mais conhecida e mais difundida de avareza — como uma espécie de virtude cívica: o greed market que substitui o free market. Greed is good, greed is right (a avidez é boa; a avidez é justa), pregava Gordon Gekko, o protagonista do célebre filme Wall Street, de 1987.

Finalmente, a Caritas in veritate não deixa de reflectir sobre a causa das causas da crise: as especificidades da matriz cultural, que se foi consolidando ao longo das últimas décadas sobre a onda, por um lado, do processo de globalização e, por outro, da chegada da terceira revolução industrial, a das tecnologias infotelemáticas. Um aspecto específico de tal matriz diz respeito à insatisfação, cada vez mais difundida, a respeito do modo de interpretar o princípio de liberdade. Como se sabe, são três as dimensões constitutivas da liberdade: a autonomia, a imunidade e a capacitação. A autonomia significa liberdade de escolha: não se é livre, se não se é colocado na condição de escolher. A imunidade, por sua vez, significa ausência de coerção por parte de qualquer agente externo. É, substancialmente, a liberdade negativa (ou seja, a "liberdade de"). E finalmente a capacitação, (literalmente: capacidade de acção) significa capacidade de escolha, isto é, de alcançar os objectivos, pelo menos em parte numa determinada medida, que o próprio sujeito se propõe. Não se é livre se nunca (ou pelo menos em parte) se consegue realizar o próprio plano de vida.

Como se pode compreender, o desafio a enfrentar é o de fazer com que permaneçam unidas as três dimensões da liberdade: esta é a razão pela qual o paradigma do bem comum se manifesta como uma perspectiva mais interessante do que nunca, a explorar.

À luz de quanto precede conseguimos compreender por que motivo a crise financeira não pode definir-se um acontecimento inesperado, nem inexplicável. Eis por que razão, sem nada tirar às intervenções indispensáveis em chave de regulação e às necessárias novas formas de controle, não conseguiremos impedir a manifestação, no futuro, de episódios análogos se não debelarmos o mal pela raiz, ou seja, se não interviermos sobre a matriz cultural que sustém o sistema económico. Às autoridades de governo, esta crise lança uma dúplice mensagem. Em primeiro lugar, que a crítica sacrossanta ao "Estado interventivo" de modo algum pode servir para desconhecer o papel central do "Estado regulador". Em segundo lugar, que as autoridades públicas colocadas nos diversos níveis de governo devem permitir, aliás favorecer, o nascimento e o fortalecimento de um mercado financeiro pluralista, ou seja, um mercado em que possam agir em condições de igualdade objectiva os diferentes sujeitos, no que diz respeito à finalidade específica que eles atribuem à sua actividade. Penso nos bancos do território, nos bancos de crédito cooperativo, nos bancos éticos e nos vários fundos éticos. Trata-se de entidades que não apenas não propõem nos seus guichés finanças criativas, mas sobretudo desempenham um papel complementar, e portanto equilibrador, em relação aos agentes das finanças especulativas. Se nas últimas décadas as autoridades financeiras tivessem eliminado os numerosos vínculos que pesam sobre os sujeitos das finanças alternativas, a crise contemporânea não teria tido o poder devastador que estamos a conhecer.

Antes de concluir, desejo agradecer ao Presidente do Senado da República Italiana, Deputado Schifani, ter-me permitido explicar a esta qualificada assembleia algumas características da última encíclica de Bento XVI.

De certo modo, trata-se hoje como que de um retorno do Santo Padre a esta sede do Senado da República, onde o então Cardeal Joseph Ratzinger proferiu no dia 13 de Maio de 2004, na Biblioteca do mesmo Senado, uma inesquecível lectio magistralis sobre o tema "Europa. Os seus fundamentos espirituais ontem, hoje e amanhã".

É interessante observar como nessa intervenção, entre outras coisas, o futuro Pontífice abordava determinados temas que voltamos a encontrar hoje na sua última encíclica. Pensemos, por exemplo, na afirmação da profunda razão da dignidade da pessoa e dos seus direitos: eles dizia então o Cardeal Ratzinger "não são criados pelo legislador, nem conferidos aos cidadãos, mas ao contrário existem por seu próprio direito, devem ser sempre respeitados por parte do legislador, são-lhe previamente concedidos como valores de ordem superior". Esta validade da dignidade humana, prévia a todo o agir político e a toda a decisão política, remete em última análise ao Criador: somente Ele pode estabelecer valores que se fundam na existência do homem e que são intangíveis. Que haja valores que não sejam manipuláveis por parte de alguém é a verdadeira garantia da nossa liberdade e da grandeza humana; a fé cristã vê nisto o mistério do Criador e da condição de imagem de Deus, que Ele conferiu ao homem". Na Caritas in veritate, Bento XVI reitera que "os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados" quando "são desprovidos do seu fundamento transcendente" (n. 56), ou seja, quando esquecemos que "Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem enquanto, tendo-o criado à sua imagem, fundamenta outrossim a sua dignidade transcendente" (n. 29).

Além disso, na lectio magistralis pronunciada há cinco anos, o actual Pontífice recordava que "um segundo ponto em que aparece a identidade europeia é o matrimónio e a família. O matrimónio monogâmico, como estrutura fundamental do relacionamento entre homem e mulher e, ao mesmo tempo, como célula na formação da comunidade estatal, foi forjado a partir da fé bíblica. Ele atribuiu à Europa, tanto à ocidental como à oriental, o seu rosto específico e a sua humanidade particular, também e precisamente porque a forma de fidelidade e de renúncia aqui delineada teve que ser conquistada sempre de novo, com muitas dificuldades e sofrimentos. A Europa já não seria Europa, se esta célula fundamental do seu edifício social desaparecesse ou fosse transformada na sua essência". Na Caritas in veritate esta admoestação amplia-se a ponto de se tornar universal, diríamos global, e alcança todos os responsáveis da vida pública; com efeito, nela lemos: "...torna-se uma necessidade social, e mesmo económica, continuar a propor às novas gerações a beleza da família e do matrimónio, a correspondência de tais instituições às exigências mais profundas do coração e da dignidade da pessoa. Nesta perspectiva, os Estados são chamados a instaurar políticasque promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade, preocupando-se também com os seus problemas económicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional" (n. 44).

Sem dúvida, a Caritas in veritate dirige-se, como se afirma no seu título oficial, a todos os membros da Igreja católica e "a todos os homens de boa vontade". E no entanto, pelos princípios que esclarece, pelos problemas que aborda e pelas indicações que oferece, este documento pontifício, que primeiro suscitou muita expectativa e depois muita atenção e um grande apreço, em particular nos âmbitos social, político e económico, parece-me que pode encontrar um eco singular nesta sede institucional que é o Senado da República. Estou persuadido de que, para além das diferenças de formação e de convicções pessoais, aqueles que têm a delicada e honorífica responsabilidade de representar o povo italiano e de exercer por seu mandato o poder legislativo, podem encontrar nas palavras do Papa uma elevada e profunda inspiração no cumprimento da sua missão, de tal maneira a corresponder adequadamente aos desafios éticos, culturais e sociais que hoje nos interpelam e que com grandes lucidez e integridade, a encíclica Caritas in veritate nos apresenta. Os meus bons votos são para que este documento do Magistério eclesial, que hoje procurei explicar-vos pelo menos em parte, possa receber nesta sede a atenção que merece e deste modo produzir frutos positivos e abundantes, para o bem de cada pessoa e de toda a família humana, a começar pela amada Nação italiana.

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