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INTERVENÇÃO DO CARDEAL AGOSTINO CASAROLI
NA ABERTURA DO CONGRESSO: «O DESENVOLVIMENTO
 DOS POVOS É O NOVO NOME DA PAZ»

[Placência- Salsomaggiorr 7-9 de Abril de 1983]

 

«Pacem in terris» e «Populorum Progressio»

Devo antes de tudo um cordial agradecimento aos organizadores do presente Congresso pela gentileza de me terem convidado a participar nele: com a presença e, se possível, com uma intervenção.

São estas as palavras da carta que me foi enviada por Sua Excelência D. Manfredini, então Bispo de Placência (Diocese que, estou certo, permanecerá no seu coração, mesmo depois de chegar ao seu novo e ainda mais importante e empenhativo campo de trabalho pastoral) e pelo ilustre Reitor da Universidade Católica do Sagrado Coração, o Excelentíssimo Professor Lazzati. E se a primeira delas — a "presença" — me seduzia particularmente, por aquele sentimento de afecto que sempre me liga à terra natal, e se não apresentava outra dificuldade que não fosse a de pedir e obter o consentimento do Santo Padre para uma breve ausência do habitual lugar de trabalho, a segunda — uma possível "intervenção" — não podia deixar de suscitar na minha alma alguma perplexidade, devido ao que já então sabia, e me pareceu depois ainda mais claro, sobre a competência e a autoridade dos participantes neste Congresso e sobre o alto nível científico das Relações em programa.

Pensei, porém, que de mim não se teria esperado, aqui, um contributo de carácter técnico, mas antes uma reflexão inicial sobre os grandes princípios inspiradores dos dois Documentos pontifícios que o Congresso deseja comemorar dignamente, numa cidade e numa terra a que não faltam, decerto, válidos títulos para o hospedar.

I

Vinte anos não são muitos, para poder avaliar numa perspectiva histórica a incidência da voz que se ergueu a 11 de Abril de 1963 do centro do Orbe católico, mas dirigida, para além das fronteiras, embora vastas, da Igreja de Roma, a todos os homens de boa vontade.

Era a segunda vez que o Papa João XXIII se dirigia assim ao mundo inteiro. Fizera-o dois anos antes, com outro solene Documento, intitulado Mater et Magistra, que também tivera ampla ressonância, inscrevendo-se no sulco das grandes Encíclicas sociais iniciado pela Rerum novarum, cujo septuagésimo aniversário, precisamente, queria recordar.

Encontrava-se Ele já no termo de um breve mas intenso Pontificado. Dali a menos de 2 meses o Papa João concluiria o seu caminho terreno, com 82 anos de idade.

Um ancião! Mas a sua voz, como a sua mente e o seu coração, tinha ainda — com a sabedoria de quem viveu verdadeiramente a longo —, o vigor e o entusiasmo da juventude.

O mundo ficou perturbado. A sua consciência ficou perturbada. Tanto eram evidentes a sinceridade do Papa, a sua preocupação pela grande família humana exposta ao perigo de uma ruptura daquele equilíbrio instável que desde 1945 se chamava "paz", o seu empenho em indicar ao mundo — como num testamento de pai aos filhos divididos por incompreensões, desconfianças e ódios — os verdadeiros caminhos da verdadeira paz.

Pacem in terris! As palavras ressoavam como um voto ouvido muitos séculos antes, num recanto perdido do imenso império romano, quando Augusto embainhava a espada, toto orbe in pace composito: paz imposta pela preponderância das armas e por uma superior e afortunada capacidade militar, acompanhadas, na verdade, por um reconhecido sentido do direito, nos ordenamentos c nas leis, pelo menos, se não sempre — muito raramente, talvez — nos factos.

A paz auspiciada em Belém e contemplada na Encíclica do Papa João tinha características, raízes e garantias diversas, sem dúvida, quando não contrapostas, das da breve "paz romana".

Com a simplicidade e a plácida segurança que eram próprias do Homem, a Encíclica propunha desde o início uma afirmação que é tradicional e essencial na doutrina social da Igreja, mas que nem todos, não direi aceitam, mas compreendem em toda a sua riqueza de conteúdo e de consequências: "A paz não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus" (n. 1).

Esta afirmação pressupõe, por um lado, a certeza da existência de um conjunto de normas objectivas, que transcendem as opções ou os acordos dos homens; e por outro; a convicção de que o homem pode, segundo a sua escolha, respeitar ou não respeitar esta ordem. Ó respeito dela é condição iniludível para a paz; poderia aliás dizer-se que tal respeito, não tem tanto como consequência, mas é ele mesmo a paz. Deixar de a respeitar leva inevitavelmente àquela "desordem que — constata a Encíclica — reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força" (n. 4): ou seja, que tais relações devem e podem reger-se "pelas mesmas leis que as forças e os elementos irracionais do universo" (n. 6).

O homem é, pelo contrário, ser dotado de razão e de vontade, e as leis que presidem ao seu agir e ao seu actuar, como homem, estão inscritas na sua consciência: dizem, não aquilo que "é", mas aquilo que "deve ser".

Os conceitos de consciência, de dever moral, de liberdade do homem, são sem dúvida, hoje, património comum: poucos filósofos ousariam negá-los; e, na prática, faz-se contínua referência a eles nas relações sociais.

Mas poucos, temo, são os que se mostram verdadeiramente convencidos de que a chamada à norma moral, aos deveres de consciência, serve deveras para assegurar relações tranquilas e satisfatórias entre os homens e os grupos sociais, nos Estados e entre os Estados: para não falar também da Comunidade internacional no seu conjunto.

É verdade, além disso, que sobretudo a partir da Declaração universal dos direitos do homem (1948), a Comunidade internacional, abalada pela recordação ainda viva das atrocidades da segunda Guerra Mundial, não deixou de procurar prevenir conflitos com um conjunto de Declarações e de Convenções destinadas a eliminar os males que mais a desonraram.

Mas no fundo, permanece — bem radicado — o sentimento de que a boa vontade dos homens consegue orientar apenas marginalmente o curso dos acontecimentos e que, em todo o caso, a verdadeira tutela dos próprios direitos consiste, para os Estados, na posse de uma força suficiente para os defender e desencorajar outros a procurarem violá-los.

A mútua e profunda desconfiança, unida às inevitáveis divergências na avaliação do que são os próprios direitos e os dos outros, continua a manter este sentimento; e enquanto ninguém ousaria opor-se ao princípio de que à força da razão deve prevalecer sobre as razões da força, isto parece apenas um ideal, verosimilmente nunca alcançado.

Tal estado de alma manifesta-se, em particular, de modo trágico, mas logicamente eloquente, na busca da segurança. Esta traduz-se, por sua vez, num esforço fadigoso para alcançar e manter o equilíbrio das forças: e isto leva na realidade, quase inevitavelmente, àquela corrida aos armamentos que constitui, hoje, um dos pesos mais insuportáveis para a economia mundial e é, de facto, uma das mais sérias e constantes ameaças para a paz que se pretende assim salvaguardar. De modo que o problema relativo a como salvaguardar a paz se reapresenta, também no quadro do instável equilíbrio das espantosas armas modernas, em toda a sua trágica e irresoluta gravidade.

É para desejar que a celebração do vigésimo aniversário da Pacem in terris contribua para levar a humanidade a reflectir, se a resposta mais realista aos interrogativos que tal problema insistentemente repropõe não deve ser procurada precisamente naquilo que parece um "ideal": ou seja, no plano da "moralização" — quer dizer da "racionalização" — da vida social, com base no conhecido quadrinómio enunciado na Encíclica como fundamento de uma relação correcta e pacífica entre os homens e as Comunidades políticas: verdade, justiça, amor e liberdade.

Certamente, a Igreja não fecha os olhos à realidade da situação, como ela é no presente. Ainda não há muito, na Mensagem enviada por ocasião da segunda Sessão Extraordinária da Assembleia Geral da ONU para o desarmamento (Junho de 1982), o Papa João Paulo II reconhecia que "nas condições actuais, uma dissuasão baseada no equilíbrio, não certamente como um fim em si mas como uma etapa no caminho de um desarmamento progressivo, pode ainda ser julgada como moralmente aceitável".

"Contudo — continua a Mensagem —, para assegurar a paz é indispensável não nos contentarmos com o mínimo, sempre agravado por um real perigo de explosão".

O Papa referia-se, em seguida, à proposta de "uma autoridade supranacional", na qual a Pacem in terris (n. 137) tinha visto uma exigência da ordem moral, consequência das proporções mundiais assumidas pelos problemas relativos ao "bem comum".

Pode facilmente parecer solução um pouco simplicista e, em todo o caso, utopística. A ninguém, na verdade, passam despercebidas as dificuldades que se opõem à sua realização; e, de facto, a Mensagem agora citada aconselhava entretanto, como "única solução realística", o recurso à negociação leal, paciente e constante.

Mas, a propósito de "utopia", apraz-me repetir aqui o que disse outra vez, em referência à união da Europa, citando o pensamento de um homem de ciência e de Estado, que foi Presidente da República italiana, Luigi Einaudi: "Utopia (ou melhor, 'talvez Utopia') chamava-lhe Einaudi, embora acrescentando que à Europa — e o mesmo valia logicamente, em escala mais vasta, para a humanidade inteira, posta defronte da nova dimensão da perspectiva atómica — só restava a escolha entre a Utopia e a morte".

Einaudi (voz autorizada, entre tantas não menos autorizadas e responsáveis) via "o inimigo número um da civilização, da prosperidade — e hoje deve-se acrescentar, da vida mesma dos povos — no mito da soberania absoluta dos Estados". "Este mito funesto — acrescentava — é o verdadeiro gerador das guerras".

Análise, decerto, simplificada, mas que contém boa parte de verdade, concluía eu.

(Cf. "La Santa Sede e l'Europa", Conferência pronunciada a 20.01.1972 em Milão, no Instituto de Estudos de Política Internacional [ISPI], publicada em Relazioni Internazionali", n. 7 de 12 de Fevereiro de 1972).

II

Na Mater et Magistra João XXIII salientara que "o maior problema da época moderna talvez seja o das relações entre as comunidades políticas economicamente desenvolvidas e as que se encontram em fase de desenvolvimento económico". Desde então o problema tornou-se rapidamente ainda mais grave e actual devido à sucessiva obtenção da independência por parte de numerosos novos Países. 

O tema do desenvolvimento foi objecto das considerações do Concílio Ecuménico Vaticano II, o qual, na Constituição Pastoral Gaudium et spes (n. 64), quis sublinhar-lhe "o fim fundamental" que "não é só a multiplicação dos produtos, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do homem: do homem todo, de acordo com a hierarquia das suas necessidades materiais e das exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa".

O problema do desenvolvimento — do indivíduo e dos povos — fascinava a mente e solicitava a inquietude pastoral daquele outro grande Pontífice que foi Paulo VI. De modo muito particular angustiava-o o problema dos povos "que se esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endémicas, a ignorância; que procuram uma participação mais ampla nos frutos da civilização...; que se orientam com decisão para o seu pleno desenvolvimento" (Populorum progressio, n. 1).

Fruto da sua reflexão foi a Encíclica Populorum progressio, à qual o vosso Congresso quer dedicar privilegiada atenção, no encerramento da celebração do 15º aniversário da sua publicação, a 26 de Março de 1967.

O tema do desenvolvimento relaciona-se naturalmente com o da paz. O argumento mesmo do Congresso o recorda: "Desenvolvimento dos povos é o novo nome da paz".

Muito curiosamente, esta plástica afirmação, tão conhecida e citada com agrado, não se encontra, tal e qual, no texto mesmo da Encíclica; constitui o subtítulo final da segunda parte do Documento e, como os outros títulos e subtítulos, não se encontra no texto latino, mas apenas nas traduções nas várias línguas. Isto nada tira à sua autenticidade e autoridade.

A intenção do Papa era dirigir um "apelo solene a uma acção organizada para o desenvolvimento integral do homem e para o desenvolvimento solidário da humanidade" (n. 5).

"Desenvolvimento integral", para o Papa, significa "promoção de todos os homens e do homem todo" (n .14), como também de todos os povos e da família humana inteira.

Retomando a afirmação conciliar, Paulo VI salienta vigorosamente que "o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico" (ibid.): isto é, não se reduz a "ter mais", mas a "ser mais".

"Tanto para os povos como para as pessoas possuir mais — afirma o Papa — não é o fim último 'do desenvolvimento', o bem supremo que impede de ver mais além" (n. 19).

Legítima, aliás necessária, "a busca do ter", quando se torna exclusiva, constitui "um obstáculo ao crescimento do ser" (ib.).

O homem, o homem na sua integralidade — corpo, exposto à fome, à doença, à miséria; espírito, ameaçado pela ignorância, pela opressão, pela falta de consideração da sua dignidade —, o homem deve estar no centro de todas as teorias e de todas as actividades relativas ao desenvolvimento.

Assim, também "qualquer programa feito para aumentar a produção não tem, afinal, razão de ser senão colocado ao serviço da pessoa" (n. 34).

Há na Encíclica uma consideração que interessa particularmente, empenhando-lhes a responsabilidade, os intelectuais dos nossos dias: "Se a procura do desenvolvimento pede um número cada vez maior de técnicos, exige um número cada vez maior de sábios de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo" (n. 20).

A solicitude pelo desenvolvimento do "homem todo" entrecruza-se constantemente na Populorum progressio com a solicitude pelo desenvolvimento de "todos os homens". "O desenvolvimento integral do homem não pode realizar-se sem o desenvolvimento solidário da humanidade": assim começa a segunda parte da Encíclica, consagrada precisamente, de modo específico, a este último aspecto (n. 43).

Como poderia não ser assim, se uma porção tão grande da família humana está constrangida a viver em condições infra-humanas: melhor — como salienta o Papa — em situações, às vezes, "cuja injustiça brada aos céus" (30)?

A consciência moral, e também a consciência do perigo de tal situação, para aqueles que não são vítimas dela, convidam a humanidade a enfrentá-la urgentemente: com coragem, decisão, e clara visão do problema e das suas possíveis soluções. '

"As excessivas disparidades económicas, sociais e culturais provocam, entre os povos, tensões e discórdias, e põem em perigo a paz", adverte o Papa (n. 76). Mas não é, esta, a única razão que deve mover cada homem e, acima de todos, os responsáveis das sortes das Nações.

"Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência" (n. 3): esta -frase, que pode parecer "de efeito", mas que reflecte uma efectiva realidade, é válida ainda 16 anos depois de o Papa Paulo VI a ter lançado ao mundo como "um grito de angústia", convidando "cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão" (ib.).

Deixando aos homens de Estado e a cada membro da família humana, aos cristãos em particular, a parte que lhes compete, a vós, homem de ciência, cabe especificamente a tarefa de precisar as causas objectivas de uma situação tão injusta e preocupante, e de estudar os possíveis mecanismos de correcção.

Dir-se-ia, de facto, que leis e estruturas económicas, estudadas ou vistas como favoráveis ao desenvolvimento, trabalham paradoxalmente contra o desenvolvimento.

Em particular, observa a Populorum progressio (n. 58), era condições tão desiguais, como são as existentes entre Países desenvolvidos e Países em fase de desenvolvimento, "a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais".

Em todo o caso, se "o desenvolvimento exige transformações audaciosas, profundamente inovadoras", se requer "reformas urgentes" (n. 32), estas devem realizar-se tendo em conta também leis económicas e sociológicas que, sem serem "de bronze", oponham todavia resistência e imponham sabedoria não inferior à coragem. "Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objectivo — observa a Populorum progressio (n. 29) —, uma industrialização precipitada pode desmoronar estruturas ainda necessárias, criar misérias sociais que seriam um retrocesso humano".

Isto mostra a importância, a necessidade da contribuição de experientes e capazes homens de estudo e de pensamento, nesta ora que poderia assistir ou preparar uma catástrofe, e pelo contrário é chamada a assegurar o pacífico progresso da humanidade.

Ao prestar homenagem à altíssima responsabilidade que, deste modo, recai sobre todos aqueles que vós aqui representais, quereria ao mesmo tempo encorajá-los a saberem unir sempre, ao rigor científico, o calor do coração: de modo que o seu contributo, tão empenhativo quanto necessário, tenha o carácter e a generosidade de uma "resposta de amor" (cf. Populorum progressio, n. 13); exortá-los, em particular, a não esquecerem nunca que o centro do seu estudo, das suas preocupações de homens de ciência, deve ser o homem, na sua dignidade integral; que "o verdadeiro desenvolvimento — para usar de novo palavras da Populorum progressio (n. 20) — é, para todos c para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas".

Nesta perspectiva do "Homem", que transcende qualquer visão economicista ou puramente técnica do "desenvolvimento", é-me grato desejar-vos um excelente trabalho, útil para colocar ainda melhor em luz a riqueza de ideias e a carga de transformação social contidas, e talvez ainda veladas, nas duas Encíclicas que o vosso Congresso se propôs comemorar: não com palavras, mas com a homenagem do pensamento.

 

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