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DISCURSO DO CARDEAL AGOSTINO CASAROLI
 POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO NA UNESCO
 DA EXPOSIÇÃO DE FAC-SÍMILES
DA BIBLIOTECA VATICANA

Sede Geral da Unesco
Paris, 9 de Maio de 1983

 

1. Há pouco menos de três anos a 2 de Junho de 1980, tive a honra de acompanhar o Papa João Paulo II na visita que ele realizou à vossa prestigiosa Organização. Conservo ainda viva a lembrança e o prazer desse encontro.

O Papa representa, no mais alto nível, uma sociedade que tem, sem dúvida, um carácter essencialmente religioso, mas que ocupa ao mesmo tempo um lugar eminente na história e na realidade presente da cultura humana sem distinção de raças ou de continentes. E vinha ele prestar homenagem a uma instituição universal — isto é, "católica" — também ela, destinada a representar e a promover o esforço comum dos povos da terra nos campos da educação, da ciência e da cultura. A cortesia, o respeito, mais ainda a cordialidade atenta e quase reconhecida para com a pessoa e a palavra do Soberano Pontífice da Igreja católica, as quais foram bem acolhidas, demonstravam de modo eloquente a profunda sintonia que as eminentes personalidades reunidas aqui naquela ocasião, experimentavam entre os seus propósitos e as suas preocupações de homens de ciência e de cultura e os do homem que vinha a eles, trazendo o eco de séculos, tantos quantos conta a vida da Igreja católica, séculos obscurecidos aqui e ali por sombras devidas à imaturidade dos homens e dos tempos, mas bem mais ricos de luminosas páginas escritas nos anais, às vezes turbulentos e exaltantes, da época milenar do género humano surpreendido pelos enigmas do espírito como pelas formas e segredos da natureza.

2. É-me grato hoje evocar a lembrança desse dia e repetir, como verdadeiro intérprete dos sentimentos do Santo Padre, quanto ele tem em consideração o que a UNESCO é e se propõe ser, quanto aprecia o trabalho aqui realizado, e quanto encoraja a vossa Organização a responder cada vez mais e sempre melhor às finalidades por ela assumidas e ao que os povos dela esperam.

Estes sentimentos, desejaria, se me permitis, exprimi-los igualmente em meu nome pessoal, reconhecendo que tenho a possibilidade oferecida por este meu encontro convosco esta tarde. Desejo dirigir um particular reconhecimento ao ilustre Director-Geral desta Organização que, embora tivesse importantes obrigações relativas ao seu cargo, retardou amavelmente a sua saída para nos honrar com a sua presença nesta manifestação.

3. A cultura, recordava o Papa João Paulo II no seu discurso de 2 de Junho de 1980 neste local, na UNESCO, "é uma característica da vida humana como tal". Mediante a cultura, "o homem se distingue e se diferencia... de tudo o que existe por outra via no mundo visível".

Na realidade, no seu sentido mais elementar e mais original, a "cultura" apresenta-se já como um facto exclusivamente humano. Os outros seres vivos que vivem no nosso planeta, mesmo aqueles que mais se aproximam do homem pelo aspecto e comportamento, dependem, para a sua subsistência, do que a natureza lhes oferece de modo espontâneo ao seu redor ou do que eles conseguem obter, pela força ou pela astúcia. Só o homem procurou e conseguiu, numa medida crescente, subtrair-se à dominação do mundo que o envolve, esforçando-se por lhe impor a sua superioridade e submeter as suas forças ao seu próprio serviço. Assim ele aprendeu a "cultivar" a terra, a orientar e a seleccionar os seus produtos, a domesticar e a criar outros animais: infinitamente inferior a muitos deles no plano da força ou considerando apenas a capacidade de se mover sobre a terra ou na água, sem falar da possibilidade de se elevar nos ares como com as asas dos pássaros — antigo sonho do homem —, ele possui como própria uma força — a inteligência, a capacidade de raciocinar — que lhe permitiu conhecer cada vez mais profundamente e orientar para o seu serviço as forças e os meios que a natureza coloca à sua disposição.

O homem "cultiva" e ao mesmo tempo "cultiva-se": cultiva a sua inteligência, a sua capacidade de raciocinar; apropria-se assim dos conhecimentos científicos e técnicos cada vez maiores, e perscruta as inclinações e as profundezas do seu próprio espírito. "Conhecer-se a si mesmo" tem sido e continua a ser um vértice do conhecimento humano.

4. O constante progresso da humanidade, em todos os campos do conhecimento e da técnica, é devido essencialmente à capacidade que o homem tem de transmitir às gerações futuras as suas diversas conquistas, acumulando-as assim, ao mesmo tempo que propõe e favorece novos objectivos.

Após longo período de tradições transmitidas de modo oral, o homem aprendeu a confiar, não mais só à sua memória, mas à matéria — seja ela a pedra, o papiro, a seda, a cera, o pergaminho e enfim o papel —, por meio de figuras ou de sinais, as aquisições do seu espírito.

A maravilhosa aventura da comunicação espiritual entre homens e entre povos diversos, entre gerações que se sucedem a um ritmo acelerado ao longo dos séculos, assim começava e se desenvolvia, desembocando como num rio cada vez maior e mais majestoso, em que confluíram múltiplas civilizações preservadas do desaparecimento por terem sabido efectuar esta "materialização do espírito" com a "espiritualização da matéria'', nas quais o Papa João Paulo II via, e assim o dizia aqui mesmo, a "dúplice característica... tanto primordial como permanente" de toda a obra cultural humana.

Desta maneira, a matéria fazia-se portadora de realidades e de valores espirituais, para transmitir à posteridade o que o homem constrói com dificuldade, não só para "ter" mais, mas para "ser" mais.

Dos tempos mais remotos e das mais antigas civilizações, não permanecem senão raros vestígios e alguns testemunhos eloquentes que chegaram até nós num isolamento esplêndido e quase orgulhoso: como esquecer, aqui em Paris, o Código de Hamurrabi, esculpido na pedra da Mesopotâmia, zelosamente conservado no Louvre?

5. As técnicas que, pouco a pouco, tornavam a escritura cada vez mais ágil, nas suas diversas formas, e que também tornavam mais mancável e mais disponível o material ao qual ela era confiada, contribuíam por esse mesmo meio para o desenvolvimento e a difusão da cultura, seja ela religiosa, filosófica, humanista, artística ou técnica. As transcrições dos textos multiplicavam-se, e assim aumentava de igual modo, entre outras a probabilidade de se evitar a sua perda, apesar do perigo de calamidades naturais ou de destruições provocadas pelas mãos do homem.

A cultura criada e difundida desta maneira permanecia entretanto sempre uma cultura de elite, não só por evidentes razões sociais e económicas, mas também — e isto não pode ser considerado como um mal — porque as dificuldades de ordens diversas a superar faziam que o interesse e a atenção se concentrassem sobre obras que pareciam de grande valia, o que levava a realizar uma espécie de "selecção natural".

Assim foi até quando, na metade do XV século da era cristã, a invenção da imprensa abre à nossa cultura uma nova era. Mesmo se, para dizer a verdade, em termos de qualidade o progresso nem sempre correspondeu, quase automaticamente, àquele da quantidade, é inegável que esta descoberta e as aplicações feitas com ela condicionaram substancialmente, c num sentido altamente positivo, a civilização humana no seu conjunto. E apesar das novas revoluções tecnológicas, elas continuam ainda a condicioná-la.

6. A exposição que hoje é inaugurada, sob o alto patrocínio do Senhor Director-Geral da UNESCO, reporta-nos à época que precedeu esta invenção revolucionária.

É verdade que a fundação oficial da Biblioteca papal — de cujo tesouro são extraídos os grandes fac-símiles de manuscritos aqui expostos — remonta ao Papa Sisto IV (Francesco della Rovere), e mais precisamente à Bula Ad decorem militantis Ecclesiae de 15 de Junho de 1475. Naquela ocasião, Johann Gutenberg tinha já editado o que se considera como a primeira obra tipográfica da Europa, a Bíblia chamada das 42 linhas ou "nazarina". Mas a Biblioteca de Sisto IV herdava uma tradição de antigas colecções recolhidas pelos cuidados dos seus predecessores, desde o Papa Dâmaso, durante a segunda metade do século IV — o qual, como atesta São Jerónimo, reagrupara, juntamente com os documentos da Igreja de Roma, diversas obras profanas —, passando por Bonifácio VIII — é ao seu pontificado que remonta o primeiro catálogo, em 1295 —, até ao verdadeiro promotor da Biblioteca pontifícia, o Papa humanista Nicolau V (Tommaso Parentucelli) que, à sua morte em 1455, deixou mais de 1.500 manuscritos.

Em 1481, a Biblioteca contava 3.500 manuscritos; enviados do Papa adquiriram-nos em toda a Europa e um grande número de copistas tinha-se ocupado em copiar outras obras a fim de as conservar e as difundir. O interesse humanista próprio dessa época, que encontrava nos Pontífices de Roma acolhimento e alento, voltava-se não só para os escritos sagrados e para as obras de patrologia e de teologia, mas também para as de filosofia, de literatura grega, latina, hebraica, síria, copta, árabe, ou ainda de direito romano, de direito civil e canónico, de história, arte, arquitectura e música.

Esta tradição nunca mais se interrompeu, e os Papas que se sucederam na Sé de Pedro aplicaram-se ao crescimento deste património com manuscritos, e em seguida com livros impressos.

Outras inteiras bibliotecas, sob forma de dons, aquisições ou depósito, vieram enriquecer a Biblioteca pontifícia.

7. O conjunto de obras da Biblioteca vaticana é formado hoje por mais ou menos 70.000 manuscritos, 8.000 incunábulos, um milhão de obras impressas, muitas das quais são antigas e raras, sem contar os quase 200.000 autógrafos, mais de 100.000 estampas e mapas geográficos e milhares e milhares de documentos de arquivos.

Esta riqueza é talvez única, no sentido de que ela encerra os testemunhos de muitos séculos, com uma rara continuidade, proveniente de tantas regiões e praticamente de quase todos os sectores das ciências sagradas, humanas e literárias, sem excluir antigas publicações de ciências naturais.

8. A Biblioteca vaticana apresenta-se tal como um testemunho, tão real hoje como ontem, dos desvelos que os Pontífices romanos tiveram pela cultura sagrada e profana, dos relacionamentos que tiveram com os povos e as nações, mesmo os mais distantes da sua Sé, um testemunho da sua constante preocupação de conservar, para os colocar à" disposição dos pesquisadores, tantos preciosos tesouros, muitas vezes únicos, da ciência, da arte do livro e da cultura.

Digo isto, não por uma espécie de "orgulho de casa", mas para salientar uma vez mais a profunda sintonia que faz a Santa Sé sentir-se bem e como em casa junto de vós, ao participar nos ideais, nas preocupações e nos projectos da UNESCO.

A paixão pela cultura, em toda a riqueza do seu significado, foi demonstrada pelo Papa João Paulo II no discurso a vós pronunciado por ocasião da sua visita em 1980, e mais recentemente, na carta a mim dirigida a 20 de Maio do ano passado, quando me encarregou de presidir à organização do novo Pontifício Conselho para a Cultura. Esta paixão une-nos e torna-nos, de algum modo, aliados.

A exposição que hoje é inaugurada é um sinal disto e levará, assim espero, a tomar ainda mais consciência da necessidade de intensificar tais linhas.

9. Uma característica desta exposição parece-me ser a de demonstrar, na surpreendente fidelidade dos fac-símiles aos originais, uma realidade que era tão bem sentida pelos homens do Humanismo e da Renascença e da qual o homem moderno tem muito pouco o sentido, mas deveria, conforme penso, adquiri-lo de novo: isto é, a aliança não só entre a fé e a cultura, mas também entre a cultura e a beleza, que, nos manuscritos aqui reproduzidos e nos outros da época, se traduz pela perfeição da escritura e pelo esplendor das miniaturas que a acompanham.

Nesta aliança manifesta-se a antiga intuição que encontrou, em alguns, uma formulação teórica na afirmação: Verum et pulchrum convertuntur (a verdade e o belo são convertíveis), reproduzindo o adágio da filosofia escolástica: Verum et bonum convertuntur (a verdade e o bem são convertíveis).

Trata-se da intuição segundo a qual a cultura é ao mesmo tempo harmonia, ou a constrói: harmonia interior no homem e harmonia exterior entre os homens.

10. E ao recordar assim tal intuição em que vejo uma profunda verdade, é que desejo terminar as considerações que tive a honra de exprimir nesta sede, onde a cultura e as ciências são honradas como rainhas, por ocasião de um acontecimento cultural de características tão particulares e quase únicas.

E acrescento um voto que faz eco àquele expresso pelo Papa João Paulo II ao término da mensagem que ele leu nesta Casa: oxalá a cultura e os homens de pensamento e de ciência contribuam para fazer que a humanidade tenha bastante sabedoria e coração para evitar a destruição, com as suas conquistas, daquilo que, precisamente ela, construiu com tanta fadiga ao longo dos milénios! Oxalá eles contribuam de modo eficaz para estabelecer, entre todos os povos do mundo esta harmonia que é a beleza verdadeira e profunda, isto é, a paz, o respeito recíproco, a disponibilidade à cooperação criadora, em todos os campos!

A Igreja católica, a Santa Sé estarão com eles nesta nobre empresa.

 

 

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