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CARTA DO CARDEAL AO ARCEBISPO DE COSENÇA-BISIGNANO,
D. GIUSEPPE AGOSTINO POR OCASIÃO DO VIII CENTENÁRIO DA
MORTE DE JOAQUIM DE FIORE
Excelência Reverendíssima
A Arquidiocese de Cosença-Bisignano, confiada aos seus
cuidados pastorais, prepara-se para celebrar o VIII centenário da piedosa morte
do Abade Joaquim de Fiore, que ofereceu à sua terra de origem e a toda a Igreja
um singular testemunho de fé. Tendo sido informado desta iniciativa, o Santo
Padre desejar unir-se espiritualmente à acção de graças ao Senhor, da parte
de todos, pelo dom que Ele concedeu à Igreja na pessoa deste sacerdote humilde
e piedoso, enquanto formula votos a fim de que as celebrações centenárias
suscitem nos fiéis dessa Arquidiocese e de toda a Calábria um apego mais
consciente às suas próprias raízes cristãs, em ordem
a uma renovado impulso de fidelidade a Cristo e de amor aos irmãos.
No dia 30 de Março de 1202, no convento de São Martinho
de Canal, Joaquim, Abade de Fiore, terminava a peregrinação da sua própria
existência sobre a terra. Comentando este acontecimento, Luca de Casamari,
outrora Arcebispo de Cosença, escrevia que no sábado em que se cantava o Sitientes
lhe foi concedido - chegando ao verdadeiro sábado - apressar-se como um
cervo até junto das fontes das águas (cf. Memorie, pág. 192).
Joaquim nasceu na localidade de Celino, na Calábria, por
volta do ano de 1135 e, depois de ter sido ordenado sacerdote, com cerca de 35
anos de idade entrou primeiro no mosteiro cisterciense de Santa Maria da
Sambucina, nos arredores de Luzzi, e depois no mosteiro de Corazzo, tornando-se
o Abade do mesmo já no ano de 1177. Desempenhando esta função, de 1182 a 1183
foi a Casamari e ali permaneceu cerca de um ano e meio. O período passado nesse
mosteiro permitiu-lhe trabalhar na redacção das suas obras principais. Logo
que regressou a Fiore, deu vida a uma nova família monástica, cujas Constituições
foram perdidas e hoje não se encontram.
Em virtude dos seus encargos e das suas inúmeras competências,
Joaquim teve que empreender numerosos contactos com a Sé Apostólica. No mês
de Maio de 1184 encontramo-lo em Veroli, com o Papa Lúcio III e a Cúria.
Alguns anos mais tarde, vemo-lo em Roma, com o Papa Clemente III e, em 25 de
Agosto de 1196, obtém do Pontífice Celestino III a Carta selada Cum in
nostra, mediante a qual é aprovada a família monástica por ele mesmo
fundada.
É verdade que, em seguida, o Concílio Lateranense IV teve
de corrigir determinados aspectos da sua doutrina trinitária e que a sua
doutrina do ritmo trinitário da história criou graves problemas na primeira
fase da história franciscana; todavia, o próprio Concílio Lateranense IV
defendeu a sua integridade pessoal, comprovada através da sua carta escrita ao
Papa Inocêncio III ("Protestatio") e do seu Comentário ao
Apocalipse. Entre os seus leitores e apreciadores, Joaquim contou com o Papa
Inocêncio III, que várias vezes quis citá-lo nos seus documentos. O Abade de
Fiore professou sempre a fidelidade e a obediência à Sé de Pedro, à qual
submeteu com humildade as suas próprias obras. No Comentário ao Apocalipse,
assim expõe o motivo deste seu comportamento: se São Paulo
"transmitiu os seus escritos aos apóstolos que o precediam, na dúvida de
correr ou de ter corrido em vão (cf. Gl 2, 2), com maior razão eu, que
nada sou, não desejo ser juiz de mim mesmo, mas deve sê-lo sobretudo o Sumo
Pontífice, que julga todos e ele próprio não é julgado por ninguém"
(fol. 224 ra-b). Estas afirmações foram novamente propostas
também na Epístola do prólogo, que é considerada
como o seu "testamento".
Tanto nos seus escritos como na sua vida terrena, Joaquim
manifesta-se como uma pessoa inebriada de Deus, um apóstolo ardente de zelo, um
pregador apaixonado. Ele foi um homem da Palavra. A sua obra exegética - apesar
dos problemas que ela apresenta - merece um estudo atento e pode constituir uma
fonte de conhecimentos úteis, inclusivamente em virtude do seu espírito ecuménico.
Da contínua meditação da Palavra revelada, Joaquim tirou
a energia espiritual para indicar aos homens os caminhos de Deus. O seu biógrafo
recorda que "no tempo da ira, como outro Jeremias, Joaquim fez-se
reconciliação, intercedendo sobretudo em benefício dos pobres" (Vita,
pág. 190). Ele não teve medo de enfrentar com o rosto descoberto os
poderosos da terra, como o imperador Henrique VI, a quem convidou a renunciar ao
seu comportamento indigno, se não quisesse padecer a ira divina (cf. ibid., pág.
189). Além disso, mostrou determinação também em relação à imperatriz
Constança (cf. Memorie, pág. 195).
Joaquim, que considerava o amor à Palavra de Deus como a
finalidade e a paixão da sua existência, recorda ao homem contemporâneo,
inundado de palavras e com frequência fascinado por pseudovalores, que
"uma só coisa é necessária" (Lc 10, 42), e que é preciso
viver de "toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4). Além
disso, testemunha que as sagradas Escrituras devem ser lidas com a Igreja e no
interior da Igreja, "acreditando integralmente naquilo que ela crê,
aceitando as suas emendas tanto em relação à fé como no que diz respeito aos
costumes, rejeitando o que ela nega, acolhendo aquilo que ela aceita e
acreditando firmemente que as portas do inferno não podem prevalecer contra
ela" (Epístola do prólogo).
Ele tinha grande consideração pela oração e a contemplação,
vividas no silêncio e na tranquilidade, na busca constante de Deus, o "Pai
das luzes, em quem não há fases nem períodos de mudança" (Tg 1,
17). A sua experiência singular constitui para o crente do nosso tempo uma
poderosa exortação a não ter medo da solidão, mas a constelar a sua existência
com momentos de recolhimento e de oração, para voltar a descobrir no encontro
com Deus a possibilidade de uma existência mais completa e mais autêntica.
O Abade de Fiore viveu em grande pobreza e considerou a
posse de Deus como a sua única verdadeira riqueza. Indiferente ao prestígio
que lhe chegava do seu cargo e da estima dos poderosos do seu tempo, teve sempre
uma atitude humilde e foi tenaz e alegre imitador do Filho de Deus que, rico
como era, se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9), a ponto de não ter
onde repousar a cabeça (cf. Mt 8, 20). A sua referência contínua a
Cristo, "manso e humilde de coração" (cf. Mt 11, 29) é
recordada pelo Arcebispo D. Luca de Casamari que, descrevendo como o Abade ia
frequentemente limpar "com as suas próprias mãos toda a enfermaria"
(Memorie, pág. 195), acrescenta: "Admirava-me que um homem de
tanta fama, cuja palavra era tão eficaz, trouxesse vestes tão velhas e usadas,
parcialmente rotas nas franjas" (Ibid., pág. 191). Esta peculiar
aspiração à pobreza e ao recolhimento faz de Joaquim uma poderosa exortação
a considerar os valores perenes do Evangelho, como o melhor modo oferecido aos
homens de todos os tempos, para edificar um mundo mais justo, fraterno e solidário.
Considerando os testemunhos de virtude autenticamente cristãos,
oferecidos pelo Abade de Fiore, o Sumo Pontífice formula bons votos a fim de
que esta celebração do VIII Centenário da morte de Joaquim constitua para a
Arquidiocese de Cosença-Bisignano - sua terra natal, que conserva também os
seus restos mortais - assim como para o Povo de Deus que vive na Calábria, uma
preciosa ocasião de reflexão e de edificação espiritual. Com estes votos,
Sua Santidade envia uma especial Bênção Apostólica a Vossa Excelência
Reverendíssima, aos fiéis da Arquidiocese de Cosença-Bisignano e a quantos,
animados por um sincero desejo de verdade, se aproximarem da figura deste
insigne filho da Calábria durante as celebrações jubilares.
Uno os meus votos pessoais de pleno êxito das celebrações
programadas, enquanto aproveito este ensejo para me confirmar com expressões de
distinto respeito.
De Vossa Excelência Reverendíssima dev.mo
Card. ANGELO SODANO Secretário de Estado
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