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PAPA FRANCISCO

MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA
NA CAPELA DA CASA SANTA MARTA

Povo descartado

Terça-feira, 13 de dezembro de 2016

 

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 51 de 22 de dezembro de 2016

O clericalismo na Igreja é um mal terrível que tem raízes antigas e, como vítima, sempre «o povo pobre e humilde»: não é por acaso que também hoje o Senhor repete aos «intelectuais da religião» que pecadores e prostitutas os precederão no reino dos céus. Foi um verdadeiro exame de consciência proposto pelo Papa Francisco.

Evocando o trecho evangélico de Mateus (21, 28-31) apresentado pela liturgia, o Pontífice frisou que «Jesus se dirige aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo, isto é, aos que tinham autoridade, autoridade jurídica, moral, religiosa, todas». Ele «fala claro» a quantos «decidiam tudo: pensemos em Anás e Caifás, que julgaram Jesus, ou naquela palavra de Caifás: é mais vantajoso para nós que morra um homem pelo povo e que não se arruíne a nação inteira». Em resumo, afirmou o Papa, «eles decidiam tudo, tomaram até a decisão de assassinar Lázaro, porque era uma testemunha inconveniente para os seus interesses». Eram «homens de poder» e «com eles foi ter Judas para negociar: “Quanto me dais se o trago a vós?”». Precisamente «assim Jesus foi vendido». E eles «eram os sacerdotes, os chefes».

Estas pessoas, explicou Francisco, «chegaram a este estado de prepotência, até de tirania contra o povo, instrumentalizando a lei»; mas «uma lei que refizeram muitas vezes até chegar a quinhentos mandamentos: tudo era regrado, tudo!». Era «uma lei construída cientificamente, porque estas pessoas eram capazes, conheciam bem, faziam muitas nuances». Contudo, observou o Pontífice, «era uma lei sem memória: tinham esquecido o primeiro mandamento que Deus entregou ao nosso pai Abraão: caminha na minha presença e sê irrepreensível». Ao contrário «eles não caminhavam. Permaneceram sempre imóveis nas próprias convicções e não eram irrepreensíveis».

Além disso, prosseguiu o Papa, «não tinham memória porque esqueceram até os dez mandamentos de Moisés», que «lhes tinha dado os mandamentos mas eles com esta construção da lei intelectualista, sofisticada, casuísta, esqueceram a lei de Moisés». Assim «esta lei tornou-se como o bezerro de ouro — outro bezerro de ouro — no lugar da lei de Moisés». Por exemplo, explicou Francisco, «o quarto mandamento — um dos mais bonitos, se não o mais bonito — e o único que diz que haverá um prémio: honra, cuida dos teus pais». E não obstante poderíamos até dizer: «Mas se os pais têm necessidade e fiz um voto e ofereci o meu dinheiro ao templo, sinto muito queridos pais mas arranjai-vos como puderdes». Eis que deste modo «cancelam com a lei feita por eles, a lei feita pelo Senhor: falta a memória que une o hoje à origem, à revelação».

«Jesus foi vítima disto — afirmou o Pontífice — mas a vítima de todos os dias era o povo humilde e pobre, do qual nos fala hoje Sofonias: “Deixar-te-ei um povo humilde e pobre, confiará no nome do Senhor e será o resto de Israel”» (3, 1-2.9-13). Portanto, prosseguiu, «é como dizer, com um pouco mais de vigor, quantos são descartados por vós, os que têm fé no Senhor e vivem desta fé». Jesus «diz-lhes: o problema não é cumprir a lei, o problema é arrepender-se», acrescentou Francisco.

Referindo-se ainda ao Evangelho de Mateus, o Papa explicou que é precisamente o caso do primeiro dos dois filhos convidados pelo pai a trabalhar na vinha: inicialmente responde não «mas depois arrependeu-se e foi». Com efeito, continuou, «eles não sabiam o que significava arrepender-se, porque se sentiam perfeitos: “Dou-te graças Senhor porque não sou como os outros, nem como aquele que reza ali”». De facto «eram vaidosos, orgulhosos, soberbos, e no entanto a vítima era o povo» que «sofria estas injustiças, se sentia condenado por eles, abusado por eles: o povo, humilde e pobre, descartado».

«Esta — afirmou Francisco — será a promessa. Um povo que sabe arrepender-se, que se reconhece pecador, é como um descarte deste povo». E, acrescentou, «gosto de pensar em Judas». Sem dúvida «Judas foi um traidor, pecou muito, cometeu um grande pecado». Mas «depois o Evangelho diz que, arrependido, foi ter com eles para devolver as moedas». E eles tentaram tranquilizá-lo dizendo: «Tu foste um nosso sócio, não temos o poder de te perdoar tudo». Ele rejeita e respondem-lhe: arranja-te, o problema é teu. Assim «deixam-no sozinho, descartado: o pobre Judas traidor arrependido não foi recebido pelos pastores, porque estes esqueceram o que era um pastor». Eram «os intelectuais da religião, os que tinham o poder, que levavam em frente a catequese do povo com uma moral feita pela sua inteligência e não pela revelação de Deus».

É «terrível», disse Francisco, o facto de que «este povo humilde e pobre» seja «descartado por estas pessoas que se afastaram dele» e «que o maltratavam». Certamente, acrescentou o Papa, «alguns de vós podem dizer-me: “Graças a Deus são coisas do passado”. Não, meus queridos, também hoje — também hoje! — na Igreja existem. E isto faz muito mal!».

Com efeito, afirmou, «há aquele espírito de clericalismo na Igreja, que se percebe: os clérigos sentem-se superiores, afastam-se das pessoas e dizem sempre: “isto deve ser feito assim, assim; e vós, ide embora!”». Acontece «quando o clérigo não tem tempo para ouvir os sofredores, os pobres, os doentes, os encarcerados: o mal do clericalismo é terrível, é uma edição nova deste mal antigo». Mas «a vítima é a mesma: o povo pobre e humilde, que espera no Senhor».

«O Pai — concluiu o Papa — procurou sempre aproximar-se de nós, enviou o seu Filho. Estamos à espera, em expectativa radiante, exultantes. Mas o Filho não entrou no jogo dessas pessoas: o Filho esteve com os doentes, os pobres, os descartados, os publicanos, os pecadores e — é escandaloso — as prostitutas». Mas « também hoje Jesus diz a todos nós e àqueles que são seduzidos pelo clericalismo: “Os pecadores e as prostitutas preceder-vos-ão no reino dos céus”».

 



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