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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AOS PARTICIPANTES NO VIII CONGRESSO
 TOMISTA INTERNACIONAL

13 de Setembro de 1980

 

Venerados e caros Irmãos

Tenho sincero gosto em poder receber hoje, num encontro cordial, os participantes no VIII Congresso Tomista Internacional celebrado por ocasião do centenário da Encíclica «Aeterni Patris» de Leão XIII e também da fundação, por obra do mesmo Sumo Pontífice, da «Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino».

Saúdo com afecto todos os presentes e, em particular, o venerado Irmão Cardeal Luigi Ciappi, Presidente da Academia, e Monsenhor António Piolanti, Vice-Presidente.

1. Com a celebração do VIII Congresso Tomista Internacional, organizado pela «Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino e de Religião Católica», concluem-se as manifestações comemorativas do centenário da Encíclica «Aeterni Patris», publicada a 4 de Agosto de 1879, e da fundação da mesma Academia, realizada a 13 de Outubro de 1879, obra do grande pontífice Leão XIII.

Desde a primeira reunião — na Universidade de São Tomás de Aquino, em Novembro do ano passado — até hoje as celebrações multiplicaram-se na Europa e noutros continentes. Estas conclusivas tornadas académicas, que viram ilustres e qualificados professores reunirem-se em Roma, de todas as partes do mundo, em nome do Papa Leão XIII e de São Tomás de Aquino, puderam ao mesmo tempo fazer o balanço tanto das celebrações realizadas no ano passado como das do centenário da Encíclica.

Desde os inícios do meu Pontificado não deixei passar ocasião propícia sem recordar a excelsa figura de São Tomás, como, por exemplo, na minha visita à Pontifícia Universidade «Angelicum» e ao Institut Catholique de Paris, na alocução à UNESCO e, de modo explícito ou implícito, nos meus encontros com os Superiores, professores e alunos das Pontifícias Universidades Gregoriana e Lateranense.

2. Os cem anos da Encíclica «Aeterni Patris» não passaram em vão nem esse célebre Documento do Magistério pontifício perdeu a sua actualidade. A Encíclica baseia-se num princípio fundamental, que lhe confere profunda unidade orgânica interior. E o princípio da harmonia entre as verdades da razão e as da fé. Isto é o que tinha sumamente a peito Leão XIII. Tal princípio, sempre a manifestar-se e actual, durante estes cem anos fez notáveis progressos. Basta ter conta na coerência do Magistério da Igreja desde o Papa Leão XIII até Paulo VI e naquilo que maturou no Concílio Vaticano II, especialmente nos documentos «Optatam Totius, Gravissimum Educationis e Gaudium et Spes».

À luz do Concílio Vaticano II vemos, talvez melhor que há um século, a unidade e a continuidade entre o autêntico humanismo e o autêntico Cristianismo, entre a razão e a fé, graças às directrizes da «Aeterni Patris» de Leão XIII, que com tal documento, que tinha como subtítulo «De philosophia christiana... ad mentem sancti Thomae... in scholis catholicis in staurandis», manifestava a consciência de terem chegado uma crise, uma ruptura e um conflito ou, pelo menos, um ofuscamento acerca da relação entre a razão e a fé. No interior da cultura do século XIX podem-se de facto reconhecer duas atitudes extremas: o racionalismo (a razão sem a fé) e o fideísmo (a fé sem a razão). A cultura cristã movia-se entre estes dois extremos, pendendo para uma parte ou para outra. O Concílio Vaticano I tinha já dito a sua palavra a propósito. Era agora o tempo de imprimir novo curso aos estudos no interior da Igreja. Leão XIII aplicou-se, com clarividência, a esta tarefa, representando - e este é o sentido de instaurare - o pensamento perene da Igreja, na límpida e profunda metodologia do Doutor Angélico.

O dualismo que punha em oposição a razão e a fé, bem longe de ser moderno, constituía a retomada doutrina medieval da «dupla verdade», que ameaçava de dentro «a unidade íntima do homem-cristão» (cf. Paulo VI, Lumen Ecclesiae, 12). Tinham sido os grandes Doutores Escolásticos do século X111 quem colocara de novo no bom caminho a cultura cristã. Como afirmava Paulo VI, «em realizara obra que marca o cume do pensamento cristão medieval, São Tomás não esteve só. Primeiro e depois dele muitos outros ilustres doutores trabalharam com o mesmo fim: entre eles merecem ser recordados São Boaventura e Santo Alberto Magno, Alexandre d'Halès e Duns Scoto. Mas sem dúvida São Tomás, por disposição da divina Providência, atingiu o cume de toda a teologia e filosofia 'escolástica', como se lhe costuma chamar, e fixou na Igreja o eixo central a cuja volta, então e em seguida, se pôde desenvolver o pensamento cristão em seguro progresso» (Lumen Ecclesiae, 13).

Está nisto a motivação de preferência dada pela Igreja ao método e à doutrina do Doutor Angélico. Longe de preferência exclusiva, trata-se de referência exemplar, que permitiu a Leão XIII declará-lo. «Inter Scholasticos Doctores, omnium princeps et magister» (Aeterni Patris, 13). E tal é verdadeiramente São Tomás de Aquino, não só pela sua plenitude, pelo equilíbrio, pela profundidade e pela limpidez do estilo, mas ainda mais pelo vivíssimo sentido de fidelidade à verdade, que podem também dizer-se realismo. Fidelidade à voz das coisas criadas, para construir o edifício da filosofia; fidelidade à voz da Igreja, para construir o edifício da teologia.

3. No saber filosófico, antes de escutar o que dizem os sábios da humanidade, segundo o parecer do Aquinate é preciso escutar e interrogar as coisas. «Tunc homo creaturas interrogat, quando eas diligenter considerat; sed tune interrogata respondent » (Super Job, XII, lect. 1). A verdadeira filosofia deve reflectir fielmente a ordem das coisas mesmas, doutra maneira acaba por reduzir-se a arbitrária opinião subjectiva. «Ordo principalius invenitur in ipsis rebus et ex eis derivatur ad cognitionem nostram» (S. Theol., II-IIae, q. 26, a 1, ad 2). A filosofia não consiste num sistema subjetivamente construído segundo o parecer do filósofo, mas deve ser a fiel reflexão da ordem das coisas na mente humana.

Neste sentido São Tomás pode considerar-se autêntico pioneiro do moderno realismo científico, que leva as coisas a falarem mediante a experiência empírica, embora o interesse delas se limite a fazê-las falar do ponto de vista filosófico. Melhor, é caso de nos perguntarmos se não é precisamente o realismo filosófico que, historicamente, estimula o realismo das ciências empíricas em todos os seus sectores.

Este realismo, longe de excluir o sentido histórico, cria as bases para a historicidade do saber, sem o fazer decair na frágil contingência do historicismo, hoje muito difundido. Por isso, depois de dar a precedência à voz das coisas, São Tomás coloca-se em respeitosa escuta de tudo quanto disseram e dizem os filósofos, para dar disso uma valorização, colocando-se em confronto com a realidade concreta. «Ut videatur quid veritatis sit in singulis opinionibus et in quo deficiant. Omnes enfim opiniones secundum quid aliquid verum dicunt» (I Dist. 23. q. 1, a 3). É impossível o conhecer humano e as opiniões dos homens estarem completamente privadas de qualquer verdade. É um princípio que São Tomás vai buscar a Santo Agostinho e faz próprio: «Nulla est falsa doctrina quae non vera falsis intermisceat» (S. Theol. I-IIae, q. 102, a 5, ad 4) «Impossibile est aliquam cognitionem esse totaliter falsam, sine aliqua veritate» (S. Theol. II-IIae, q. 172, a 6; cf. também S. Theol. I, q. 11 a 2, ad 1).

Esta presença de verdade, mesmo que seja parcial e imperfeita e às vezes contorcida, é ponte, que une cada homem aos outros homens e torna possível o entendimento, quando há boa vontade.

Com esta visão, São Tomás de Aquino sempre prestou respeitosos ouvidos a todos os autores, mesmo quando não podia partilhar-lhes inteiramente as opiniões; mesmo quando se tratava de autores pré-cristãos ou não cristãos, como por exemplo os árabes, comentadores dos filósofos gregos. Daqui o seu convite a aproximarmo-nos com humano optimismo até mesmo dos primeiros filósofos gregos, cuja linguagem não é sempre clara e precisa, procurando ele passar além da expressão linguística, ainda rudimentar, para perscrutar-lhe as intenções profundas e o espírito, não reparando «ad ea quae exterius ex eorum verbis apparet», mas à «intentio» (De Coelo et mundo, I II, lect. 2, n. 552), que os guia e anima. Quando depois se trata de grandes Padres e Doutores da Igreja, então procura sempre encontrar o acordo, mais na plenitude da verdade que possuem como cristãos, que no seu modo, aparentemente diverso do seu, com que se exprimem. E sabido como, por exemplo, procura atenuar e quase fazer desaparecer toda a divergência de Santo Agostinho, contanto que se use o justo método: «profundius intentionem Augustini scrutari» (De sprit. creaturis, a 10 ad. 8).

Aliás, a base da sua atitude, compreensiva para com todos, sem deixar de ser francamente crítico, todas as vezes que sentia devê-lo ser—e foi-o corajosamente em muitos casos — está na concepção mesma da verdade. «Licet sint multae veritates participatae, est una sapientia absoluta supra omnia elevata, scilicet sapientia divina, per cuius participationem omnes sapientes sunt sapientes» ( Super Job, I, lect. 1, n. 33). Esta suprema sabedoria, que brilha na criação, não encontra sempre a mente humana disposta para a receber por muitas razões. «Licet enim aliquae mentes sint tenebrosae, id est sapida et lucida sapientia privatae, nulla tamen adeo tenebrosa est quin aliquid divinae lucis participet... quia omne verum, a quocumque dicatur, a Spiritu Sanctu est »(Ibid., lect. 3, n. 103). Daqui a esperança de conversão para cada homem, embora intelectual e moralmente transviado.

Este método realista e histórico fez de São Tomás não só o «Doctor Communis Ecclesiae», como lhe chama Paulo VI, na sua bela carta «Lumem Ecclesiae», mas o «Doctor Humanitatis», porque sempre pronto e disponível a receber os valores humanos de todas as culturas. Com bom direito pode o Angélico afirmar: «Veritas in seipsa fortis est et nulla impugnatione convellitur» (Contra Gentiles, III, c. 10, n. 3460 b). A verdade, como Jesus Cristo, pode ser renegada, perseguida, combatida, ferida, martirizada e crucificada; mas sempre vive e ressurge e não pode nunca ser extirpada do coração humano. São Tomás colocou toda a força do seu génio ao serviço exclusivo da verdade, atrás da qual parece ambicionar desaparecer quase por temer perturbar-lhe o fulgor para que ela, e não ele, brilhe em toda a sua luminosidade.

4. À fidelidade à voz das coisas em filosofia corresponde, segundo São Tomás, a fidelidade à voz de Deus, transmitida pela Igreja em teologia. E sua norma, de que nunca se apartou, o princípio «Magis standum est auctoritati Eclesiae... quam cuiuscumque Doctoris» (S. Theol. IIae, q. 10, a 12). A verdade, proposta pela autoridade da Igreja assistida pelo Espírito Santo é portanto a medida de verdade, que exprimem todos os teólogos e doutores passados, presentes e futuros. Aqui a autoridade da doutrina do Aquinate resolve-se e refunde-se na autoridade da Doutrina da Igreja. Eis porque o propôs a Igreja como exemplar modelo da investigação teológica.

Também em teologia prefere o Aquinate, portanto à voz dos Doutores e à própria voz, a da Igreja universal, como que antecipando o que diz o Vaticano II: «A totalidade dos fiéis, que receberam a unção do Espírito Santo, não pode enganar-se na fé» (Lumen Gentium, 12); «Quando o Romano Pontífice, ou o corpo episcopal com ele, define alguma verdade, propõe-na segundo a Revelação, à qual todos se devem conformar» (Lumen Gentium, 25).

Não é possível enumerar todos os motivos que levaram o Magistério a escolher como guia seguro, nas disciplinas teológicas e filosóficas, São Tomás de Aquino; mas um sem dúvida é o seguinte: ter colocado os princípios de valor universal, que regem a relação entre razão e fé. A fé contém de modo superior, diverso e eminente, os valores da sabedoria humana, por isso é impossível que a razão possa discordar da fé e, se discorda, é necessário rever e reconsiderar as conclusões da filosofia. Neste sentido a mesma fé torna-se precioso auxílio para a filosofia.

Continua sempre a valer a recomendação de Leão XIII: «Quapropter qui philosophiae studium cum obsequio fidei christianae coniungunt, ii optime philosophantur: quandoquidem divinarum veritatum splendor, animo exceptus, ipsam iuvat inteligentiam; cui non modo nihil de dignitate detrahit, sed nobilitatis, acuminis, firmitatis plurimum addit» (Aeterni Patris, 13).

A verdade filosófica e a teológica convergem na única verdade. A verdade da razão sobe das criaturas a Deus; a verdade da fé desce directamente de Deus ao homem. Mas esta diversidade de método e de origem não destrói a sua fundamental unicidade, porque idêntico é o Autor quer da verdade que se manifesta através da criação, quer da verdade que é comunicada pessoalmente ao homem através da sua Palavra. Investigação filosófica e investigação teológica são duas diversas direcções de marcha da única verdade, destinadas a encontrarem-se, no mesmo caminho, para se ajudarem. Assim a razão iluminada, robustecida e garantida pela fé torna-se fiel companheira da própria fé e a fé alarga imensamente o horizonte limitado da razão humana. Sobre este ponto São Tomás é verdadeiramente Mestre iluminante: «Quia vero naturalis ratio per creaturas in Dei cognitionem ascendit; fidei vero in nos, e converso, divina revelatione descendit, est autem eadem via ascensus et descensus, oportet eadem via procedere in his quae supra rationem credentur, qua in superioribus processum est circa ea quae ratione investigantur de Deo» (Contra Gentes, IV, 1, n. 3349).

A diferença do método e dos instrumentos de investigação diversifica bastante o saber filosófico do teológico. Mesmo a melhor filosofia, a de estilo tomista, que Paulo VI tão bem definiu como «filosofia natural da mente humana», dócil para escutar e fiel em exprimir a verdade das coisas, é sempre condicionada pelos limites da inteligência e da linguagem humana. Por isso o Angélico não hesita em afirmar: «Locus ab auctoritate quae fundatur super ratione humana est infirmissimus» (S. Theol. I, q. 1, a 8, ad 2). Qualquer filosofia, enquanto é produto do homem, tem os limites do homem. Pelo contrário, «locus ad auctoritate quae fundatur super revelatione divina est efficacissimus» (Ibid.). A autoridade divina é absoluta, por isso a fé goza da firmeza e da segurança do próprio Deus; a ciência humana tem sempre a debilidade do homem, na medida em que se funda no homem. Todavia, também na filosofia há alguma coisa absolutamente verdadeira, indefectível e necessária, como são os princípios primeiros, fundamento de todo o conhecimento.

A verdadeira filosofia eleva o homem a Deus como a Revelação aproxima Deus do homem. Para Santo Agostinho «verus philosophus est amator Dei» (S. Augustinus, De Civ. Dei, VIII, 1; PL. 41, 225). São Tomás, fazendo-se dele eco, diz, com outras palavras, a mesma coisa: «Fere totius philosophiae consideratio ad Dei cognitionem ordinatur» (Contra Gentiles, I, c. 4; n. 23). «Sapientia est veritatem praecipue de primo principio meditari» (Contra Gentiles, I, c. I, n. 6). Amor da verdade e amor do bem, quando são autênticos, estão sempre juntos. Para destruir a ideia, por alguns proposta, de ser Santo Tomás um frio intelectualista, está o facto de o Angélico resolver o conhecimento mesmo em amor da verdade, quando põe como princípio de todo o conhecer «verum est bonum intellectus» (Ethic. I, lect. 12, n.139; cf. também Ethic. VI, n. 1134; S. Theol. I, q. 5, a 1, ad 4; I-IIae, q. 8, a I). Portanto a inteligência é feita para a verdade e ama-a como seu bem conatural. E como a inteligência não se sacia de nenhuma verdade parcial conquistada, mas tende sempre para mais além, a inteligência tende para além de toda a verdade particular e alarga-se naturalmente para a Verdade Total e Absoluta que, em concreto, não pode ser senão Deus.

O desejo da verdade transfigura-se em natural desejo de Deus e encontra-se esclarecido só à luz de Cristo, a  Verdade feita Pessoa.

Assim toda a filosofia e a teologia de São Tomás não estão situadas fora, mas dentro do célebre aforismo: «fecisti nos ad te; et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te» (S. Augustinus, Conf I, 1). E quando São Tomás passa, da natural tendência do homem para a verdade e o bem, para a ordem da graça e da redenção transforma-se - não menos que Santo Agostinho, São Boaventura e São Bernardo - em cantor do primado da caridade: «Charitas est mater et radix omnium virtutum in quantum est omnium virtutum forma» (S. Theol. I IIae,62,a.4; cf. também I-IIae q. 65, a.2; I-IIae, q. 65. a. 3; I-IIae, q. 68 a. 5).

5. Há ainda outros motivos que tornam actual São Tomás: o seu altíssimo sentido do homem, «tam nobilis creatura» (Contra Gentiles, IV, I n. 3337). Que ideia tinha ele desta «nobilis creatura», imagem de Deus, é fácil conclui-lo todas as vezes que ele se aplica a falar da Encarnação e da Redenção. Desde a sua primeira obra juvenil, o Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, no prólogo ao Terceiro livro, no qual se aplica a tratar da Encarnação do Verbo, não hesita em comparar o homem ao «mar», na medida em que ele recolhe, unifica e eleva em si todo o mundo infra-humano, como o mar recolhe todas as águas dos rios que a ele vão ter.

No mesmo prólogo define o homem como o horizonte da criação, na qual se unem o céu e a terra; como vínculo do tempo e da eternidade; como síntese da criação. O seu vivíssimo sentido do homem nunca falta em todas suas obras. Nos últimos tempos da sua vida, iniciando o tratado da Encarnação na Terceira Parte da Summa Thelogica, Santo Agostinho, afirma que apenas assumindo a natureza humana, podia o Verbo mostrar «quanta sit dignitas humanae naturae ne eam inquinemus peccando »(S. Theol. III, q. 1, a. 2). E logo a seguir acrescenta: encarnando e assumindo a natureza humana Deus pôde mostrar «quam excelsum locum inter creaturas habeat humana natura» (Ibid.).

6. Nos encontros do vosso Congresso foi observado, além do mais, que os princípios da filosofia e da teologia de São Tomás não tiveram talvez, no sector moral, uma valorização como a exigem os tempos e como é possível deduzi-la dos grandes princípios postos pelo Aquinate, que devem ligar-se solidamente com as bases metafísicas, para maior organicidade e vigor. No sector social mais se fez, mas há ainda muito espaço para encher, para vir ao encontro dos problemas mais vivos e urgentes do homem de hoje.

Pode ser este um programa que empregue a Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino no futuro imediato, mantendo o olhar atento aos sinais dos tempos, às exigências de maior organicidade e penetração, segundo as directrizes do Vaticano II (cf. Optatam Totius, 16; Gravissimum Educationis, 10), e das correntes de pensamento do mundo contemporâneo, em não poucos aspectos, diversas das dos tempos de São Tomás e também do período em que foi publicada por Leão XIII a Encíclica «Aeterni Patris».

São Tomás marcou um caminho, que pode e deve ser levado avante e actualizado, sem lhe trair o espírito e os princípios fundamentais, mas tendo também conta das conquistas científicas modernas. O verdadeiro progresso da ciência não pode nunca contradizer a filosofia, como a filosofia não pode nunca contradizer a fé. Os novos contributos científicos podem ter função catártica e liberalizadora diante dos limites impostos à investigação filosófica pelo atraso medieval, para não dizer pela não existência de uma ciência como nós hoje possuímos. A luz não pode ser obscurecida , mas só reforçada pela luz. A ciência e a filosofia podem e devem mutuamente colaborar, contanto que uma e outra se mantenham fiéis ao próprio método. A filosofia pode iluminar a ciência e libertá-la dos seus limites, como, por sua vez, a ciência pode projectar nova luz sobre a filosofia e abrir-lhe novos caminhos. E este o ensinamento do Mestre de Aquino, mas primeiro ainda é a Palavra da Verdade mesma, Jesus Cristo, que nos assegura: «Veritas liberabit vos» (Jo. 8, 32).

7. Como é sabido, Leão XIII, rico de sabedoria e de experiência pastoral, não se contentou com publicar directrizes teóricas. Exortou os Bispos a criarem academias e centros de estudos tomistas, e começou por dar exemplo, instituindo, aqui em Roma, a «Pontifícia Academia de São Tomás de Aquino» a que foi depois unida, em 1934, a mais antiga «Academia de Religião católica». O Congresso, que se realizou estes dias, tinha também a finalidade de celebrar o centenário da vossa mesma Academia. E com muita razão, porque a ela pertenceram, como Presidentes ou como Sócios, ilustres Personagens, insignes Cardeais, muitos dos melhores Engenhos, e Mestres das ciências sagradas de Roma e do mundo. Academia, que foi sempre especialmente querida a todos os meus Predecessores até Paulo VI, que a recebeu não menos de duas vezes em audiência, por ocasião dos precedentes Congressos, pronunciando discursos e dando directrizes memoráveis.

Não se podem passar em silêncio as principais características, que permitiram à vossa Academia manter-se fiel aos encargos que os Sumos Pontífices lhe foram confiando: a sua católica universalidade, graças à qual sempre teve, entre os seus sócios, personalidades residentes em Roma e fora de Roma — como não recordar Jacques Maritain e Étienne Gilson? —; membros do clero diocesano e religiosos de todas as Ordens e Congregações; a sua prontidão no estudo dos problemas contemporâneos, constituídos objectos de análise, à luz da doutrina da Igreja: «Ecclesiae Doctorum, praesertim Sancti Tomae vestigia premendo» (Gravissimum Educationis, 10), quase preludiando o Concílio Vaticano II.

O testemunho mais convincente são as obras da Academia: os numerosos ciclos de conferências, as publicações, os Congressos periódicos queridos pelo Papa Pio XI e realizados com exemplar pontualidade e aproveitamento dos estudos católicos.

Nem posso deixar de recordar, entre os alunos que obtiveram o doutoramento na Pontifícia Academia Romana de São Tomás de Aquino, dois meus ilustres predecessores: Pio XI e Paulo VI.

Venerados e caros Irmãos!

O Concílio Vaticano II, que deu novo impulso aos estudos católicos com os seus decretos sobre a formação sacerdotal e sobre a educação católica, sob o patrocínio do Mestre São Tomás (S. Thoma magistro: cf. Optatam Totius, 16), sirva de estímulo e auspício para uma renovada vida e para abundantes frutos, no próximo futuro, para o bem da Igreja.

Ao mesmo tempo que vos expresso a minha mais viva complacência pelo Congresso Tomista Internacional, que nestes dias prestou verdadeiramente notável contributo científico quer pela qualificação dos participantes e relatores, quer pela cuidadosa focagem dos vários problemas históricos e filosóficos, exorto-vos a continuar, com grande empenho e seriedade, a realizar as finalidades da vossa Academia; seja centro vivo, latejante e moderno, em que o método e a doutrina do Aquinate sejam postos em permanente contacto e sereno diálogo com os complexos fermentos da cultura contemporânea, na qual vivemos e estamos mergulhados.

Com tais votos, renovo-vos a minha sincera benevolência e concedo-vos do coração a minha Benção Apostólica.

 

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