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VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA JOÃO PAULO II AO BRASIL
[12-21 DE OUTUBRO DE 1991]

DISCURSO DO SANTO PADRE
 AOS MORADORES DA FAVELA DO LIXÃO DE SÃO PEDRO

Vitória, 19 de Outubro de 1991

 

Queridos irmãos e irmãs!

1. Quero confidenciar-lhes que este encontro com os moradores da favela de São Pedro, é um momento que eu aguardava com carinho todo especial, desde que comecei minha segunda viagem pastoral ao Brasil.

Vocês, favelados, estão muito perto do coração do Papa, porque estão muito perto do Coração de Cristo. Os pobres são os prediletos de Deus, e a eles Jesus dedicou um amor de preferência, que a Igreja deseja imitar.

Vocês estão também muito perto do coração do Papa, porque é sobretudo nos pobres, com os quais se identifica, que Jesus quer ser amado (Cfr. Mt 25, 40-45).

No rosto dos que sofrem, sob o peso das carências espirituais, afetivas e materiais, a Igreja reconhece o rosto do próprio Cristo. Foram os Bispos latino-americanos que o recordaram em Puebla: rostos de crianças, golpeadas pela pobreza ainda antes de nascer, crianças abandonadas e muitas vezes exploradas; rostos de jovens desorientados por não encontrarem seu lugar na sociedade, frustrados por falta de capacitação e de emprego; rostos de trabalhadores freqüentemente mal retribuídos ou com dificuldade para se organizarem e defenderem os seus direitos; rostos dos subempregados e desempregados, despedidos por causa das duras exigências das crises econômicas; rostos das mães de família, angustiadas por não terem os meios para sustentar e educar os filhos; rostos dos mendigos e marginalizados; rostos dos anciãos desamparados e esquecidos (Cfr. Puebla, 31-39; Ioannis Pauli PP. II Homilia in Missam in loco v.d. “Xico de Chalco” prope Mexicopolim celebratam, 3, die 7 maii 1990: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIII, 1 (1990) 1137s.).

2. Contemplando as imensas multidões deste querido Brasil, que levam em si os traços dolorosos de Cristo, vêm-me ao pensamento as palavras de Jesus: “tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 40).

A Igreja quer servir aos pobres no espírito do Evangelho e, por isso, nunca deixou de se esforçar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los, através de inúmeras iniciativas e obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda a parte, indispensáveis (Cfr. S. Congr. pro Doctr. Fidei Libertatis Conscientia, 68).

Ao mesmo tempo, dentro de uma perspectiva mais ampla, a Igreja tem colaborado e colabora sem descanso para que sejam sanadas na sua raiz as causas da pobreza e da miséria, por meio de sua doutrina social, que ela se esforça para que seja levada à pratica, orientando as consciências e incentivando profundas reformas na organização da sociedade, a fim de que todos possam alcançar condições de vida que sejam dignas da pessoa humana (Ibidem)

Quando Jesus chamou bem-aventurados os pobres em espírito (Cfr. Mt 5, 3), anunciava uma felicidade, baseada no amor, que Ele queria implantar em cada coração humano. Referia-se a um espírito de pobreza e de desprendimento que, em qualquer situação de vida, é feito de desapego, de confiança em Deus, de fé na verdadeira riqueza, que se encontra na comunhão com Deus, de sobriedade e de disposição para a partilha (Cfr. S. Congr. pro Doctr. Fidei Libertatis Conscientia, 66).

Quantas vezes vocês, queridos irmãos favelados, os que sofrem de maiores carências, não são um exemplo maravilhoso desse espírito cristão! Vejo-os a ajudar, a partilhar o pouco que têm, a acolher uma criança abandonada, a unir seus esforços, como nos “mutirões”, para solucionar os problemas de moradia, ou para organizar e encaminhar, sem ódio nem violência, que são incompatíveis com o espírito cristão, suas justas reivindicações.

3. Mas bem diferente desta pobreza, que Cristo proclamava bem-aventurada, é outra pobreza, que afeta uma multidão de irmãos nossos e dificulta seu desenvolvimento integral como pessoas. Frente a esta pobreza, que é carência e privação dos bens materiais necessários, a Igreja ergue a sua voz, convocando e suscitando a solidariedade de todos para a debelar (Cfr. Ioannis Pauli PP. II Homilia in Missam in loco v.d. “Xico de Chalco” prope Mexicopolim celebratam, 4, die 7 maii 1990: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XIII, 1 (1990) 1139).

A Igreja é a promotora da civilização do amor. Não pode deixar de falar quando, nas multidões empobrecidas, percebe os sinais de uma civilização do egoísmo.

É por isso que se sente no dever de declarar injustas, como já o fazia, há cem anos, o Papa Leão XIII, “a acumulação da riqueza nas mãos de poucos, ao lado da miséria de muitos” (Rerum Novarum, 97 e Centesimus Annus, 5), o escândalo da ostentação e do luxo, ao lado do sofrimento causado pela falta dos bens mais indispensáveis.

Todas as situações de injustiça social, antes de mais nada, são “o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais. Trata-se dos pecados muito pessoais de quem gera ou favorece a iniqüidade ou a desfruta, de quem, podendo fazer alguma coisa para a evitar ou eliminar, ou pelo menos limitar certos males sociais, deixa de o fazer por preguiça, por Çmedo e conivência, por cumplicidade disfarçada ou indiferença” (Reconciliatio et Paenitentia, 16).

Por isso, a Igreja sabe, e prega, que toda e qualquer transformação social tem que passar necessariamente pela conversão dos corações. Esta é a primeira e principal missão da Igreja.

4. Mas a civilização do amor pressupõe necessariamente a prática da justiça. “O amor aos homens, e em primeiro lugar, ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo, concretiza-se na promoção da justiça” (Centesimus Annus, 58).

É preciso um forte despertar da consciência moral de todos os homens deste país, que os torne sensíveis às exigências da justiça e os faça corresponder efetivamente a elas.

Diante de vocês, queridos irmãos e irmãs da favela de São Pedro, quero renovar meu apelo a todos os protagonistas da vida econômicosocial do Brasil, trabalhadores, empresários e governantes, para que conjuguem seus esforços, solidariamente, na promoção de reformas corajosas e profundas, que possam conduzir quanto antes à superação das injustas desigualdades que afligem o povo desta amada Nação.

A doutrina social católica repudiou sempre a organização da sociedade baseada num determinado modelo de capitalismo liberal, justamente qualificado de “capitalismo selvagem”, que tem como notas dominantes a procura desenfreada do lucro, unida ao desrespeito pelo valor primordial do trabalho e pela dignidade do trabalhador. Esta procura não raro é “acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis, fundados em atividades ilegais”. É um sistema econômico-social que faz da ganância um fim absoluto e degrada o trabalho humano com uma iníqua exploração (Centesimus Annus, 33 e 48).

Repudiou, igualmente, a Igreja as soluções perversas do coletivismo marxista, que asfixia a liberdade, sufoca a iniciativa, reduz a pessoa humana à condição de simples peça de uma engrenagem, fomenta o ódio e acaba no empobrecimento, que pretendia superar, e nas mais degradantes escravidões. A recente experiência do Leste europeu é bastante eloqüente neste sentido.

5. É na fidelidade a Cristo, seu Fundador, que a Igreja, sem propor modelos concretos de organização político-social, oferece, “como orientação ideal indispensável, a sua doutrina social” (Centesimus Annus, 43).

À luz do Evangelho, a Igreja exorta os trabalhadores à prática da solidariedade na sua “luta pela justiça social” (Centesimus Annus, 14), isto é, a unirem seus esforços, sem violências gratuitas ou ideológicas, e abertos ao entendimento, determinados a conquistar a garantia de trabalho, o salário suficiente para a vida da família, a solução dos problemas de moradia e de educação, o seguro social para a velhice, a doença e o desemprego.

À luz do Evangelho, a Igreja recorda aos empresários a grave responsabilidade que lhes cabe, de criar nas empresas, verdadeiras “comunidades de trabalho”, em que o próprio trabalho ocupe uma “posição central”, sem jamais ver-se reduzido “ao nível de simples mercadoria” (Centesimus Annus, 32-33 e 34). Nunca se pode esquecer que, se a doutrina da Igreja reconhece o valor da livre iniciativa, como uma das molas propulsoras do progresso social, não deixa de lembrar vivamente que, sobre toda propriedade, pesa uma “hipoteca social”. “O uso das coisas, confiado à liberdade do homem, está subordinado ao seu originário destino comum de bens criados” (Centesimus Annus, 30 e 31).

À luz do Evangelho, a Igreja dirige um forte apelo moral aos poderes públicos, e afirma que “é estrito dever de justiça e de verdade impedir que necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos” (Centesimus Annus, 34). Neste sentido, reafirma o “princípio de subsidiariedade”, que justifica e, em muitos casos reclama, a oportuna intervenção do Estado para que, sem ampliar além dos limites necessários essa intervenção, se criem as condições que garantam oportunidade de trabalho, justa remuneração e atendimento a todos os direitos e necessidades dos trabalhadores (Cfr. Centesimus Annus, 48).

É ainda à luz do Evangelho que a Igreja lança também seu apelo à cooperação internacional. “É necessário que as Nações mais fortes saibam oferecer às mais débeis ocasiões de inserção na vida internacional, e que as mais débeis saibam aproveitar essas ocasiões, realizando os esforços e sacrifícios necessários, assegurando a estabilidade do quadro político e econômico, a certeza de perspectivas para o futuro, o crescimento da capacidade dos próprios trabalhadores, a formação de empresários eficientes e conscientes das suas responsabilidades” (Laborem exercens, 8 e Centesimus Annus, 35). Dentro deste quadro de cooperação internacional, como afirmava recentemente, “não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis”, mas é necessário encontrar soluções “compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso” (Cfr. Centesimus Annus, 35).

6. Queridos favelados do “Lixão de São Pedro”. O Papa, o Sucessor de Pedro, quis ser entre vocês o porta-voz da mensagem de amor e de justiça do nosso Salvador, Jesus Cristo. Ele não se esquecerá das palavras de acolhida da Professora Maria das Graças Andreatta e Silva, falando em nome de todos os que moram aqui, para transmitir aquilo que cada habitante, homem, mulher ou criança o faria, se pudessem. Muito obrigado! Muito obrigado a todos, que viveis no Bairros Nova Palestina, Conquista, Nossa Senhora das Graças e Resistência! O Papa vos abraça e quer acrescentar: a Igreja é mensageira do “Deus da esperança” (Rm 15, 13). Por isso, ela lhes pede que abram seus corações a Deus. “Abram as portas a Cristo!”, que quer caminhar com vocês, tornando santa e fecunda a cruz que carregam. Só em Cristo se encontra a luz e a vida. Nenhum bem humano, por mais necessário que seja, poderá jamais preencher o vazio que deixa na alma a carência de Deus. Só quando encontramos Cristo, como nosso maior tesouro (Cfr. Mt 13, 34), é que podemos compartilhar o seu amor, “dar a vida” pelos nossos irmãos (Cfr. Jo 15, 13) e colaborar com Ele na construção de seu “Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz” (Praefatio in Sollemnitate D.N.I.C. Universorum Regis).

Que o Deus do amor e da paz os abençoe, como eu, em Seu nome, os abençoo de todo o coração.

 



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