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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AO SEGUNDO GRUPO DE BISPOS 
DOS ESTADOS UNIDOS EM VISITA 
"AD LIMINA APOSTOLORUM"

 

 

 

Estimado Cardeal Bevilacqua 
Prezados Irmãos Bispos 

1. «A graça e a paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus estejam convosco» (Rm 1, 7). Continuando esta série de visitas ad Limina dos Prelados dos Estados Unidos, dou-vos as boas-vindas, Bispos provenientes da Pensilvânia e de Nova Jersey. Confio o fruto da nossa oração e dos nossos encontros à graça do Espírito Santo que, «ao longo dos séculos, indo haurir do tesouro da Redenção de Cristo, foi dando aos homens a vida nova» (Dominum et vivificantem, 53). Agora o Espírito está a preparar a Igreja para o Grande Jubileu, um tempo para escutar de novo e responder de modo cada vez mais decidido à chamada a abrir os nossos corações ao Evangelho, a abraçar a sua mensagem salvífica e a permitir que esta transforme as nossas vidas. Ao aproximar-se o Jubileu, os Pastores do povo de Deus têm uma nova oportunidade de anunciar aos homens e às mulheres de hoje que, de facto, Deus veio ao meio de nós e que o Evangelho constitui «a força de Deus para a salvação de todo aquele que acredita» (Rm 1, 16). Rezemos para que o Espírito Santo ilumine ulteriormente as nossas mentes na «hora» que estamos a viver e as oportunidades e responsabilidades que esta «hora» comporta para o futuro da Igreja e da sociedade. 

2. Como recordei ao primeiro grupo proveniente do vosso país, a recepção do magistério do Concílio Vaticano II e a renovação da Igreja considerada pelo mesmo Concílio serão a luz-guia para as nossas reflexões durante esta série de visitas ad limina Apostolorum. Hoje, muitos católicos não se recordam do Concílio. Todavia, aqueles de entre nós que tiveram a maravilhosa oportunidade de participar nele, viveram-no como um momento de extraordinário dinamismo e crescimento espiritual. O Concílio fez com que entrássemos em íntimo e tangível contacto com a riqueza de 19 séculos de santidade, doutrina e serviço à família humana; revelou-nos a unidade e a diversidade da comunidade católica no mundo inteiro; e ensinou-nos a abrir-nos aos nossos irmãos e irmãs cristãos, aos seguidores de outras religiões, às alegrias, esperanças, sofrimentos e ansiedades da humanidade. É óbvio que, na sua Providência, Deus quis preparar a Igreja para uma nova Primavera do Evangelho – para o início do próximo Milénio cristão – mediante a extraordinária graça do Concílio. 

Entre os ensinamentos que o Concílio nos legou, nenhum deles tem uma influência tão clarividente sobre a comunidade católica em geral e as nossas próprias vidas de sacerdotes e de Bispos, como a reflexão da Igreja sobre si mesma «ad intra» e «ad extra», contida na Constituição Dogmática da Igreja Lumen gentium, e na Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes. Em que medida a visão do Concílio acerca da Igreja penetrou na vida das comunidades cristãs? O que se deve fazer para assegurar que a Igreja inteira entre no próximo Milénio com uma consciência mais clara do seu próprio mistério, com maior confiança na sua singular importância para a família humana, com ardente empenhamento na sua missão? 

3. Como Bispos, temos a urgente responsabilidade de ajudar o povo de Deus a compreender e apreciar o profundo mistério da Igreja, a vê-la sobretudo como a comunidade em que encontramos Deus vivo e o seu amor misericordioso. O nosso objectivo pastoral deve ser a criação de uma consciência mais intensa acerca do facto que na plenitude dos tempos Deus – que intervém na história quando quer – enviou o seu Filho, nascido de mulher, para a salvação do mundo inteiro (cf. Gl 4, 4). Esta é a grande verdade da história humana: a história da salvação entrou na história do mundo, tornando-a uma história repleta da presença de Deus e assinalada por vicissitudes que superabundam de significados para o povo que Deus denomina como seu. A obra redentora do Filho continua na Igreja e através da Igreja. Efectivamente, desde o princípio, «aos que acreditam em Cristo, [Deus] quis convocá-los na Santa Igreja» (Lumen gentium, 2). Neste sentido transcendente e teológico, a Igreja é a meta de todas as coisas: Deus criou o mundo a fim de transmitir a sua infinita bondade e chamar as suas amadas criaturas em comunhão consigo mesmo, uma comunhão realizada mediante a convocação de todos por parte de Cristo. Esta convocação é a Igreja (cf. Catecismo da Igreja Católica, 760). «Assim como a vontade de Deus é a criação e se chama "mundo", assim também a sua intenção é a salvação dos homens, e denomina-se "Igrejal,» (Clemente de Alexandria, Paedagogus, I, 6, 27). 

4. A verdade fundamental acerca da Igreja, que os Padres do Concílio procuraram sublinhar, é «o Reino de Cristo já presente em mistério» (Lumen gentium, 3). Os discípulos de Cristo vivem «no mundo», mas não pertencem «ao mundo» (Jo 17, 16); assim, são obviamente influenciados pelos processos económico, social, político e cultural que determinam a vida e a acção dos povos e das sociedades. Desta forma, na sua peregrinação através da história, a Igreja adapta-se às circunstâncias mutáveis, enquanto permanece a mesma, na fidelidade ao seu Senhor, à sua Palavra revelada e «àquilo que foi transmitido» sob a guia do Espírito Santo. No período pós-conciliar, fomos chamados a servir o povo de Deus no meio de profundas mudanças sociais. Nalguns casos, a rapidez das transformações que se verificaram nos 30 anos sucessivos ao Concílio e a tendência das culturas ocidentais a circunscreverem as convicções religiosas ao sector privado dificulta a «recepção» por parte dos católicos do ensinamento do Concílio sobre a singular natureza e missão da Igreja. A história cultural dos Estados Unidos teve um particular impacto sobre o modo de os católicos compreenderem a Igreja nas últimas décadas. É necessário recordar a todos que, precisamente porque a Igreja é um «mistério», a sua realidade jamais pode ser compreendida de maneira completa pelas categorias ou análises sociológicas ou políticas. 

Em conformidade com a Carta Encílica Mystici Corporis, do Papa Pio XII, e após um período em que a tendência da eclesiologia era focalizar a Igreja primariamente como uma instituição, o Concílio Vaticano II procurou aprofundar o apreço pela Igreja como sacramento de encontro com Cristo vivo. Como Pastores de almas, devemos perguntar-nos em que medida se prestou atenção à exortação da Lumen gentium a um mais profundo sentido do mistério interior da Igreja. Sucumbiram porventura os católicos às vezes à tentação, amplamente difundida na cultura ocidental contemporânea, de julgar a Igreja em termos de predominância política? Sem dúvida, não era intenção do Concílio «politizar» a Igreja, de maneira que todas as questões fossem susceptíveis de uma classificação política. Ao contrário, era precisamente para aumentar e aprofundar a nossa fé e experiência da Igreja como comunhão que os Padres do Concílio descreveram a Igreja através da maravilhosa colecção de imagens bíblicas, que se encontra nos nn. 5 e 6 da Lumen gentium, e não segundo as categorias institucionais a que eles estavam habituados. 

Hoje, à distância de 30 anos da Lumen gentium e da Gaudium et spes, observamos com suficiência de perspectiva que, enquanto os frutos do Concílio são multíplices e em toda a parte há sinais de que o Concílio deu origem a uma restabelecida firmeza na fé, a novos sinais de santidade e a um renovado amor pela Igreja, ainda existem algumas tendências redutivas da compreensão da Igreja. Como resultado disto, eclesiologias inadequadas, radicalmente diferentes daquelas que o Concílio e o subsequente Magistério apresentaram, impregnaram as obras teológicas e catequéticas. Na prática pastoral, alguns sectores do Catolicismo transformaram-nas no fundamento de uma visão sociológica mais ou menos horizontal das realidades eclesiais. Por conseguinte, devemos renovar os nossos esforços em vista de ensinar a riquíssima eclesiologia do Concílio. 

5. Só podemos apreciar verdadeiramente o que é a Igreja se compreendermos que cada aspecto do seu ser é forjado pela renovada relação e pela nova aliança que Deus estabeleceu com a humanidade mediante a Cruz de Cristo. O mistério que nos envolve é um mistério de comunhão, uma partilha através da graça na vida do Pai, que nos foi transmitida mediante Cristo no Espírito Santo. Jamais devemos deixar de reflectir sobre a chamada a entrar em íntima relação de vida e de amor com a Santíssima Trindade. Todo o objectivo do nosso ministério é orientar os outros para esta comunhão, que não é obra nossa. Devemos induzir os fiéis a compreender que não entramos em comunhão com Deus simplesmente através de uma opção pessoal, segundo os nossos gostos particulares; não entramos na Igreja como se se tratasse de uma associação de voluntariado. Pelo contrário, somos incorporados no Corpo de Cristo através da graça do Baptismo e da plena participação em tudo o que constitui a realidade divino-humana da Igreja. 

Consequentemente, a comunidade dos seguidores de Cristo é acima de tudo uma solidariedade espiritual, a communio sanctorum. Nós somos o Povo peregrinante de Deus e caminhamos rumo à nossa Pátria celestial, assistidos pela intercessão de Maria e dos Santos que nos precederam. A Igreja abarca aqueles que agora vêem Deus como Ele é, bem como as pessoas que morreram e estão a ser purificadas. Talvez a nossa consciência desta dimensão da natureza da Igreja tenha diminuído um pouco nos últimos anos. Deve-se prestar mais atenção à íntima relação entre a Igreja que está na terra e a Igreja que está no céu. Estão os católicos mais jovens suficientemente conscientes da realidade de Maria e dos Santos? O exemplo e a intercessão de Maria e dos Santos auxiliam o nosso povo a responder à vocação universal à santidade? Compreendemos a liturgia da Igreja como participação na liturgia celeste? A recuperação desta compreensão ajuda a refortalecer a frequência da Missa dominical? 

6. A Igreja que está nos Estados Unidos enriqueceu-se com uma enorme variedade de expressões da fé presentes entre as pessoas de diversas tradições étnicas. Esta rica diversidade indica que a Igreja é plenamente católica, incluindo todos os povos e culturas. Todavia a Igreja, com todos os seus diferentes  membros, constitui o único Corpo de Cristo. A diversidade na Igreja deve servir a unidade da única fé e do único baptismo (cf. Ef 4, 5) a fim de, «vivendo um amor autêntico, crescermos sob todos os aspectos em direcção a Cristo, que é a Cabeça. Ele organiza e dá coesão ao corpo inteiro, através de uma rede de articulações... para que o corpo se construa no amor» (Ef 4, 15-16). O respeito pelas culturas e tradições específicas deve ser sempre acompanhado pela fidelidade à verdade essencial do Evangelho, transmitida no ensinamento da Igreja. 

Uma forma particularmente rica da diversidade que edifica o Corpo de Cristo encontra-se nas Igrejas de Rito Oriental, presentes ao lado da Igreja de Rito Latino em inúmeras partes do vosso país. Estou muito feliz por saudar os Arcebispos e Arquieparcas que participam nesta visita ad Limina. Os católicos orientais que vivem nos Estados Unidos constituem uma ponte natural entre o Oriente e o Ocidente. Por um lado, mediante a experiência directa, eles tornam conhecido o Oriente cristão e, por outro, contribuem para o desenvolvimento das Igrejas Orientais nos seus países de origem, dando testemunho das contribuições recebidas do Ocidente e oferecendo assistência espiritual e material às pessoas que vivem na própria pátria. Com a finalidade de cumprir esta dúplice tarefa, é essencial que conservem e aprofundem o sentido da pertença à sua específica tradição eclesial, recorrendo às indicações oferecidas na Instrução para a aplicação das prescrições litúrgicas do Código de Direito Canónico das Igrejas Orientais, publicado pela Congregação para as Igrejas Orientais. 

Os Pastores das Igrejas Orientais enfrentam novos e exigentes desafios, assegurando aos fiéis que chegaram recentemente aos Estados Undidos a integração adequada nas suas respectivas comunidades eclesiais. Deve-se também considerar com seriedade os modos de enfrentar os problemas cuja origem é a dispersão dos fiéis, que continuam a abandonar as áreas onde a sua comunidade tradicionalmente estava presente e a sua identidade eclesial era preservada com maior facilidade, para viver noutras regiões do país. 

Estes aspectos põem em evidência a grande necessidade de uma íntima colaboração entre os Bispos latinos e orientais, em vista de salvaguardar e garantir a legítima diversidade que constitui a riqueza da universalidade da Igreja. Exorto os meus Irmãos Bispos de rito latino a promover um maior conhecimento e apreço pela herança oriental, que constitui uma parte integrante da expressão católica da fé. Desta forma, todos os fiéis alcançarão uma maior compreensão da experiência cristã e a comunidade católica poderá dar uma resposta cristã mais completa às expectativas dos homens e das mulheres de hoje (cf. Carta Apostólica Orientale lumen, 5). 

7. Queridos Irmãos Bispos, enquanto aguardamos com ansiedade e esperança a celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, rezo para que os sacerdotes, os diáconos, os religiosos e os fiéis leigos das vossas Dioceses sejam inspirados a crescer no seu amor pela Igreja e, assim, entrem numa comunhão cada vez mais profunda com Cristo Esposo. O mais importante aspecto da nossa preparação para a celebração do segundo milénio da Encarnação constitui a nossa resposta ao chamamento à santidade, «porque sem ela ninguém verá o Senhor» (Hb 12, 14). É somente na graça do Espírito Santo que o Povo de Deus pode verdadeiramente desafiar a sociedade mediante o seu indefesso e corajoso testemunho da verdade. Confiando cada um de vós e todas as pessoas que servis ao cuidado materno de Maria, concedo cordialmente a minha Bênção apostólica.

 

 



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