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 DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS BISPOS DE BOSTON E HARTFORD (EUA)
 POR OCASIÃO DA VISITA "AD LIMINA APOSTOLORUM"

24 de Novembro de 1998

 

 

Estimado Cardeal Law
Queridos Irmãos no Episcopado!

1. Saúdo-vos cordialmente, Bispos da Nova Inglaterra, que abrange as Províncias eclesiásticas de Boston e Hartford. Durante este ano tive a alegria espiritual de encontrar praticamente todos os Pastores da Igreja nos Estados Unidos da América, que representam mais de duzentas jurisdições, incluídas as das Igrejas católicas de rito oriental. Ao aproximar-se o final desta série de visitas «ad Limina», «dou graças incessantemente por vós ao meu Deus, pela graça que Ele vos concedeu em Jesus Cristo; porque em todas as coisas fostes enriquecidos n'Ele» (1 Cor 1, 4-5). Rezámos juntos e escutámo-nos uns aos outros, procurando sintetizar todo o bem que o Espírito Santo inspira ao Povo de Deus no vosso País. Além de revigorar os vínculos de comunhão entre nós, estas visitas permitiram-nos reflectir, num clima de peregrinação e de repouso orante, sobre as oportunidades de evangelização e apostolado da Igreja nos Estados Unidos, à luz do ensinamento do Concílio Vaticano II e ao aproximar-se o Grande Jubileu do Ano 2000.

2. Ocasiões, como a do Grande Jubileu, recordam a todos nós que Deus fez a história e sugerem-nos olhar para o futuro, confiantes na promessa do Senhor de estar connosco para sempre, «até ao fim do mundo» (Mt 28, 20). Os cristãos sabem que o tempo não é uma mera sucessão de dias, meses e anos, nem um ciclo cósmico de retorno eterno. O tempo é um grande drama com um início e um fim, escrito e dirigido pela solicitude providencial de Deus: «Dentro da sua dimensão, foi criado o mundo, no seu âmbito se desenrola a história da salvação, que tem o seu ponto culminante na -plenitude do tempo- da Encarnação e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos tempos» (Tertio millennio adveniente, 10). A vigília pascal recorda-nos que a ressurreição é «o eixo fundamental da história, ao qual fazem referência o mistério das origens e o do destino final do mundo» (Dies Domini, 2). Só à luz de Cristo ressuscitado chegamos a compreender o verdadeiro significado da nossa peregrinação pessoal no tempo, até ao nosso destino eterno. Esta é a mensagem que a Igreja deve proclamar hoje e sempre. Fá-lo, sobretudo na liturgia que celebra a história da salvação e é o lugar privilegiado do nosso encontro com o Pai e com Aquele que Ele enviou, Jesus Cristo. Fá-lo, no seu querigma e na catequese que torna conhecido o ensinamento salvífico do Evangelho, em diálogo com a profunda aspiração do coração humano a obter alguma coisa de divino e eterno, algo de tal modo bom que não acabará. Fá-lo, também nas suas obras de caridade que procuram mitigar a fragilidade da vida humana, por meio do contacto saneador do amor cristão.

3. Nos meus colóquios com os Bispos, não só com os Bispos presentes em cada ocasião particular, mas com toda a vossa Conferência, procurei reflectir sobre aspectos do vosso ministério episcopal, que podem promover a grande primavera do cristianismo que Deus está a preparar ao aproximar-se o Terceiro Milénio cristão e da qual já podemos divisar os primeiros sinais (cf. Redemptoris missio, 86). Juntos falámos das numerosas características da vida da comunidade católica nos Estados Unidos, abençoada pela santidade autêntica de tantos dos seus membros, que se distinguiram por uma profunda sede de justiça, firmes e activos em todas as várias formas de serviço cristão. Como Bispos, estais bem conscientes das forças do vosso povo. Como o homem sábio do Evangelho, deveis considerar de que modo, com as energias e os meios que tendes à disposição, podeis satisfazer as necessidades urgentes do tempo actual (cf. Lc 14, 31). Hoje, creio que o Senhor está a dizer a todos nós: não hesiteis, não tenhais medo de combater a boa batalha da fé (cf. 1 Tm 6, 12). Quando anunciamos a mensagem libertadora de Jesus Cristo, oferecemos ao mundo palavras de vida (cf. Jo 6, 68). O nosso testemunho profético é um serviço urgente e essencial, não só para a comunidade católica mas para a inteira família humana. O Evangelho contém a verdadeira narração do mundo, a sua história, o seu futuro, que são vida na comunhão da Santíssima Trindade.

No final do segundo Milénio, a humanidade encontra-se numa espécie de encruzilhada. Como Pastores responsáveis pela vida da Igreja, devemos meditar profundamente sobre os sinais de uma nova crise espiritual, cujos perigos são evidentes não só a nível pessoal, mas também a nível da própria civilização (cf. Evangelium vitae, 68). Se a crise se aprofundar, o utilitarismo reduzirá cada vez mais os seres humanos a objectos a manipular. Se a verdade moral revelada na dignidade da pessoa humana não disciplinar nem orientar as energias explosivas da tecnologia, a este século de lágrimas poderia seguir uma nova era de barbáries, em vez de uma primavera de esperança (cf. Discurso às Nações Unidas, 5 de Outubro de 1995, n. 18; ed. port. de L'Osserv. Rom. de 14.10.1995, pág. 5).

Ao dirigir-me à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1995, propus que para encontrar de novo esperança e confiança, no limiar de um novo século, devemos: «adquirir novamente a visão daquele horizonte transcendente de possibilidade, para o qual tende o espírito humano» (ibid., n. 16). Visto que a crise espiritual é de facto uma diminuição do mistério transcendente de Deus, ela é ao mesmo tempo uma fuga da verdade sobre a pessoa humana, a criação mais nobre de Deus sobre a terra. A cultura do nosso tempo procura edificar, sem fazer referência alguma ao arquitecto, ignorando a advertência bíblica: «Se não for o Senhor a edificar a casa, em vão trabalham os construtores» (Sl 127, 1). Ao fazê-lo, uma certa parte da cultura contemporânea perde a profundidade e a riqueza do mistério humano, e a própria vida resulta, por isso, empobrecida porque privada de significado e de alegria. Nenhuma tarefa do nosso ministério é mais urgente do que a «nova evangelização», necessária para satisfazer a fome espiritual dos nossos tempos. Não devemos hesitar diante do desafio de comunicar a alegria de sermos cristãos, de estarmos «em Cristo», numa condição de graça com Deus e unidos à Igreja. Isto pode deveras satisfazer o coração humano e a sua aspiração à liberdade.

4. Em nenhum outro âmbito o contraste entre a visão evangélica e a cultura contemporânea, é mais evidente do que no conflito dramático entre a cultura da vida e a cultura da morte. Não quero concluir esta série de encontros sem agradecer, mais uma vez, aos Bispos a sua guia e o seu apoio à vida humana, em particular de quem é mais vulnerável. A Igreja no vosso País está empenhada de muitos modos na defesa e promoção da vida e da dignidade humanas. Através das inúmeras organizações e agências, ela é uma promotora muito generosa dos serviços sociais aos pobres; é activa em apoiar leis mais favoráveis aos imigrantes; participa no debate público sobre a pena capital, consciente do facto que no estado moderno são raríssimos os casos, se não praticamente inexistentes, em que a execução de um réu é uma absoluta necessidade (cf. Evangelium vitae, 56; Catecismo da Igreja Católica, n. 2267). Ao mesmo tempo, ressaltais justamente a prioridade que deve ser atribuída ao direito fundamental à vida do nascituro e à oposição à eutanásia e ao suicídio assistido. O testemunho de católicos norte-americanos em tão grande número, entre os quais muitos jovens, ao serviço do «Evangelho da vida», é um sinal certo de esperança para o futuro e um motivo para dar graças ao Espírito Santo, que inspira assim tanto bem entre os fiéis.

5. Em resposta à crise espiritual do nosso tempo, estou convicto de que haja necessidade radical de curar a mente assim como o coração. A história violenta deste século é devida, em grande parte, ao fechamento da razão à existência de uma verdade última e objectiva. Disto são resultado um cepticismo e um relativismo difundidos, que não conduziram a uma humanidade mais «amadurecida », mas ao grande desespero e à irracionalidade. Na Carta Encíclica Fides et ratio, publicada na semana passada, eu quis defender a capacidade da razão humana de conhecer a verdade. Esta confiança na razão é parte integrante da tradição intelectual católica, mas deve reafirmar-se hoje, diante de uma difundida dúvida doutrinal sobre a capacidade de responder a interrogativos fundamentais: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? (cf. Fides et ratio, nn. 3 e 5). Muitas pessoas são levadas a acreditar que as únicas verdades são as que podem ser demonstradas pela experiência ou pela experimentação científica. O resultado é uma tendência a reduzir as dimensões sociológicas, funcionais, utilitaristas, instrumentais e tecnológicas. Emergiu uma visão relativista e pragmática da verdade. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes (cf. ibidem, n. 5). Um dos sinais mais evidentes da hodierna falta de confiança na verdade é a tendência de alguns a contentar-se de verdades parciais e provisórias, «deixando de tentar pôr as perguntas radicais sobre o sentido e o fundamento último da vida humana, pessoal e social» (ibidem). Ao contentarse de conhecimentos experimentais e incompletos, a razão não consegue prestar justiça ao mistério da pessoa humana, criada para a verdade e profundamente desejosa de a conhecer. Esta difundida atitude tem consequências graves para a fé. Se a razão não pode alcançar as verdades últimas, a fé perde o seu carácter racional e inteligível e reduz-se ao âmbito do não definível, do irracional e do sentimental. O resultado é o fideísmo. Privada da sua relação com a razão humana, a fé perde a sua validade pública e universal e limita-se à esfera privada e subjectiva. No final, a fé teológica é destruída. Com base nestas preocupações, julguei importante escrever a Carta Encíclica Fides et ratio dirigida a vós, Bispos da Igreja, principais testemunhas da verdade divina e católica (cf. Lumen gentium, 25). Desejo encorajar-vos, como Bispos, a manter sempre aberto o horizonte do vosso ministério, para além das tarefas imediatas da vossa quotidiana obra pastoral, àquela sede profunda e universal de verdade, que está presente no coração humano. Promover a renovação cultural e intelectual

6. O diálogo da Igreja com a cultura contemporânea é parte da vossa «diaconia da verdade» (Fides et ratio, 2). Deveis fazer o possível para elevar o nível da reflexão filosófica e teológica, não só nos seminários e nos institutos religiosos católicos (cf. ibidem, 2), mas também entre os intelectuais católicos e entre todos os que desejam compreender mais profundamente a realidade. Ao aproximar-se o novo Milénio, a tutela da pessoa humana por parte da Igreja, exige uma defesa firme e aberta da capacidade da razão humana de alcançar verdades definitivas relativas a Deus, ao homem, à liberdade e à ética. Só através de uma reflexão racional, aberta aos interrogativos fundamentais da existência e isenta de pressupostos redutivos, a sociedade poderá descobrir pontos de referência seguros, a partir dos quais edificar bases certas para a vida dos indivíduos e das comunidades. A fé e a razão, cooperando, manifestam a grandeza do ser humano, para cuja realização «será determinante apenas a opção de viver na verdade, construindo a própria casa à sombra da Sabedoria e nela habitando » (ibidem, 107). A longa tradição intelectual da Igreja é dirigida pela sua confiança na bondade da criação e na capacidade da razão de compreender as verdades morais e metafísicas. A colaboração entre fé e razão e o empenho constante dos pensadores cristãos na filosofia são elementos essenciais da renovação cultural e intelectual, que deveis promover no vosso País. Uma palavra de bênção e de encorajamento

7. Ao concluir esta série de visitas «ad Limina» com os Bispos norte-americanos, desejo exprimir-vos o meu apreço pela comunhão espiritual, pela solidariedade e o apoio que demonstrastes durante os vinte anos do meu Pontificado. Também eu me sinto um vosso amigo e um irmão maior na peregrinação de fé e de fidelidade, que juntos estamos a empreender na devoção a Cristo e no serviço à sua Igreja. Aos sacerdotes, aos religiosos e aos leigos dos Estados Unidos, exprimo mais uma vez a minha estima cordial e a minha gratidão, pedindo ao Espírito Santo que dê às vossas Igrejas locais uma nova efusão de vida e de energia para a missão ainda a ser realizada. Oro a fim de que se verifique uma constante e total renovação de unidade e de amor entre todos os católicos americanos, de reconciliação e de apoio recíproco na verdade da fé. Peço a Deus que abençoe os vossos esforços no diálogo ecuménico com outros cristãos e na cooperação inter-religiosa, tendo como base os inúmeros pontos de contacto fundamentais que compartilhamos com todos os crentes. A minha ardente oração é para que haja um novo espírito de bondade, harmonia e paz entre todos os habitantes dos Estados Unidos, de maneira que a vossa vida pública possa ser renovada de modo verdadeiro e honroso, e o vosso país possa levar avante o seu destino histórico entre os povos do mundo.

Ao confiar-vos, bem como os vossos Irmãos Bispos, à solicitude amorosa de Maria Imaculada, Padroeira celeste dos Estados Unidos da América, concedo de coração a minha Bênção Apostólica.

 

 

 

 



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