Index   Back Top Print

[ EN  - IT  - LA  - PT ]

CARTA ENCÍCLICA
FULGENS CORONA
(*)
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS, BISPOS
E DEMAIS ORDINÁRIOS LOCAIS
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA

INDICAÇÃO DO ANO MARIANO

 

1. A refulgente coroa de glória com que a puríssima fronte da virgem Mãe de Deus foi cingida por Deus mais nos parece resplandecer se recordarmos o dia em que, há cem anos, nosso predecessor de feliz memória, Pio IX, rodeado de um imponente cortejo de cardeais e de bispos, declarou, proclamou e definiu solenemente com infalível autoridade "que a doutrina que defende que a beatíssima virgem Maria foi preservada de toda a mancha do pecado original desde o primeiro instante da sua concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente e em atenção aos merecimentos de Jesus Cristo salvador do gênero humano, foi revelada por Deus e que, por isso, deve ser admitida com fé firme e constante por todos os fiéis".(1)

2. A Igreja universal que, de há tanto tempo, esperava esta decisão pontifícia, recebeu-a com a maior alegria; e, despertada desta forma, a devoção dos fiéis para com a virgem Mãe de Deus, que faz florescer no mais alto grau os costumes dos cristãos, fortaleceu-se; surgiram igualmente, com grande ardor, novos estudos em que apareceram na sua mais brilhante luz a dignidade e a santidade da Mãe de Deus.

3. Parece até que a mesma beatíssima virgem Maria quis confirmar de uma forma prodigiosa a determinação que o vigário do seu divino Filho tinha sancionado, com o aplauso da Igreja universal. Com efeito, não tinham ainda passado quatro anos, quando a virgem Mãe de Deus, com juvenil e inocente semblante, se apresentou, de vestido e manto cândidos e cingida com uma faixa azul, a uma inocente e simples menina, na gruta de Massabielle, próxima de uma povoação, nas faldas dos Pireneus; à inocente menina que insistentemente perguntava o seu nome, a celeste visão, levantando os olhos ao céu e com um suave sorriso, responde: "Eu sou a Imaculada Conceição".

4. Assim o compreenderam, como é natural, os fiéis que afluíram de todas as partes do mundo em piedosas peregrinações à gruta de Lourdes, reavivaram a sua fé, intensificaram a sua piedade e procuraram conformar sua vida com os preceitos cristãos. Ali alcançaram, muitas vezes, milagres que suscitaram a admiração de todos e confirmaram a religião católica como única aprovada por Deus.

5. Assim o compreenderam de forma peculiar os romanos pontífices, que enriqueceram com privilégios espirituais e com benefícios da sua benevolência o maravilhoso templo que a piedade do clero e do povo aí levantou poucos anos depois.

CAPÍTULO I 

6. Na verdade, naquela carta apostólica citada, com que o nosso predecessor decretou que este ponto da doutrina cristã devia ser firme e fielmente admitido por todos os féis, não fez outra coisa mais do que recolher diligentemente e consagrar, com a sua autoridade, a voz dos santos Padres e de toda a Igreja, a qual, desde a antiguidade, tinha como que sobrevoado o curso dos séculos sucessivos.

7. Em primeiro lugar, o fundamento desta doutrina encontra-se nas Sagradas Escrituras, na qual Deus criador de todas as coisas, depois da miserável queda de Adão, dirige à tentadora e corruptora serpente estas palavras que muitos santos Padres, Doutores da Igreja e autorizados intérpretes aplicam à virgem Mãe de Deus: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela..." (Gn 3, 15). Ora, se, por algum tempo, a bem-aventurada virgem Maria fosse privada da graça divina, como inquinada, na sua concepção, pela mancha hereditária do pecado, ao menos naquele momento, embora brevíssimo, não haveria entre ela e a serpente aquela perpétua inimizade de que se fala, desde a mais antiga tradição até à solene definição da Imaculada Conceição, mas, ao contrário, haveria certa sujeição.

8. Além disso, como a santíssima Virgem é saudada com as palavras "cheia de graça" (Lc 1, 28) – isto é kekaritoméne e "bendita entre todas as mulheres", claramente se manifesta com essas palavras, como aliás sempre a tradição católica entendeu, que, com essa singular e solene saudação, nunca até então ouvida, se quer significar que a Mãe de Deus foi a sede de todas as graças divinas, e ornada com todos os carismas do Espírito Santo, e, mais ainda, com o tesouro quase infinito e inexaurível abismo deles, de tal forma que nunca esteve sujeita à maldição. (2)

9. Os santos Padres, desde os primeiros anos da Igreja, claramente ensinaram esta doutrina, sem que nenhum a contradissesse, e afirmaram que a santíssima virgem Maria foi "lírio entre espinhos, terra absolutamente intacta, imaculada, sempre bendita, livre de todo contágio do pecado, lenho incorruptível, fonte sempre límpida, a única e a só filha da vida e não da morte, o germe não da ira mas da graça, completamente ilibada, santa, alheia a toda espécie de pecado, mais bela que a beleza, mais santa que a santidade, a única santa, superior a todos, com exceção de Deus, por natureza mais bela, mais formosa, mais santa que os próprios querubins, serafins e todo o exército dos anjos".(3)

10. Considerados diligentemente, como convém, esses louvores da bem-aventurada virgem Maria, quem ousará duvidar de que aquela que é mais pura que os anjos, que sempre permaneceu pura(4), estivesse sujeita a qualquer espécie de pecado, em qualquer momento, por mínimo que fosse? Com toda a razão s. Efrém se dirige ao divino Filho dela com estas palavras: "Na realidade, só vós e vossa Mãe é que sois completamente belos. Não há em vós, Senhor, e nem em vossa Mãe mancha alguma".(5) Com essas palavras, claramente se vê que entre todos os santos e santas, somente de uma se pode dizer, quando se fala de qualquer mancha do pecado, que nem sequer é possível a questão, e que este singularíssimo privilégio, a mais ninguém concedido, o alcançou do Senhor, porque foi elevada à dignidade de Mãe de Deus. Com efeito, esta excelsa missão que foi solenemente reconhecida e sancionada no Concílio de Éfeso contra a heresia de Nestório,(6) e acima da qual nenhuma outra maior parece existir, exige a graça divina em toda a sua plenitude e a alma libertada de qualquer mancha e requer, depois de Cristo, a mais alta dignidade e santidade. Na verdade, dessa sublime missão da Mãe de Deus, nascem, como duma misteriosa e limpidíssima fonte, todos os privilégios e graças que adornam, duma forma admirável e numa abundância extraordinária, a sua alma e a sua vida. Por isso, com razão declara s. Tomás de Aquino: "A bem-aventurada virgem Maria, pelo fato de ser Mãe de Deus, tem do bem infinito, que é Deus, certa dignidade infinita".(7) E um ilustre escritor desenvolve e explica esse mesmo pensamento, com estas palavras: "A bem-aventurada virgem Maria... é Mãe de Deus: por isso, é puríssima e santíssima, de tal maneira que, depois de Deus, não podemos conceber outra pureza maior".(8)

11. Mas se considerarmos atentamente as coisas e principalmente se atendermos ao profundíssimo e suavíssimo amor com que Deus, sem dúvida, amou e continua a amar a Mãe de seu unigênito Filho, como poderemos pensar sequer que ela esteve, ainda que por brevíssimo tempo, sujeita ao pecado e privada da graça? Na realidade, Deus podia conceder-lhe, em atenção aos merecimentos do Redentor, esse singular privilégio; por isso, nem sequer podemos pensar que não o tenha feito. Convinha, na verdade, que a Mãe do Redentor fosse o mais digna possível dele. Ora, se Maria fosse manchada com o pecado original, ainda que só no primeiro instante da sua concepção, não seria digna, porque estaria sujeita ao triste domínio do demônio.

12. Nem se diga que por esse motivo se diminui a redenção de Cristo, porque não se estenderia a toda a descendência de Adão, e que, por isso, algo seria tirado ao múnus e à dignidade do Divino Redentor. Se considerarmos profunda e diligentemente essa questão, na realidade, facilmente verificamos que Cristo Senhor nosso, de fato, remiu, e de forma perfeitíssima, sua Mãe, pois que Deus a preservou de toda a mancha hereditária do pecado, no primeiro momento da sua conceição, em atenção aos merecimentos de Cristo. Por isso, a infinita dignidade de Jesus Cristo e o múnus da sua redenção universal não diminuem nem se enfraquecem com essa questão doutrinal, mas, ao contrário, muito se elevam.

13. É, portanto, injusta a crítica e a censura que, por esse motivo, fazem não poucos acatólicos e protestantes à nossa devoção para com a virgem Mãe de Deus, como se tirássemos alguma coisa do culto devido somente a Deus e a Jesus Cristo; muito ao contrário, tudo que for de honra e veneração a nossa Mãe celeste, sem dúvida que redunda em glória para o seu divino Filho, não só porque dele vêm, como de primeira fonte, todas as graças e dons, mesmo excelsos, mas ainda porque "os pais são a glória dos filhos" (Pr 17, 6).

14. Por isso mesmo, desde os mais remotos tempos da Igreja, esse ponto de doutrina mais se esclareceu e cada vez mais se confirmou, quer entre os pastores sagrados, quer na convicção e no espírito dos féis. Atestam-no, como dissemos, os escritos dos santos Padres, os concílios e os atos dos romanos pontífices; testemunham-no, enfim, as antigas liturgias, cujos livros, desde os mais antigos, consideram essa festa como legada pelos nossos antepassados. 

15. Finalmente, também em todas as comunidades dos cristãos orientais, que de há longos anos se separaram da unidade da Igreja católica, nunca faltaram nem faltam aqueles que, embora eivados de preconceitos e opiniões adversas, acolheram esta doutrina e todos os anos celebram a festa da Virgem imaculada. Certamente, nada disso se daria se não tivessem recebido esta verdade dos tempos mais antigos, isto é, antes de se terem separado do único redil.

16. Ao completar-se, pois, um século desde que o pontífice máximo, Pio IX, de imortal memória, definiu solenemente esse singular privilégio da virgem Mãe de Deus, apraz-nos resumir e concluir toda a questão com estas palavras do mesmo pontífice, quando afirmou que esta doutrina, segundo o juízo dos Padres, foi consignada na Sagrada Escritura, por eles mesmos transmitida, expressa por tantos e tão graves testemunhos e celebrada por tantos monumentos célebres da veneranda antigüidade e finalmente proposta pelo mais alto e autorizado juízo da Igreja, (9) de forma que nada é mais doce e mais querido para os sagrados pastores e para os féis do "que honrar, venerar, invocar e pregar, por toda a parte, com o mais fervoroso ardor, a virgem Mãe de Deus concebida sem pecado original". (10)

17. Parece-nos, portanto, que essa preciosíssima pérola, com que foi enriquecido, há cem anos, o sagrado diadema da bem-aventurada virgem Maria, hoje brilha com luz mais esplendorosa, tendo-nos cabido a feliz sorte, por disposição da divina Providência, de definir, no ano jubilar de 1950 de que conservamos gratíssima recordação na alma, que a Mãe de Deus foi elevada ao céu em corpo e alma; dessa forma pudemos corresponder aos votos do povo cristão formulados já, de forma particular, quando foi definida solenemente a imaculada conceição da Virgem. Já então, na verdade, como escrevemos na Constituição Apostólica Munificentissimus Deus; os corações dos fiéis se sentiram animados da mais viva esperança de que o dogma da assunção corpórea da virgem Maria ao céu seria, o mais depressa possível, definido pelo supremo magistério eclesiástico.(11)

18. Parece, pois, que todos os fiéis podem levantar o pensamento e o coração mais profunda e eficazmente ao próprio mistério da imaculada conceição da Virgem. Na verdade, pela estreitíssima relação existente entre esses dois mistérios, depois de promulgada solenemente e posta em toda a sua luz a assunção da Virgem ao céu – o que constitui como que a coroa e o complemento do outro privilégio mariano – manifestou-se, com maior clareza e esplendor, a sabedoria, a harmonia daquele plano divino com que Deus quis que a bem-aventurada virgem Maria fosse preservada de toda a mancha original.

19. Por isso, devido a esses dois insignes privilégios concedidos a nossa Senhora, tanto o início da sua vida como o seu ocaso se iluminaram com brilhantíssima luz; à perfeita inocência da alma preservada de toda a mancha, corresponde, de forma admirável e maravilhosa, a mais perfeita glorificação do seu corpo virginal; e como esteve Maria junto com seu Filho unigênito na luta contra a serpente infernal, assim juntamente com ele participou do glorioso triunfo sobre o pecado e suas tristes conseqüências.

CAPÍTULO II

20. Entretanto, essa celebração secular não deve apenas fortalecer no ânimo de todos os fiéis a fé católica e a piedade ardente para com a virgem Mãe de Deus, mas também levar especialmente os costumes dos cristãos à imitação da Virgem. Como todas as mães experimentam profundos sentimentos quando descobrem que as feições do seu filho reproduzem alguma semelhança com as suas, assim Maria, nossa dulcíssima Mãe, não pode ter maior desejo, nem maior alegria do que ver reproduzidos nos pensamentos, nas palavras e nas obras daqueles que ela recebeu por filhos aos pés da cruz do seu Unigênito os traços e as virtudes de sua alma.

21. Mas para que a piedade não permaneça apenas uma palavra vã, nem se torne uma simples imagem falaz da religião, nem um sentimento fraco e caduco de um momento, antes seja sincera, verdadeira e eficaz, deve estimular-nos todos, segundo as condições de cada um, à conquista da virtude. É necessário que, antes de mais nada, a todos excite àquela inocência e integridade de costumes que foge e aborrece até a mais pequena mancha de pecado, já que comemoramos o mistério da santíssima Virgem, cuja concepção foi imaculada e isenta de toda a culpa original.

22. Parece-nos que a santíssima Virgem, a qual em todo o curso de sua vida, nunca se afastou em nada dos preceitos e dos exemplos de seu divino Filho – quer nas alegrias de que foi suavemente inundada, quer nas tribulações e nas dores mais atrozes que a constituíram rainha dos mártires -, parece-nos, repetimos, que a todos e a cada um de nós diga aquelas palavras que proferiu nas bodas de Caná, apontando Jesus Cristo aos servos do banquete; "Fazei tudo o que ele vos disser" (Jo 2,5). Parece que cabe a nós repetir a todos hoje essa mesma exortação num sentido ainda mais vasto, visto que é de absoluta evidência que a raiz de todos os males com que são atormentados os homens, com tanta aspereza e veemência angustiados os povos e as nações, provém do fato de que muitos "abandonaram a fonte de água viva e abriram cisternas para si, cisternas desconjuntadas, que não podem conter água" (Jr 2, 13) e abandonaram aquele que unicamente é o "caminho, a verdade e a vida" (Jo 14, 6). Se, portanto, se errou, é necessário voltar ao caminho reto; se as trevas dos erros perturbaram as mentes, devem ser, sem demora, dissipadas pela luz da verdade; se aquela morte, que é a verdadeira morte, se apoderou das almas, é necessário recuperar a vida com vivo e eficaz desejo; referimo-nos àquela vida celeste que não conhece ocaso porque tem sua origem em Cristo Jesus, com quem gozaremos nos céus a bem-aventurança eterna, se com ânimo confiante e fiel o seguirmos nesta terra de exílio.

23. Isso nos ensina e exorta a bem-aventurada virgem Maria, nossa dulcíssima Mãe, que nos ama com verdadeiro amor, sem dúvida, mais do que todas as mães terrestres. Como sabeis, veneráveis irmãos, os homens de hoje têm grande necessidade dessas exortações e convites para que voltem para Cristo e se conformem diligente e eficazmente com seus ensinamentos, quando tantos tentam desarraigar da sua alma a fé cristã, ora astuciosamente e com insídias ocultas, ora com uma propaganda e exaltação clara e obstinada de seus erros, propalados com tanta ostentação como se fossem glória do progresso e do esplendor deste século. Mas, rejeitada a nossa santa religião e negadas as determinações divinas que sancionam o bem e o mal, é sumamente evidente que para quase nada servem as leis e como que fica reduzida ao mínimo a autoridade pública; por via de conseqüência os homens, perdidas a esperança e a certeza dos bens imortais, com essas enganadoras doutrinas, procuram imoderadamente, por sua própria natureza, os bens terrenos, cobiçam avidamente os do próximo e, quando a ocasião e a possibilidade se lhes proporcionar, apoderar-se-ão deles, mesmo pela força. Daqui nascem os ódios, as invejas, as rivalidades e as discórdias entre os cidadãos; daqui vem a perturbação da vida pública e privada, e gradualmente se arruínam os fundamentos do Estado que dificilmente poderão ser mantidos e reforçados pela autoridade das leis civis e dos governantes; daqui, finalmente, deriva a depravação dos costumes pelos espetáculos licenciosos, pelos livros, jornais e crimes sem conta.

24. Reconhecemos que, nesse campo, a autoridade do Estado não pode fazer muito; na verdade, a sanação de todos esses males só pode encontrar-se noutra fonte mais elevada; é necessário recorrer a uma força mais forte que a humana, para que esclareça com a luz celeste os ânimos, penetre-os e os renove com a divina graça e os torne melhores com o seu auxílio.

25. Só então poderemos esperar que volte a florescer, por toda parte, a vida cristã; que os verdadeiros princípios sobre os quais se funda a sociedade se consolidem o mais possível; que reine entre as várias classes sociais uma mútua, reta e sincera valorização das coisas, juntamente com a justiça e a caridade; que desapareçam os ódios, cujos germes dão origem a novas misérias e muitas vezes impelem os ânimos exacerbados ao derramamento de sangue; que, finalmente, atenuados e aplacados os contrastes existentes entre as várias classes da sociedade, se harmonizem com imparcialidade os justos direitos de ambas as partes e possam coexistir e conformar-se com o mútuo consentimento e o devido respeito, para vantagem comum.

26. Sem dúvida, só a lei cristã, para cujo cumprimento ativo e frutuoso nos chama a virgem Mãe de Deus, poderá realizar tudo isso, com firmeza e segurança, desde que se ponha em prática. Tendo na devida consideração essas coisas, veneráveis irmãos, convidamo-vos todos e cada um, com a presente carta encíclica, a que, segundo as vossas funções, exorteis o clero e o povo que vos foi confiado a celebrar o ano mariano, que desejamos seja festejado por toda a parte, a partir do próximo mês de dezembro até ao mesmo mês do ano que vem, por ocasião do primeiro centenário, no qual a virgem Maria Mãe de Deus refulgiu com uma nova pérola, entre o aplauso do povo cristão, quando, como dissemos, o nosso predecessor, de imortal memória, Pio IX, decretou e sancionou solenemente a Imaculada concepção dela. Confiamos plenamente que esta celebração mariana produzirá aqueles muito desejados e salutares frutos por que todos vivamente suspiramos.

27. Para mais fácil e eficazmente conseguir esse fim, desejamos que se promovam, em todas as dioceses, conferências e discursos apropriados para esclarecer mais as mentes sobre esse ponto da doutrina cristã, de forma que a fé do povo se intensifique e nele se acenda cada vez mais a devoção à virgem Mãe de Deus; assim todos sigam intensa e decididamente os exemplos da nossa Mãe celeste.

28. E porque em todas as cidades, vilas e aldeias onde floresce o cristianismo existe sempre uma capela ou, ao menos, um altar no qual resplandece, de modo particular, a imagem de nossa Senhora exposta à veneração do povo cristão, desejamos, veneráveis irmãos, que os fiéis para lá se dirijam com a maior freqüência e elevem, num só coração e numa só voz, orações públicas à nossa suavíssima Mãe.

29. Mas onde existir um templo particularmente dedicado à virgem Mãe de Deus – o que se dá em quase todas as dioceses – a ele acorram, em determinados dias do ano, piedosas multidões de peregrinos, com edificantes manifestações públicas da fé comum e do amor para com a Virgem santíssima. Sem dúvida, que isso se realizará principalmente na gruta de Lourdes, onde se venera a Virgem imaculada com tão fervorosa piedade.

30. Mas que esta cidade de Roma preceda a todas, pois que desde os primeiros tempos do cristianismo teve um particular culto à Mãe celeste e sua padroeira. Aqui existem muitas igrejas, como é de todos conhecido, nas quais nossa Senhora é apresentada à piedade dos romanos, mas entre todas, sem dúvida, sobressai a Basílica Liberiana, onde ainda refulge o mosaico do nosso predecessor, de feliz memória, Sixto III, insigne monumento da divina maternidade da virgem Maria, onde benignamente sorri a imagem da "Salvação do povo romano". Que ali acorram especialmente os cidadãos romanos a orar e todos, diante da sagrada imagem, levantem súplicas, pedindo sobretudo que Roma, centro do orbe católico, seja a mestra de todos na fé, na devoção e na santidade. A vós, sobretudo, filhos de Roma, dirigimos as palavras do nosso predecessor de santa memória, Leão Magno: "Na verdade, embora todas as igrejas espalhadas sobre a terra devam florescer em todas as virtudes, vós especialmente deveis exceder os outros povos no mérito da piedade, vós que, fundados sobre a própria base da rocha apostólica e remidos com todos os outros por nosso Senhor Jesus Cristo, fostes instruídos, de preferência aos outros, pelo bem-aventurado apóstolo Pedro".(12)

31. Muitas são as graças que, nas presentes circunstâncias, todos devem implorar da proteção da bem-aventurada Virgem, da sua intercessão e do seu poder mediador. Peçam, principalmente, que os próprios costumes, como dissemos, cada vez mais se conformem com os ensinamentos cristãos, auxiliados com a divina graça, pois que a fé sem obras é morta (Tg 2, 20.26), e ninguém pode fazer coisa alguma para o bem público, como é necessário, se primeiro não brilhar na virtude, como exemplo a todos os outros.

32. Peçam, com insistência, que a juventude generosa e pujante cresça sã e pura e não permita se contamine com o ar corrompido do século e murche nos vícios a ridente flor da sua idade; que sejam dirigidos por um guia seguro as inclinações desregradas e os seus impulsos ardentes, e, fugindo de todas as ciladas, não se deixem cair nas coisas prejudiciais e más, antes levantem os seus corações para o que é belo, santo, amável e excelso.

33. Peçam, em oração comum, que a idade viril e madura se distinga de todas pela honestidade e fortaleza cristãs; que o lar doméstico resplandeça com fidelidade imolada, floresça com os filhos educados reta e santamente e se fortaleça na concórdia e no mútuo auxílio.

34. Implorem, finalmente, que se alegre a velhice com os frutos de uma vida vivida na prática do bem, de forma que, em se aproximando o seu fim, não tenha nada a temer, não se sinta atormentada com os remorsos ou angústias da consciência nem tenha motivo algum de se envergonhar, mas, ao contrário, confie firmemente que há de receber, depressa, o prêmio de suas longas canseiras.

35. Peçam ainda, recorrendo à Mãe de Deus, pão para os famintos, justiça para os oprimidos, pátria para os refugiados e exilados, um teto hospitaleiro para os que não têm casa, a liberdade para aqueles que injustamente foram lançados no cárcere ou nos campos de concentração, o suspirado regresso à pátria daqueles que estão ainda prisioneiros, suspirando e gemendo, não obstante a guerra tenha terminado há tantos anos; a alegria da luz resplandecente para os que são cegos no corpo e na alma; e para aqueles que vivem separados pelo ódio, pela inveja e pela discórdia, que obtenham, por meio da oração, a caridade fraterna, a união dos ânimos e a tranqüilidade operosa, que é fundada na verdade, na justiça e em relações amistosas.

36. Desejamos, de modo especial, veneráveis irmãos, que, com as ardentes súplicas que serão elevadas a Deus, na próxima celebração do ano mariano, se peça intensamente, sob a proteção da Mãe do divino Redentor e nossa Mãe dulcíssima, que a Igreja católica possa finalmente gozar, por toda a parte, daquela liberdade de que sempre se serviu, como ensina a história, para vantagem dos povos, para alcançar concórdia dos cidadãos, das nações das gentes e nunca para sua ruína ou divisão de ânimos. 

37. Todos conhecem as tribulações em que vive a Igreja em alguns lugares, com que mentiras, calúnias e usurpações é atormentada; todos sabem como em algumas regiões os bispos são miseramente dispersos, encarcerados sem motivo, ou de tal forma dificultados que não podem exercer livremente, como convém, o seu ministério pastoral; todos sabem, finalmente, que naquelas regiões não é permitido ter escolas próprias, nem se pode, publicamente, por meio da imprensa, ensinar, defender, propagar a doutrina cristã e educar convenientemente a juventude, segundo seus ensinamentos. Aquelas exortações que, muitas vezes, sobre este ponto vos dirigimos, sempre que se nos ofereceu a ocasião, insistentemente vo-las repetimos agora, por meio desta carta encíclica, com esta confiança de que, neste ano mariano, sejam elevadas ardentes preces à poderosíssima virgem Mãe de Deus e nossa doce Mãe, para que sejam reconhecidos aberta e sinceramente por todos aqueles sagrados direitos que pertencem à Igreja e que são exigidos pelo respeito devido à liberdade e à civilização, com suma vantagem para cada um e incremento da comum concórdia.

38. Desejamos, que estas nossas palavras, ditadas por um profundo sentimento de caridade, cheguem principalmente àqueles que, obrigados ao silêncio e rodeados de toda espécie de insídias, vêem, com a alma cheia de dor, sua comunidade cristã aflita, perturbada e privada de todo o auxílio humano. Que também estes diletíssimos irmãos filhos nossos, em estreitíssima união conosco e com os outros fiéis, interponham junto do Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação (cf. 2 Cor 1, 3) o poderosíssimo patrocínio da virgem Mãe de Deus e Mãe nossa e lhe peçam o celeste auxílio e as divinas consolações. Perseverando, com invencível ânimo, na fé dos antepassados, façam próprias, nestas graves circunstâncias, as seguintes palavras do Doutor Melífluo, como distintivo da fortaleza cristã: "Permaneceremos na fé e combateremos até à morte, se for necessário, pela (Igreja) nossa mãe, com as armas que nos são permitidas: não com escudos e espadas, mas com a oração e as lágrimas a Deus".(13)

39. Além disso, convidamos também aqueles que estão separados de nós pelo antigo cisma e que, de resto, amamos com ânimo paterno, a unirem-se a estas orações comuns e a estas súplicas, porquanto bem sabemos que também eles têm em suma veneração a grande Mãe de Jesus Cristo e celebram a sua conceição imaculada. Que a mesma bem-aventurada virgem Maria olhe para todos aqueles cristãos unidos ao menos pelos vínculos da caridade, e se voltem para ela os olhos suplicantes, os ânimos, as orações, impetrando aquela luz que ilumina as mentes com brilho sobrenatural e pedindo aquela unidade, com a qual se faça, afinal, um só rebanho sob um só Pastor (cf. Jo 10, 16).

40. Que a estas preces comuns se juntem depois as piedosas obras de penitência; o amor da oração, de fato, faz que o "animo seja sustentado e se prepare para as coisas árduas e se levante para as divinas; a penitência faz-nos alcançar o domínio de nós mesmos, especialmente sobre o corpo que, por causa do pecado original, é fortemente rebelde à razão e à lei evangélica. É evidente que essas virtudes estão estreitamente unidas entre si, sustentando-se reciprocamente, conspirando para o mesmo fim: desapegar das coisas caducas o homem, nascido para o céu, e elevá-lo quase a uma celeste comunicação com Deus".(14)

41. E como ainda não brilhou entre os povos e nas almas uma paz sólida, sincera e tranqüila, esforcem-se todos os fiéis, orando piedosamente, por alcançá-la e consolidá-la plena e felizmente de forma que, como a bem-aventurada Virgem nos deu o Príncipe da paz (cf. Is 9, 6), com seu patrocínio e com sua tutela, una também entre si os homens em amigável concórdia; só então se poderá gozar da prosperidade serena que é possível obter no breve curso da vida, isto é, quando não estiverem separados por mútuas invejas, dilacerados miseramente por discórdias, nem obrigados violentamente por ameaças e falsos conselhos a lutarem uns contra os outros, mas, unidos fraternalmente, se dêem entre si o ósculo daquela paz que é "tranqüila liberdade"(15) e que, guiados pela justiça e auxiliados pela caridade, faz das diversas classes de cidadãos, dos vários povos e nações uma só família unida e concorde como convém.

42. Que o divino Redentor, com o auxílio e proteção de sua amorosíssima Mãe, queira, em mais ampla forma, levar a uma completa realização estes nossos ardentíssimos votos, aos quais corresponderão, como piedosamente confiamos, as preces, não só de todos os nossos filhos, mas também de todos aqueles que têm no coração os interesses da civilização cristã e o progresso da humanidade.

Finalmente, que a bênção que a todos e a cada um de vós, veneráveis irmãos, bem como ao vosso clero e aos vossos féis, damos, com toda a efusão da nossa alma, seja o penhor dos divinos favores e o testemunho do nosso fraterno afeto.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 8 de setembro, festa da natividade de Nossa Senhora, do ano de 1953. XV do nosso pontificado.

 

PIO PP. XII

 


Notas

(*) Pio PP XII, Carta enc. Fulgens corona anunciando a celebração do Ano Mariano comemorativo do primeiro centenário da definição do dogma da Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria.

(1) Bula dogm. Ineffabilis Deus (8 de dezembro de 1854).

(2) Bula Ineffabilis Deus.

(3) Ibid., passim.

(4) Cf. ibid.

(5) Carmina nisibena, ed. Bickell,123.

(6) Cf. Pio XI, enc. Lux veritatis: AAS 23(1931), p. 493ss.

(7) Cf. Summa Theol., I, q. 25, a 6 ad 4. 

(8) Com. a Lapide, in Matth., I,16.

(9) Bula Ineffabilis Deus.

(10) Ibidem.

(11) AAS, 42 (1950), p. 754.

(12) Serm, III, 14; Migne, PL 54,147-148.

(13) S. Bernardo, Epist. 221, 3; Migne, PL 182, 36,387.

(14) Leão XIII, Enc. Octobri mense (dia 22 de setembro, a.1891); Acta Leonis XIII, XI, p. 312.

(15) Cícero, Phil., II, 44.

 



Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana