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 Pontifical Council for the Pastoral Care of Migrants and Itinerant People

People on the Move - Supp. N° 93,  December 2003, pp. 299-305

Portugal

Rev. Cón. Filipe Marques de Figueiredo

Director Nacional

1. Realidade da etnia cigana em Portugal

Os ciganos estão em Portugal desde o Séc. XV e são cidadãos portugueses, pelo menos, desde a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional que eliminaram as desigualdades em função, da etnia ereconheceram a cidadania portuguesa aos nascidos em território português.

Actualmente existem cerca de 40 000 cidadãos portugueses susceptíveis de serem considerados como ciganos a que há que assegurar, tal como em relação aos restantes portugueses, condições de inserção harmoniosa na sociedade portuguesa.

A comunidade cigana portuguesa é afectada por graves problemas de integração social, económica, cultural e mesmo política, que tendem não só a reproduzir a posição de “excluídos” como a gerar um duplo efeito “desintegrador”. Por um lado; a falta de competências sócio-profissionais adquiridas, facto visível nos elevados níveis de analfabetismo, no recorrente insucesso escolar dos jovens ou na ausência de adaptação a perfis profissionais inseríveis no mercado regular de trabalho, contribuem para a situação de pobreza e miséria sofrida pela maioria dos ciganos; por outro lado a estes factores de ordem estrutural associa-se a discriminação social que faz desta comunidade, um grupo estigmatizado, votado a uma certa indiferença social ou até, em caso limite, à intolerância declarada e ofensiva, chegando a extremos que redundam na expulsão das localidades onde se instalaram.[1]

A escolarização é uma necessidade social relativamente recente para a população cigana portuguesa: daí os níveis acentuados e crescentes (até ao 2º ciclo) de divergência do abandono escolar desta população relativamente ao da população portuguesa total:[2]     

Abandono escolar

  População portuguesa total População cigana
1º ciclo 0.64% 1 %
2º ciclo                   0.32% 28%
3º ciclo 1.96% 24%

Cerca de 13% da população cigana portuguesa vive actualmente em condições de habitação muito precárias: em barracas. Tendo-se tornado sedentária, na sua esmagadora maioria (61% há mais de 20 anos), a população cigana portuguesa fê-lo em condições de extrema indignidade.[3]

2. Teologia do acolhimento

A teologia do acolhimento começa com a atitude de Abraão ao receber Yahvé no Carvalho de Mambré (Gn 18, 1-15): Abraão acolheu Yahvê que lhe revelou a promessa da qual descendeu Jesus Cristo (Rm 9, 4-9).

O Senhor nos dirá depois que do acolhimento ao irmão mais carenciado dependerá a nossa própria vida eterna no seu amor: "porque tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, era peregrino e recolheste-me. ... Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes" (Mt 25, 35-40).

João Paulo II comenta: "nesta pagina ... a Igreja mede a sua fidelidade de esposa de Cristo... Ninguém pode ser excluído do nosso amor ... ; há na pessoa dos pobres uma especial presença de Cristo, obrigando a Igreja a uma opção preferencial por eles.

Através desta opção, testemunha-se o estilo do amor de Deus, a sua providência, a sua misericórdia, e de algum modo continua-se a semear na história aqueles gérmenes do Reino de Deus que foram visíveis na vida terrena de Jesus, ao acolher a quantos recorriam a Ele para todas as necessidades espirituais e materiais. Por isso, devemos procurar que os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como "em sua casa". Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino? Sem esta forma de evangelização, realizada através da caridade e do testemunho da pobreza cristã, o anúncio do Evangelho - e este anúncio é a primeira caridade - corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta. A caridade das obras garante uma força inequivocável à caridade das palavras."[4]

A teologia do acolhimento radica na missão universal da Igreja que foi prefigurada já em Isaías: "Pois és precioso aos meus olhos, és honrado e eu te amo - . Não temas porque estou contigo, do Oriente trarei a tua raça e do Ocidente te congregarei. ... Reconduz os meus filhos de longe e as minhas filhas dos confins da terra, todos os que são chamados pelo meu nome, os que criei para minha glória, os que formei e fiz" (Is 43, 4-7).

A autoridade política não tem poder para decidir sobre a cultura: "a sua missão é encorajar em todos a vida cultural e protegê-la, incluindo a das minorias", diz a Gaudium et Spes.[5]

Uma maioria social não pode agir contra uma minoria, nem excluí-la, oprimi-la, explorá-la ou tentar eliminá-la, diz João Paulo II na Centesimus Annus.[6]

A coabitação de diferentes povos, culturas e religiões tem um carácter positivo. Se ela não é respeitada, daí surgem conflitos sociais e a exclusão dos mais frágeis, afirmou o Sínodo dos Bispos.[7]

Dirigindo-se aos ciganos, por ocasião da sua primeira peregrinação internacional a Roma, Paulo VI disse-lhes: “Vós estais no coração da Igreja, porque vós estais sós:ninguém está só na Igreja. ... Esperamos que este encontro excepcional vos ajudará a pensar na santa Igreja à qual vós pertenceis, a conhecê-la, apreciá-la e amá-la melhor; esperamos que vos ajudará a tornar‑vos mais conscientes de quem vós sois. ... Nós pensamos que deveria haver uma melhoria das vossas relações com a sociedade ...” (26.9.1965).

O Papa João Paulo II encoraja todos a acolher os ciganos como irmãos e irmãs: "Apesar do ensinamento claro do Evangelho ... muitas vezes acontece que os Ciganos se sentem rejeitados e desprezados. O mundo, marcado em grande parte pela avidez do lucro e pelo desprezo dos mais fracos, deve mudar a sua atitude e acolher os nossos irmãos ciganos, não mais apenas com tolerância mas num espírito de fraternidade" (9.11.1989).[8]

Em 4 de Maio de 1997, João Paulo II beatificou a primeira pessoa de etnia cigana: o espanhol Ceferino Giménez Malla (El Pelé). Em Dezembro de 2001, falando aos representantes da Pastoral dos Ciganos de todo o mundo, João Paulo II lamentou as injustiças de que os ciganos são, cada vez mais, vítimas, um pouco por todo o mundo.

3. Os ciganos na Igreja em Portugal

Das 20 Dioceses portuguesas, 6 (301/0) não têm Secretariado Diocesano da Pastoral dos Ciganos, faltando a nomeação de um sacerdote disponível, ou de um diácono permanente, religioso, religiosa, leigo ou leiga que dinamize a Pastoral dos Ciganos.

O acolhimento das pessoas de etnia cigana na Igreja Católica é uma questão que se reveste de alguma complexidade. O acolhimento de ciganos nas catequeses, na preparação para os sacramentos e noutras actividades da Igreja, implica por parte dos Párocos, catequistas e outros responsáveis paroquiais um conhecimento mínimo da cultura cigana, para, evangelicamente, aceitarem as diferenças culturais, combatendo-se assim no seio da Igreja, a exclusão da etnia cigana que infelizmente se verifica, com alguma freqüência, na sociedade portuguesa.

As Pastorais Nacional e Diocesanas poderão ajudar a este encurtamento das distâncias; porém, só a nível das Dioceses e das Paróquias poderão iniciar-se, eventualmente com o apoio de voluntários e de voluntárias com esse carisma - e os voluntários felizmente vão aparecendo com alguma freqüência -, os contactos que visem o acolhimento fraterno na Igreja. Entretanto esse acolhimento logo conduzirá à constatação de difíceis problemas de ordem social que afectam a vida dos ciganos, no âmbito da sociedade maioritária.

No entanto, a Igreja Católica, no seu todo e não apenas através das Pastorais especializadas, não pode alhear-se desta etnia que e uma das que mais sofrem de marginalização social e espiritual no nosso país.

A Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte (NMI) refere que a "paixão" da "nova evangelização" "não deixará de suscitar na Igreja uma nova missionariedade, que não poderá ser delegada a um grupo de "especialistas", mas deverá corresponsabilizar todos os membros do povo de Deus".[9]

Em 1972 a Conferência Episcopal Portuguesa criou a hoje designada Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos. Entretanto, a nível diocesano, foram criados Secretariados Diocesanos da Pastoral dos Ciganos, das Migrações ou da Mobilidade Humana. A nível nacional, recentemente, salientam-se o Projecto Dignidade que efectuou o levantamento da população de etnia cigana a viver em habitação precária, em Portugal, pressionando as Autoridades no sentido do seu realojamento, e os Projectos Palavra que, através da formação, têm como objectivo o processo de evangelização dos ciganos pelos próprios ciganos. A nível diocesano, os respectivos Secretariados têm desencadeado inúmeras acções de apoio às populações ciganas e a sua evangelização, salientando-se a actividade do Secretariado Diocesano de Lisboa que conta actualmente com 7 Centros de Acolhimento para as populações ciganas e de trabalho conjunto com crianças ciganas e não ciganas moradoras nos bairros em que os Centros se situam.

As relações dos ciganos com as paróquias são sobretudo pedidos de assistência, algumas Missas pelos falecidos, baptismos e funerais. Em geral as paróquias não procuram os ciganos para os convidarem a vir à catequese. Tem havido algumas peregrinações de ciganos portugueses a santuários, sobretudo a Fátima.

A maioria dos ciganos que praticam a religião freqüentam “o culto” na Igreja Portuguesa Cigana de Filadélfia (Evangélica). Esta Igreja pratica, geralmente, um forte proselitismo, ao contrário de outras confissões protestantes a que alguns ciganos pertencem. A Igreja Católica está ausente de uma evangelização sistemática e generalizada dos ciganos.

Encontros entre sacerdotes, religiosos e leigos, ciganos e não ciganos são preconizados na resposta ao inquérito feito pelo Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, às Obras Nacionais da Pastoral dos Ciganos em 2001.[10] Como formação dos agentes da Pastoral dos Ciganos tem havido predominantemente o Encontro Nacional Anual. É necessário que a evangelização dos ciganos seja sustentada e voluntarista: acolhendo-os, condenando publicamente os actos de racismo, como alguns membros da Igreja já têm vindo a fazer, indo ao seu encontro e assim encurtando distâncias, vivendo a fraternidade com os ciganos e anunciando-lhes a Palavra de Deus.

Os ciganos devem ser compreendidos na especificidade da sua cultura e ajudados tanto nas situações difíceis como na evolução dos aspectos menos cristãos dos seus costumes. A Igreja não deve confinar a Pastoral dos Ciganos apenas às estruturas assim denominadas: deverá empenhar-se, como um todo, em escutar e amar os seus irmãos mais desprotegidos. Para amar, é essencial conhecer, tornar-se próximo, dar-se e dispor-se a aprender, a receber.

A NMI aconselha que o anúncio da Palavra se faça “com atenção pelas diferentes culturas em que deve ser semeada a mensagem cristã, para que os valores específicos de cada povo não sejam renegados, mas purificados e levados à sua plenitude. ... O cristianismo no terceiro milénio ... assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar.” 

5. Preocupações sociais e pastorais

Na sociedade portuguesa em geral, e na Igreja em particular importa empreender uma acção estratégica concertada a vários níveis de intervenção para ultrapassar o actual panorama de exclusão de grande parte da etnia cigana, intervindo especificamente junto deste grupo, por forma a prepará-lo para novas perspectivas de integração social, económica, cultural e espiritual, com respeito pela sua identidade própria. 

Como metodologia para eliminar as situações de exclusão social dos ciganos deverá tomar-se como ponto de partida o diálogo com as comunidades ciganas, criando “espaços” para o efeito. O Governo, as Autarquias, e as colectividades locais deverão ONPC 7 empreender medidas concretas nas seguintes áreas: conhecimento da realidade das comunidades ciganas, escolarização, formação profissional e inserção sócio-profissional designadamente de mediadores socioculturais, habitação, pedagogia do exercício dos direitos e deveres como Cidadãos. 

No momento político e económico que se vive em Portugal, deverá evitar-se que o déficit orçamental do Estado se repercuta nos mais desfavorecidos, nos que menos voz têm, entre os quais se encontram muitas famílias ciganas verdadeiramente carenciadas.

No âmbito da escolarização, deverá ser fomentada a inclusão e o acompanhamento personalizado das crianças ciganas nas escolas, sempre que possível com o apoio de mediadores socioculturais.

Deverá ser promovida a formação na cultura cigana para professores, assistentes sociais, técnicos de saúde e outros que interagem com a comunidade cigana.

Deverão ser desenvolvidas estratégias que tendam a ultrapassar comportamentos contrários às boas práticas no convívio entre a minoria étnica cigana e a sociedade maioritária.

A comunicação social deverá aplicar critérios de equidade no tratamento das notícias relativas aos membros das minorias, nomeadamente às pessoas de etnia cigana.

Os membros da etnia cigana têm, tradicionalmente, apetência para o comércio, possuindo longa experiência nesta área e nela se ocupando. Verifica-se que a dificultação sistemática do comércio em feiras, mercados ou através da venda ambulante, pode favorecer o desenvolvimento de comércios e de tráficos ilícitos. Sobretudo em meios urbanos, a venda ambulante é freqüentemente alvo de repressão por parte da polícia.(I) O Governo e as Autarquias deverão elaborar políticas conducentes à solução deste problema, com a atribuição ou renovação de licenças de vendedor ambulante, deverá incentivar-se a formação comercial e fiscal dos seus titulares.

O Governo e as Autarquias, tendo em conta as dificuldades económicas e de ordem discriminatória que a etnia cigana tem para comprar ou alugar casa, deverão promover o realojamento dos ciganos que vivem em habitações indignas, tendo em conta as suas características culturais, por forma a não os acantonar em guetos. Por outro lado, nos realojamentos deverá evitar-se a má construção e os acabamentos de má qualidade; as casas devolutas, em bairros de habitação social, deverão ser atribuídas às famílias que carecem de realojamento.[11]

Na formação que se ministra nos seminários, deverá ser promovida a informação sobre as minorias étnicas e a formação sobre as suas características culturais. Os párocos deverão ser sensibilizados para a etnia cigana e para a integração de ciganos nas estruturas pastorais. Numa linha de inculturação, deverá ir-se ao encontro dos nossos irmãos ciganos, acolhendo-los e sabendo cativá-los por forma a ajudá-los a serem, eles próprios, os agentes da sua promoção e evangelização. Há que convidá-los a participar na vida das Paróquias, desenvolvendo iniciativas como a dos Projectos PALAVRA ou outras, no sentido de os incentivar a tornarem-se membros activos da Igreja. As catequeses deverão ser estruturadas tendo em conta a inclusão da população cigana; para isso deverá proporcionar-se aos catequistas formação na cultura cigana.

Pretende-se que a Igreja e através dela, a sociedade portuguesa, estejam, assim, não só a olhar para Jesus Cristo e a fazer o que Ele nos ensinou (Mt 25, 31-46) mas também a enriquecer-se cultural - e humanamente, através da aceitação da multiculturalidade de Portugal.[12]
 
[1] Relatório “Igualdade e Inserção dos Ciganos”, Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas, Nov. 1998, págs. 7, 16-17, 43-54.
[2] Diferença entre matriculados no início e no final do ano lectivo de 1997/98, último ano em que existem dados publicados. Estudo da ONPC baseado em dados Entreculturas publicados em "Um olhar (de um Cigano) cúmplice" por Carlos Jorge dos Santos Sousa em “Que sorte, Ciganos na nossa escola”, Centre de recherches tsiganes, Secretariado Entreculturas, 2001, pág. 46.
[3] Projecto DIGNIDADE - Relatório, Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos, Dez. 2000
[4] Carta Apostólica NOVO MLLENNIO INEUNTE (NMI), Jan. 2001, nºs 49-50. 
[5] n° 59
[6] 1991, nº 44.
[7] Sínodo dos Bispos - Europa (1999), Instrumentum Laboris, nº 11.
[8] A Solidariedade da Igreja com os Migrantes e Itinerantes, Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Jubileu para os Migrantes e Itinerantes, Roma, 1-3 de Junho, 2000, págs. 71-74.
[9] NMI, nº 40.
[10] A Caravana, nº 21, pág. 2.
[11] Conclusões do Encontro Nacional da Pastoral dos Ciganos de 2000, A Caravana, nº 19, pág. 3.
[12] A Caravana, nº 20, págs. 1-2.
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