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CONFERÊNCIA DE APRESENTAÇÃO
DA EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
"SACRAMENTUM CARITATIS"
DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

Sala de Imprensa da Santa Sé
Terça-feira, 13 de Março de 2007

 

 

 

INTERVENÇÃO DO CARDEAL ANGELO SCOLA

I. Introdução

1. No espaço do amor

Não é ocasional que, entre todas as denominações atribuídas ao longo dos séculos à Eucaristia, o Santo Padre tenha escolhido como título do presente documento uma das expressões com que São Tomás de Aquino definiu o Mistério eucarístico: Sacramentum Caritatis. Para o Aquinate, de facto, o memorial do dom que Cristo faz de Si no Seu corpo e no Seu sangue é sacramento supremo do amor divino. Brilha assim na Exortação Apostólica o profundo magistério da Deus caritas est. A insistência do Santo Padre, nestes dois anos de pontificado, sobre a verdade do amor diz com clareza que estamos perante um dos temas cruciais sobre o qual se joga o futuro da Igreja e da humanidade. Mesmo se o Papa o não tivesse afirmado explicitamente - "pretendo colocar esta Exortação na linha da minha primeira Carta Encíclica - a Deus caritas est" (n. 5) - teriam sido suficientes as frequentes referências à Encíclica para o confirmar (cf. nn. 5, 9, 11, 82, 88, 89).

O amor eucarístico de Jesus continua a surpreender. Surpreendeu os doze enquanto Ele se inclinava para lavar os seus pés, amando-os "até ao fim"; admirou os discípulos de Emaús ao partir do pão. É o amor encarnado de Deus, que por sua natureza surpreende sempre. Aquela "estupefacção eucarística" da qual falou o servo de Deus João Paulo II com eficaz intensidade, é proposto como a via-mestra, acessível aos homens e às mulheres do nosso tempo, para fazer a experiência do amor.

2. Fruto do trabalho sinodal

Com a Exortação Apostólica pós-sinodal de Sua Santidade Bento XVI sobre a Eucaristia como fonte e ápice da vida e da missão da Igreja, Sacramentum Caritatis, o longo e articulado itinerário da XI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos encontra o seu fruto mais maduro (cf. nn. 3-4). Como se sabe, as exortações apostólicas pós-sinodais configuram, dentro do magistério pontifício, um específico "género literário". O Sumo Pontífice nelas recolhe, confirma e aprofunda autorizadamente quanto foi comunicado, debatido e aprovado durante o percurso sinodal, desde a proclamação da Assembleia até ao final dos trabalhos. No texto da Sacramentum Caritatis sentem-se assim ressoar, de modo implícito ou explícito, os vários documentos que acompanharam os trabalhos sinodais: dos Lineamenta ao Instrumentum Laboris, das duas Relationes, ante et post Disceptationem, até às 50 Propositionis elaboradas pelos circuli minores e aprovadas na plenária. É também reconhecível o eco das intervenções livres na sala - queridos pela primeira vez por Bento XVI - que, além dos contributos doutrinais, ofereceram com frequência testemunhos comovedores de várias comunidades e dos seus pastores. Os cristãos, por vezes também com o risco da vida, difundem a caridade amorosa de Cristo que celebram no mistério.

3. Novos aprofundamentos

Se por um lado a Exortação Apostólica constitui o fruto maduro de um caminho percorrido, por outro estabelece explicitamente o objectivo de abrir caminhos para ulteriores aprofundamentos. De facto, tem a intenção de "explicitar algumas linhas fundamentais de empenho tendentes a despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico" (n. 5). Neste sentido será dado um contributo precioso também pela publicação do Compêndio eucarístico proposto pelos Padres sinodais (cf. n. 92).

II. Um acto de "receptio" do ensinamento conciliar

1. Uma unidade articulada

A leitura e o estudo da Exortação é facilitada pela sua estrutura tanto articulada quanto firmemente unitária. Ela baseia-se no nexo inseparável de três aspectos: mistério eucarístico, acção litúrgica e novo culto espiritual. Trata-se do próprio fundamento de todo o ensinamento que o Santo Padre quis propor na Exortação. De facto, ele afirma: "neste documento desejo sobretudo recomendar, acolhendo o voto dos padres sinodais, que o povo cristão aprofunde a relação entre o mistério eucarístico, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento da caridade" (n. 5).

Desta forma, a Exortação apresenta-se estruturada em três partes, aprofundando cada uma delas uma das três dimensões da Eucaristia superando qualquer justaposição de doutrina, prática litúrgica e vida cristã. As três partes do texto Eucaristia, mistério acreditado, Eucaristia, mistério celebrado e Eucaristia, mistério vivido estão a tal ponto ligadas que os seus conteúdos se iluminam reciprocamente. De resto, um significativo benefício do trabalho sinodal é precisamente a superação de certos dualismos por exemplo entre fé eucarística e rito, entre celebração e adoração, entre doutrina e pastoral por vezes ainda presentes na vida da comunidade eclesial e na reflexão teológica.

E isto devido à inovativa afirmação da centralidade da acção litúrgica na vida da Igreja. De facto, ela é o centro de todo o texto. Precisamente no início da Segunda Parte do documento, Bento XVI, recordando o axioma lex orandi lex credendi, afirma que "é necessário viver a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de que "a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está orignariamente em relação com a acção litúrgica da Igreja": neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a acção litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé" (n. 34).

O ensinamento do Santo Padre ilustra com clareza como a acção litúrgica (mistério celebrado) seja aquela acção específica que torna possível a conformação da vida cristã (mistério vivido, novo culto) por parte da fé (mistério acreditado). No rito eucarístico (cf. nn. 3, 6, 38, 40), lugar por excelência da traditio, o cristão acolhe (receptio) o dom do próprio Cristo para se tornar, em virtude da fé e da regeneração sacramental, membro do Seu corpo que é a Igreja.

2. "Ars celebrandi" e "actuosa participatio"

À luz deste benefício fundamental é preciso ler uma segunda novidade doutrinal de grande importância proposta pela Exortação. Trata-se de um ensinamento destinado a favorecer o aprofundamento ulterior da reforma litúrgica e a renovação da prática celebrativa nas comunidades cristãs.

Refiro-me à importância da ars celebrandi (arte de celebrar) para uma cada vez mais actuosa participatio (participação activa, plena e frutuosa). De facto, manifesta-se particularmente inovativa, em relação à celebração, a insistência do documento sobre a dependência da actuosa participatio da ars celebrandi. Bento XVI, retomando a propositio 2 aprovada pela Assembleia Sinodal, afirma que "a arte de celebrar é a melhor condição para a participação activa (actuosa participatio). Aquela resulta da fiel obediência às normas litúrgicas na sua integridade, pois é precisamente este modo de celebrar que, há dois mil anos, garante a vida de fé de todos os crentes, chamados a viver a celebração enquanto povo de Deus, sacerdócio real, nação santa (1 Pd 2, 4-5.9)" (n. 38).

3. Uma nova proposta criativa da "Sacrosanctum Concilium"

O ensinamento de Bento XVI sobre a unidade inseparável entre fé professada, acção litúrgica e novo culto, resulta ser um desenvolvimento do n. 7 da Constituição Sacrosanctum Concilium: "cada celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo sacerdote e do seu corpo, que é a Igreja, é acção sagrada por excelência, e nenhuma outra acção da Igreja é igual à sua eficácia com o mesmo título e o mesmo grau". A doutrina de Bento XVI a este propósito representa um paradigma de recepção dos textos conciliares. Estamos aqui na presença da hermenêutica da continuidade que o Santo Padre recordou explicitamente como necessária chave de compreensão e recepção do Vaticano II (cf. n. 3, nota 6).

III. Estrutura e conteúdos da Exortação

É agora oportuno fazer uma referência sintética aos conteúdos das três partes da Exortação, analizando alguns aspectos doutrinais e as preciosas indicações pastorais nela oferecidas. A este propósito é bom observar, com incidência, que a Sacramentum Caritatis, oferece pelo menos umas cinquenta propostas práticas de carácter litúrgico-pastoral. Precisamente devido à estrutura profundamente unitária da Exortação, apresentando os conteúdos individuais de cada uma das partes não se poderá prescindir de ressaltar os vínculos com argumentos presentes nas outras duas partes do documento.

1. Eucaristia mistério acreditado

O dom da Trindade

Na Primeira Parte (nn. 6-33) ilustra-se o mistério da Eucaristia a partir da sua origem trinitária que garante o seu permanente carácter de dom (cf. nn. 7-8): "Trata-se de um dom absolutamente gratuito, devido apenas às promessas de Deus cumpridas para além de toda e qualquer medida. A Igreja acolhe, celebra e adora este dom, com fiel obediência" (n. 8). Neste ensinamento encontra-se a raiz profunda de quanto a Exortação ensina sobre a adoração e a sua relação intrínseca com a celebração eucarística (cf. nn. 66-69): "a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja" (n. 66). Em seguida, são ilustradas a importância da prática (cf. n. 67) e as formas (cf. n. 68) da adoração eucarística.

Instituição cristológica e obra do Espírito

Particularmente imbuídas e alimentadas por uma forte inspiração ecuménica são as afirmações do Santo Padre sobre a instituição da Eucaristia em relação com a Ceia pascal hebraica (cf. n. 10), que reúnem a sua intervenção na sala de 6 de Outubro de 2005. Escreve Bento XVI: "Com a sua ordem "fazei isto em memória de Mim" (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25), pede-nos para corresponder ao seu dom e representá-lo sacramentalmente; com tais palavras, o Senhor manifesta, por assim dizer, a esperança de que a Igreja, nascida do seu sacrifício, acolha este dom desenvolvendo, sob a guia do Espírito Santo, a forma litúrgica do sacramento. De facto, o memorial do seu dom perfeito não consiste na simples repetição da Última Ceia, mas propriamente na Eucaristia, ou seja, na novidade radical do culto cristão" (n. 11). É um trecho decisivo para iluminar o novum radical realizado por Jesus na antiga ceia ritual. De facto, nós, no rito não repetimos o acto cronologicamente situado da Última Ceia de Jesus, mas celebramos a Eucaristia como novum radical do culto cristão. Ele chama-nos a entrar na Sua hora, o mistério de morte e ressurreição, princípio inovador de transformação "uma espécie de "fissão nuclear"" (n. 11) de toda a história e do inteiro cosmos. Nesta perspectiva, aliás, compreende-se a insistência do documento sobre a importância do domingo como dia no qual resplandece a plenitude do mistério pascal (cf. nn. 72-75).

O Santo Padre indica com vigor o critério da autêntica criatividade litúrgica quando, no n. 12, afirma: "Este grande mistério é celebrado nas formas litúrgicas que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, desenvolve no tempo e no espaço", isto é, em todasas culturas. A obra fecunda do Espírito Santo na mesma celebração eucarística (epiclesi) manifesta-se "de modo particular no que se refere à transubstanciação" (n. 13).

Eucaristia e Igreja

A raiz trinitária, cristológica e pneumatológica da celebração do Mistério eucarístico constitui a base para um aprofundamento da realidade teológica da Igreja em chave eucarística. A este propósito são vários os temas que o Papa propõe. Em primeiro lugar, o facto de que a Eucaristia é o princípio causal da Igreja: "nós confessamos, em cada celebração, o primado do dom de Cristo; o influxo causal da Eucaristia, que está na origem da Igreja, revela em última análise a precedência não só cronológica mas também ontológica do amor de Jesus relativamente ao nosso: será, por toda a eternidade, Aquele que nos ama primeiro" (n. 14). Bento XVI, ao afirmar a circularidade entre a Eucaristia que edifica a Igreja e a mesma Igreja que celebra a Eucaristia, realiza uma significativa opção magisterial pelo primado da causalidade eucarística sobre a eclesial (cf. n. 14). Também este aprofundamento evidencia um elemento de novidade doutrinal da Sacramentum Caritatis.

A origem eucarística da Igreja explica depois o seu ser communio (cf. n. 15) e garante a natureza sacramental da mesma Igreja (cf. n. 16).

A Eucaristia e o septenário sacramental

Do número 16 ao 29 a Exortação aprofunda a centralidade da Eucaristia no septenário sacramental. São páginas particularmente densas de indicações pastorais. Mencionamos as mais significativas.

Em primeiro lugar o reconhecimento do facto que a "santíssima Eucaristia leva à plenitude a iniciação cristã e coloca-se como centro e termo de toda a vida sacramental" (n. 17). Isto exige a necessidade de verificar a prática da ordem com a qual são conferidos os sacramentos da iniciação cristã (cf. n. 18). Em relação ao sacramento da reconciliação o Santo Padre insiste sobre a exigência de "uma decisiva recuperação da pedagogia da conversão que nasce da Eucaristia" (n. 21) através da confissão frequente, das atenções pastorais a nível paroquial (incluive o uso e a colocação dos confessionários) e diocesano (garantir a presença do penitenciário) e uma adequada pastoral das indulgências. A Unção dos enfermos e o santo Viático oferecerão aos fiéis a possibilidade de associar "o doente à oferta que Cristo fez de Si mesmo pela salvação de todos" (n. 22).

Eucaristia e Ordem

Particular atenção merece o vínculo entre a Eucaristia e os sacramentos da Ordem e do Matrimónio, quer devido ao rico intercâmbio que se teve na sala sinodal sobre estes temas quer pelo importante desenvolvimento da parte do Santo Padre. Estes dois sacramentos os sacramentos ao serviço da comunhão, como os chama o Catecismo da Igreja Católica encontram na Eucaristia a sua profunda razão de ser e o seu alimento mais poderoso.

O texto da Exortação detém-se em vários capítulos sobre o vínculo entre Eucaristia, sacramento da Ordem e espiritualidade sacerdotal (cf. nn. 23-26, 39, 53, 75 e 80). A este propósito é reafirmada a insubstituibilidade do sacerdócio ministerial para a celebração válida da Santa Missa, a qual nunca deve ser confundida com outras celebrações na expectativa de sacerdote presididas por ministros autorizados (cf. n. 75). Bento XVI, além disso, aceitando quanto foi proposto pela Assembleia Sinodal, reafirma e aprofunda a relação entre ordenação sacerdotal e celibato: "Embora respeitando a prática e tradição oriental diferente, é necessário reiterar o sentido profundo do celibato sacerdotal, justamente considerado uma riqueza inestimável (...) nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus. O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito" (n. 24). Deste modo o Papa Bento XVI, retomando o Magistério dos seus predecessores e em particular as razões cristológicas, eclesiológicas e escatológicas da encíclica de Paulo VI Sacerdotalis Caelibatus (1967), recusa qualquer justificação do celibato com bases meramente funcionais. Ao contrário, trata-se de uma opção "esponsal; é identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa" (n. 14). Desta forma é reconfirmada a prática latina da obrigatoriedade do celibato sacerdotal como riqueza inestimável para toda a communio eclesial.

A grande redução numérica do clero, que se verifica em alguns continentes, deve ser enfrentada antes de tudo com o testemunho da beleza da vida sacerdotal, mostrando aos jovens a profunda conveniência do seguimento radical de Cristo e, em segundo lugar, com uma formação vocacional esmerada, mediante uma clara proposta de vida espiritual e um rigoroso discernimento que verifique a autenticidade da motivação vocacional (cf. n. 25). O Santo Padre manifesta um sentido obrigado em geral aos presbíteros e, em particular, aos presbíteros fidei donum (cf. n. 26).

Eucaristia e Matrimónio

De modo específico a Exortação Apostólica faz suas e aprofunda as reflexões sinodais relativas à relação entre a divina Eucaristia e o estado matrimonial. Bento XVI recorda que a Eucaristia, sacramento esponsal por excelência, "corrobora de forma inexaurível a unidade e o amor indissolúveis de cada matrimónio cristão. Neste, em virtude do sacramento, o vínculo conjugal está intrinsecamente ligado com a união eucarística entre Cristo esposo e a Igreja esposa" (n. 27). Compreende-se o grande encorajamento e a proximidade da Igreja a todas as famílias fundadas no sacramento do matrimónio, protagonistas da educação cristã dos filhos (cf. n. 9), assim como a solicitude que as comunidades cristãs devem prodigalizar para uma cuidadosa formação dos nubentes (cf. n. 29).

A partir do carácter nupcial da Eucaristia, Bento XVI relê o tema da unicidade do matrimónio cristão, fazendo referência à questão da poligamia (cf. n. 28), e da indissolubilidade do vínculo conjugal (cf. n. 29). O texto contém importantes sugestões pastorais em relação àqueles baptizados que se encontram na dolorosa situação de ter celebrado o sacramento do matrimónio e depois divorciaram e contraíram novas núpcias. A Exortação depois de recordar que eles, "não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude" (n. 29), enumera nove modalidades de participação na vida de comunidade destes fiéis que, mesmo sem receber a Comunhão, podem adoptar um estilo de vida cristão. Além disso, o santo Padre recorda a necessidade, quando surgem dúvidas legítimas, de verificar em tempos razoáveis a eventual nulidade matrimonial, mediante cuidadosas investigações dos tribunais eclesiásticos que devem ser realizadas com espírito autenticamente pastoral e, portanto, cheio de amor pela verdade. Por fim Bento XVI completa também as sugestões dos Padres sinodais sobre a situação dos que, tendo celebrado validamente o matrimónio, devido a condições objectivas se encontram a não poder desfazer os novos vínculos contraídos, propondo-lhes que se comprometam, com adequado apoio pastoral, "por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã" (n. 29), isto é, transformando o seu vínculo em amizade fraterna. Além de fáceis preconceitos, esta sugestão configura uma proposta corajosa e realista. A experiência pastoral indica esta possibilidade como a mais apropriada para retomar o caminho de fé e o acesso aos sacramentos "com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial" (n. 29). Estes fiéis poderão reorganizar gradualmente no tempo os afectos segundo a perspectiva autêntica do amor, significado pelo sacramento do altar.

Eucaristia, penhor da vida eterna

A relevância antropológica do dom eucarístico é colocado em evidência pela Exortação de modo fascinante, quando ela analisa a dimensão escatológica da Eucaristia (cf. nn. 30-32). O Santíssimo Sacramento, de facto, é penhor da vida eterna porque "a nossa liberdade finita perder-se-ia, se não fosse possível experimentar, já desde agora, algo da consumação futura" (cf. n. 31).

2. Eucaristia, mistério celebrado

A Segunda Parte da Exortação (cf. nn. 34-69) ilustra o desenvolvimento da acção litúrgica na celebração indicando os elementos que merecem maior aprofundamento e oferecendo algumas sugestões pastorais de grande realce.

A bondade da renovação litúrgica

O ensinamento contido nesta segunda parte põe em evidência a bondade da reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II. Algumas dificuldades e abusos "não podem ofuscar a excelência e a validade da referida renovação litúrgica, que contém riquezas ainda não plenamente exploradas" (n. 3).

Nas fontes do rito eucarístico

Fiel ao princípio sobre o qual se funda todo o ensinamento proposto, a Exortação abre esta segunda parte reconhecendo que "a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si próprio no mistério pascal" (n. 34). Eis por que é necessário reconhecer com vigor que "a liturgia eucarística é essencialmente acção de Deus (actio Dei) que nos envolve em Jesus por meio do Espírito" e que, precisamente desta forma, "a Igreja celebra o sacrifício eucarístico obedecendo ao mandato de Cristo, a partir da experiência do Ressuscitado e da efusão do Espírito Santo" (n. 37). Assim, o acontecimento pascal na acção eucarística coincide com o próprio rito entendido como raiz do culto espiritual que imprime à assistência do cristão uma forma eucarística.

Isto dá origem a duas considerações de carácter ao mesmo tempo doutrinal e litúrgico que constituem um original contributo à Exortação.

A beleza litúrgica

Em primeiro lugar a ênfase da "beleza intrínseca da liturgia" (n. 36) que "não é mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor" (n. 35). Sobre este princípio encontram fundamento as indicações do Papa em relação à riqueza dos sinais litúrgicos (silêncio, paramentos, gestos: estar em pé, de joelhos... cf. n. 40), a arte colocada ao serviço da celebração (cf. n. 41) em relação a isto pode-se recordar também quanto foi dito a propósito da colocação do tabernáculo nas Igrejas (cf. n. 69) e ao canto litúrgico. Todos estes elementos são fundamentais para o desenvolvimento daquela catequese mistagógica que a Exortação, no seguimento de quanto foi afirmado pelos Padres sinodais, propôs como caminho "que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados" (n. 64).

A relação ars celebrandi - actuosa participatio: indicações práticas

A segunda consideração que constitui um notável contributo para o aprofundamento doutrinal-litúrgico da Eucaristia, refere-se à chamada ars celebrandi e à sua realação intrínseca com a actuosa participatio. Já nos detivemos sobre este tema tratado em particular no n. 38 da Sacramentum Caritatis. Pretendemos agora ressaltar algumas indicações da Exortação destinadas a favorecer esta participatio.

O Santo Padre afirma que "a participação activa desejada pelo Concílio deve ser entendida, em termos mais substanciais, a partir de uma maior consciência do mistério que é celebrado e da sua relação com a vida quotidiana" (n. 52). Como se vê a referência é relativa de novo à unidade desenvolvida entre Mistério eucarístico, acção litúrgica e novo culto espiritual. A unidade dos três factores é evidente quando o Santo Padre descreve as condições pessoais para uma actuosa participatio (cf. n. 55).

Além disso, a participação activa será favorecida por uma inculturação ordenada, que deve ser realizada "segundo as necessidades reais da Igreja, a qual vive e celebra o mesmo mistério de Cristo em situações culturais diferentes" (n. 54). As Conferências Episcopais, de acordo com a Santa Sé, terão a preocupação desta tarefa decisiva.

Sempre para favorecer uma participação activa mais adequada a Exortação detém-se sobre alguns aspectos pastorais particulares o uso dos meios de comunicação (cf. n. 57); a atenção aos enfermos e aos portadores de deficiência (cf. n. 58), aos encarcerados (cf. n. 59) e aos migrantes (cf. n. 60); as grandes celebrações (cf. n. 61) e as liturgias eucarísticas em pequenos grupos (cf. n. 63) e propõe um recurso mais normal à língua latina, sobretudo nas grandes celebrações internacionais, sem descuidar a importância do canto gregoriano (cf. n. 62). Além disso, não faltam indicações claras em relação à participação nas celebrações eucarísticas por parte dos cristãos não católicos (cf. n. 56) e também de pessoas pertencentes a outras religiões ou não crentes (cf. n. 50).

Sobre quanto esta actuosa participatio se exprima sobretudo na adoração (cf. nn. 66-69), e sobre como "a ars celebrandi deve favorecer o sentido do sagrado e a utilização das formas exteriores que educam para tal sentido" (n. 40) já tivemos a ocasião de falar.

A estrutura da Celebração eucarística

A Segunda Parte da Exortação deseja oferecer também uma contribuição em relação à estrutura da celebração eucarística (cf. nn. 43-51). Sobressai mais uma vez a importante coincidência entre acção litúrgica e rito. Só uma adequada prática ritual expressa aquela ars celebrandi que torna possível a actuosa participatio. Antes de tudo o Papa recorda a "unidade intrínseca do rito da santa Missa" (n. 44), que se deve expressar também no modo como a liturgia da Palavra é preparada. De facto, "a palavra que anunciamos e ouvimos é o Verbo feito carne (cf. Jo 1, 14) e possui uma referência intrínseca à pessoa de Cristo e à modalidade sacramental da sua permanência" (n. 45). Também a liturgia deve contribuir para mostrar a estreita relação da Palavra de Deus "com a celebração sacramental e com a vida da comunidade" (n. 46). Além disso, Bento XVI recorda o notável valor educativo para a vida da Igreja, sobretudo no actual momento histórico, da apresentação dos dons (cf. n. 47), da troca do sinal da paz (cf. n. 49) e do Ite missa est (cf. n. 51). O Santo Padre confia o estudo de possíveis modificações destes dois últimos pontos às Congregações competentes. Por fim Bento XVI ensina que "a espiritualidade eucarística e a reflexão teológica são iluminadas se se contempla a profunda unidade que existe, na anáfora, entre a invocação do Espírito Santo e a narração da instituição" (n. 48).

3. Eucaristia, mistério vivido

Na Terceira e última Parte a Exortação Apostólica (cf. nn. 70-93) mostra a capacidade do mistério acreditado e celebrado de constituir o horizonte último e definitivo da existência cristã: "o mistério "acreditado" e "celebrado" possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã" (n. 70).

A relevância antropológica da Eucaristia

A reflexão da Terceira Parte na realidade já foi antecipada desde o início da Exortação quando é recordada com vigor a importância antropológica da Eucaristia.

Com as características sóbrias mas incisivas que caracterizam o seu ensinamento, Bento XVI reafirma, desde as primeiras linhas da Exortação, que o dom da Eucaristia é para o homem, responde às expectativas do homem. Obviamente de cada homem em qualquer tempo, mas especificamente do homem nosso contemporâneo: "no sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem faminto de verdade e de liberdade" (n. 2). A escolha das palavras usadas coração mendigo, verdade e liberdade (cf. n. 2) não é casual. Totalmente fora de qualquer fuga espiritualista do mundo e das circunstâncias em que são chamados a viver, os cristãos encontram na celebração eucarística o Deus vivo e verdadeiro capaz de salvar a sua vida. E esta salvação tem como interlocutora a liberdade humana. De facto, o dom da Eucaristia interpela originariamente a liberdade do homem e constitui a sua antecipação da libertação definitiva. Recordando um trecho bastante sugestivo da antropologia de Santo Agostinho, o Santo Padre recorda que o homem está envolvido em total liberdade nas próprias acções só onde o próprio desejo constitutivo é posto em jogo: que pode a alma desejar mais ardentemente do que a verdade? Portanto, "exactamente porque Cristo Se fez alimento de Verdade para nós, a Igreja dirige-se ao homem convidando-o a acolher livremente o dom de Deus" (n. 2). Além disso, confiando aos seus discípulos o memorial do dom do Seu corpo e do Seu sangue, Jesus inclui a sua liberdade na Sua própria acção de graças ao Pai, inaugurando assim o novo culto a Deus, mediante o qual toda a existência é colocada sob o sinal da salvação realizada pelo sacrifício de Cristo.

Logiké latreía e forma eucarística da existência cristã

A relevância antropológica da Eucaristia sobressai com todo o seu vigor no culto novo característico do cristão. De grande profundidade e beleza são os números dedicados pela Exortação à logiké latreía,o culto espiritual (cf. nn. 70-71), e à forma eucarística da existência cristã(cf.n.76),umaexpressãoque aparece muitas vezes nesta Terceira Parte (cf. nn. 70, 71, 76, 77, 80, 82, 84). Nela o culto cristão resplandece em toda a sua força e novidade. Com base na acção eucarística todas as circunstâncias da existência se tornam por assim dizer "sacramentais". Já não há separação absoluta entre sagrado e profano.

O Mistério eucarístico representa o factor dinâmico que transfigura a existência. Regenerado pelo baptismo e incorporado eucaristicamente na Igreja o homem pode finalmente realizar-se plenamente, aprendendo a oferecer o "próprio corpo" isto é, a si mesmo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 12, 1-2). "Nada há de autenticamente humano pensamentos e afectos, palavras e obras que não encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada particular fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1 Cor 10, 31); e a vida do homem é a visão de Deus" (n. 71).

Pertença eclesial, evangelização das culturas e vida como vocação

"A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária" (n. 76).
Além disso, ela implica a possibilidade de uma nova cultura, isto é, daquela "renovação da mentalidade" (n. 77), capaz de "confrontar-se com qualquer realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente" (n. 78).

Esta relação com as culturas dos homens nasce do facto que "a Eucaristia, enquanto mistério a ser vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade cristã" (n. 79). Esta é também a razão pela qual o Santo Padre fala de "vida como vocação" (n. 79). Todos os fiéis cristãos são chamados a viver a própria vida como vocação sobre o fundamento sólido da Eucaristia: os fiéis leigos (cf. n. 79), os sacerdotes (cf. n. 80) e quantos foram chamados à vida consagrada (cf. n. 81). A existência de cada cristão é vista pela Sacramentum Caritatis como a resposta humilde e feliz à exaltante chamada do Pai.

Transformação moral e coerência eucarística

Portanto, cada fiel é chamado a uma profunda transformação da própria existência. Afirma o Santo Padre: "A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade" (n. 82).

Adquire uma importância particular nesta óptica a responsabilidade dos cristãos que desempenham funções públicas e políticas: "pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas. Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana. Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1 Cor 11, 27-29). Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado" (n. 83).

Testemunho como forma da missão

Na oferta da própria vida pode identificar-se a fonte permanente do testemunho. Viver o Mistério eucarístico significa também ser introduzido num conhecimento e numa nova consciência da própria responsabilidade. Eis por que Bento XVI aprofunda a relação entre Eucaristia e missão (cf. n. 84) em termos de testemunho: "A missão primeira e fundamental, que nos deriva dos santos mistérios celebrados, é dar testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor" (n. 85). O testemunho-missão que não tem outra intenção a não ser "levar Cristo" (n. 86) torna-se desta forma a modalidade com a qual o mistério da Eucaristia documenta a fecundidade da existência crente.

Bento XVI recorda-nos que "tornamo-nos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro que aparece e Se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-Se por assim dizer ao risco da liberdade do homem" (n. 85).

Emblema e arquétipo desta dinâmica é o testemunho do mártir, ápice do novo culto espiritual agradável a Deus. No mártir que doa a vida para testemunhar a verdade do amor como significado completo da própria vida, a Eucaristia mostra-se em todo o esplendor da sua verdade. Não falta a este propósito uma referência à liberdade de culto e à liberdade religiosa (cf. n. 87).

Implicações sociais e cosmológicas da forma eucarística da existência cristã

A forma eucarística da existência cristã refere-se a todos os fiéis baptizados, independentemente do estado de vida ao qual estão chamados. Eis por que a Exortação recomenda vivamente a todos, mas sobretudo aos fiéis leigos, que "devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade inteira" (n. 79).

Parte integrante da forma eucarística da existência cristã é a capacidade do sacramento memorial da nossa salvação de nos fazer ver a história e o mundo inteiro com renovado olhar. De facto, como recorda Bento XVI, "na Eucaristia, revela-se o desígnio de amor que guia toda a história da salvação (Ef 1, 9-10; 3, 8-11)" (n. 8). As numerosas e claras incidências sociais do Mistério eucarístico acreditado, celebrado e vivido, que o Papa elenca podem ser compreendidas precisamente à luz da missão que dá testemunho da fé (cf.nn. 88-91).

A Exortação não hesita em afirmar que "a Eucaristia impele todo o que acredita... a fazer-se "pão repartido" para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno" (n. 88). Inclusivamente "é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração" (n. 89). Tornam-se ainda mais fortes as expressões de Bento XVI em relação às situações de injustiça social, de violências e guerras, de terrorismo, corrupção e exploração (cf. n. 89) e à indigência do homem (cf. n. 90). A Igreja que vive da Eucaristia, sobretudo através da responsabilidade dos seus fiéis leigos, deve estar presente na história e na sociedade em favor de cada homem, sobretudo de quem por causa da injustiça e do egoísmo de muitos, sofre a miséria, a fome e situações endémicas de doença porque não tem acesso aos recursos alimentares e de saúde. Jesus, alimento de verdade afirma a Exortação Apostólica "leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor" (n. 90). A Doutrina Social da Igreja é um instrumento precioso para a educação na justiça e na caridade (cf.n. 91).

Aos olhos da fé eucarística o vínculo entre Eucaristia e universo certamente não é facultativo. De resto a própria celebração eucarística obriga à oferta do pão e do vinho, fruto da terra, da videira e do trabalho do homem: "na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a "nova criação" que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão" (n. 92). O tema da salvaguarda da criação é desenvolvido e aprofundado em relação com o desígnio bom de Deus sobre toda a criação. A realidade não é mera matéria neutral à mercê da manipulação tecno-científica, mas é querida por Deus em vista da recapitulação em Cristo de todas as coisas. Deriva disto a responsabilidade pela salvaguarda da criação própria do cristão alimentado pela Eucaristia.

IV. O "método" eucarístico

Para concluir este convite à leitura da Exortação Apostólica Sacrosanctum Caritatis, gostaria de retomar uma preciosa indicação de método contida no ensinamento de Bento XVI.

Refiro-me à convicção de que na autenticidade da fé e do culto eucarístico se encontra o segredo de uma retomada da vida cristã capaz de regenerar o Povo de Deus. No mistério da divina Eucaristia abre-se o acesso à realidade de Deus que é amor. Desabrocha a verdadeira compreensão da realidade.

Nesta perspectiva "a própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo" (n. 92). Estamos diante de uma profunda perspectiva sacramental que retoma explicitamente o ensinamento do Servo de Deus João Paulo II na encíclica Fides et ratio 13 (cf. n. 45) na qual "aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo" (n. 92). Onde é possível contemplar a verdade destas afirmações? Bento XVI di-lo com clareza na Primeira Parte e na Conclusão da Exortação Apostólica: "Em Maria Santíssima, vemos perfeitamente realizada também a modalidade sacramental com que Deus alcança e envolve na sua iniciativa salvífica a criatura humana" (n. 33). "Dela devemos aprender a tornar-nos pessoas eucarísticas e eclesiais" (n. 96).

O mistério eucarístico faz assim descobrir que todas as circunstâncias da vida estão inscritas no horizonte sacramental. Cristo nunca deixa de bater à porta da nossa liberdade para que o acolhamos e nos deixemos transformar pelo Seu amor redentor.

"Amor verdadeiro é Jesus, e concede saúde a quem segue as virtudes". De facto, Jesus ama verdadeiramente porque ama primeiro sem nada esperar em troca, e ama em todos os momentos como se fosse o último.


INTERVENÇÃO DE D. NIKOLA ETEROVIC

Terça-feira, 13 de Março de 2007

O Senhor Jesus deu aos seus discípulos uma regra de ouro ao avaliar o resultado das actividades dos homens: "Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto. Cada árvore conhece-se pelo seu fruto" (Lc 6, 43-44).

Esta expressão de Jesus Cristo vem espontaneamente à mente na feliz ocasião da apresentação da Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis. O Documento que o Santo Padre Bento XVI assinou a 22 de Fevereiro passado, festa da Cátedra de São Pedro, é na verdade um fruto bom, que amadureceu durante um período de oração, diálogo, reflexão e debate, na escuta atenta de quanto o Espírito Santo diz hoje às Igrejas (cf. Ap 2, 7), cujos representantes, sucessores dos Apóstolos, se reuniram em Roma, de 2 a 23 de Outubro de 2005, na XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sob a presidência do Santo Padre Bento XVI, Sucessor de São Pedro Apóstolo, Bispo de Roma e Pastor universal da Igreja.

Na assembleia sinodal participaram, a vários títulos, também representantes da vida consagrada e da vida apostólica, leigos Auditores e Auditoras, assim como um certo número de Delegados fraternos, membros das Igrejas e comunidades cristãs que ainda não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.

Todos viveram uma experiência forte de comunhão com Deus e entre os irmãos e irmãs e, provenientes dos cinco continentes, pertenciam a várias raças, falavam numerosas línguas, tinham sensibilidades bastante diversas. Mas todos estavam profundamente unidos, conscientes de que a diversidade de carismas, de ministérios e de operações provinha da única fonte, de um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo (cf. 1 Cor 12, 4-6) e que estava orientada para um único bem, a unidade da santa Igreja de Deus (cf. Jo 17, 21). Esta dimensão espiritual de comunhão foi a base sobre a qual se realizou a assembleia sinodal. Ela permanece como um tesouro precioso para quantos nela participaram, mesmo se não é fácil quantificá-lo e indicá-lo com conotações demasiado tangíveis. Mas o clima de profunda comunhão eclesial sobressai na Exortação Apostólica pós-sinodal que, portanto, pode ser apresentada como fruto maduro do longo percurso sinodal.

Apresentação da XI Assembleia Geral Ordinária

O processo sinodal começou de modo intenso depois de ter sido dado o anúncio público, a 13 de Fevereiro de 2004, que o Servo de Deus João Paulo II tinha escolhido, para a XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, o tema: A Eucaristia: fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. O X Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, ajudado por alguns válidos peritos, começou a estudar o tema, os aspectos doutrinais e pastorais de actualidade, para preparar os Lineamenta, documento que tem por finalidade apresentar em síntese o status quaestionis do tema das reflexões sinodais, para suscitar um amplo debate a nível da Igreja universal. Segundo os Estatutos do Ordo Synodi Episcoporum, que reflectem a estrutura hierárquica da Igreja, os privilegiados interlocutores são os organismos eclesiais: Sínodos das Igrejas Orientais Católicas sui iuris, Conferências Episcopais, Congregações da Cúria Romana, Uniões dos Superiores Gerais. Eles são chamados a favorecer um debate profundo nos âmbitos das suas jurisdições, reunir os seus resultados e transmiti-los à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos. Evidentemente, são possíveis contributos de cada um dos membros do Povo de Deus. Os Lineamenta foram enviados aos interessados por altura da Páscoa de 2004 e serviram para favorecer o debate sobre a Eucaristia, no seio das forças vivas a nível das Igrejas Particulares. Sob o ponto de vista prático, teve grande importância o Questionário com o qual se concluía o documento, o qual tinha a finalidade de facilitar o aprofundamento sobre cada um dos aspectos do tema, sobre a percepção do mistério eucarístico, a sua celebração e consequências na vida eclesial e social.

Até ao final do ano de 2004, os organismos interpelados enviaram as suas respostas, bastante numerosas, alcançando 95% do total dos interpelados. Depois de um estudo aprofundado, elas foram ordenadas em quatro capítulos do Instrumentum laboris: I) Eucaristia e mundo actual; II) Fé da Igreja no mistério da Eucaristia; III) Eucaristia na vida da Igreja e IV) Eucaristia na missão da Igreja. Este trabalho foi feito pelo Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, com a ajuda de alguns peritos. O documento foi publicado no início do ano de 2005 e amplamente difundido. Mas ele é de particular interesse sobretudo para quantos deviam intervir na assembleia sinodal porque na realidade se tratava da ordem do dia da mesma.

O Instrumentum laboris reflectia a prática eucarística das Igrejas particulares. As informações eram prevalecentemente positivas e confortadoras, mesmo se não faltavam indicações de algumas imperfeições, lacunas ou abusos a serem colmados e superados na celebração do sublime sacramento do altar, no espírito de humilde aceitação do grande dom de Deus-Amor e de profunda adoração que depois necessariamente deve reflectir-se na vida eucarística de cada fiel e de toda a comundiade na actual vida eclesial e social.

Trabalho no seio da Assembleia Sinodal

Foi depois tarefa do Em.mo Cardeal Angelo Scola, Patriarca de Veneza, na sua função de Relator-Geral, indicar na Relatio ante disceptationem os aspectos salientes do Instrumentum laboris, resultado de uma ampla consulta eclesial, e traçar alguns temas principais a serem debatidos e aprofundados tendo em consideração a grande Tradição da Igreja Católica e das mudadas condições sociais em que o homem contemporâneo vive e trabalha. Seguiram-se, depois, numerosas intervenções dos padres sinodais, institucionalmente 232, sem contar as intervenções livres. Puderam intervir também os Auditores e as Auditoras e os Delegados fraternos. Ajudado pelo Ex.mo Secretário Especial e por alguns peritos, o Cardeal Relator-Geral reuniu o rico contributo das intervenções na Relatio post disceptationem. O texto pôde ser debatido em 12 círculos menores, grupos de estudo, divididos segundo as cinco línguas do Sínodo: italiano, francês, inglês, alemão, espanhol-português. Eles formularam numerosas sugestões que depois confluiram nas 50 Proposições sobre as quais os membros da Assembleia sinodal, depois de um ulterior debate, contribuindo com numerosos aperfeiçoamentos, se pronunciaram por meio de uma avaliação pessoal. Estas Proposições foram entregues ao Santo Padre Bento XVI com o pedido de as tomar em consideração para uma desejável redacção do Documento, geralmente denominado Exortação Apostólica pós-sinodal, que se destina a toda a Igreja Católica.

Contribuição do Santo Padre Bento XVI

O Santo Padre Bento XVI foi eleito para o cargo de Bispo de Roma e Pastor universal da Igreja a 19 de Abril de 2005, depois que o Senhor da vida chamou a si, a 2 de Abril de 2005, o Servo de Deus João Paulo II que tinha convocado a celebração da XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. O novo Pontífice devia pronunciar-se sobre ela. Sua Santidade Bento XVI fê-lo com solicitude já a 13 de Maio, reconfirmando a convocação da assembleia sinodal de 2 a 23 de Outubro de 2005. Ao mesmo tempo, indicou algumas modificações relativas ao tempo e à metodologia da celebração. As principais referiam-se à duranção da assembleia sinodal, que de 4, como era habitual, passou para 3 semanas, e à introdução de uma hora de intervenções livres no final das sessões gerais quotidianas, para favorecer um debate mais vivo. Reconfirmando a validade da experiência sinodal e inserindo-se na continuidade, Sua Santidade Bento XVI quis dar-lhe uma sua marca inovadora, resultado também da sua grande experiência de padre sinodal.

O Santo Padre seguiu muito de perto o andamento da Assembleia sinodal, participando em todos os momentos importantes. Como Presidente do Sínodo dos Bispos presidiu às Santas Missas de abertura e de encerramento da assembleia sinodal, pronunciando homilias ricas de conteúdo sobre o mistério da Eucaristia, fonte permanente da santidade e da missão da Igreja. À reunião dos Bispos Sua Santidade dedicou a reflexão de alguns Angelus e a catequese dirigida às Crianças da Primeira comunhão. O gesto bastante eloquente foi a adoração eucarística na Basílica de São Pedro, presidida pelo Papa Bento XVI em silencioso recolhimento, juntamente com os padres sinodais e com o povo fiel de Roma que vieram para mostrar a grande veneração ao Senhor ressuscitado, presente sob as espécies do pão e do vinho no coração da sua Igreja.

De particular importância foram duas intervenções do Santo Padre na sala sinodal. Com a primeira introduziu a meditação da Hora media que cada manhã precedia os trabalhos. Com a segunda deu um maravilhoso contributo à relação entre a refeição tradicional hebraica e o banquete eucarístico instituído por Jesus Cristo na última ceia e confiou à Igreja até ao fim dos tempos.

O Sumo Pontífice tinha herdado também o Ano da Eucaristia, proclamado pelo seu predecessor, João Paulo II com a conclusão do Congresso Eucarístico Internacional de Guadalajara, México, a 17 de Outubro de 2004. Ele devia concluir-se com a XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos dedicada precisamente ao mistério da Eucaristia. O Ano da Eucaristia era um acontecimento providencial que teve notáveis influências positivas sobre o Sínodo dos Bispos. Os padres sinodais sentiam-se em comunhão com toda a comunidade eclesial viva que rezava por eles, adorando o mesmo Mistério sobre o qual os membros da assembleia sinodal estavam a debater num clima de fé, de esperança e de caridade. Além disso, o Santo Padre Bento XVI teve a ocasião de pronunciar numerosas homilias e intervenções sobre o sublime sacramento do altar sobretudo durante o Ano da Eucaristia. Tratou-se de um rico património doutrinal, pastoral e espiritual que confluiu também na Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis. Este processo superou os limites do Ano da Eucaristia, como o demonstram, por exemplo, as numerosas citações da primeira encíclica Deus caritas est, que o Santo Padre publicou a 25 de Dezembro de 2005.

Portanto, a Sacramentum Caritatis é um exemplo de colaboração colegial na redacção de um Documento de tanta importância. Trata-se de uma Exortação Apostólica pós-sinodal porque reúne múltiplas contribuições da última assembleia sinodal. Além da Relatio ante disceptationem, é preciso recordar também a Mensagem ao Povo de Deus, as Relatórios de 12 grupos de estudo e sobretudo as 50 Proposições que confluíram na Sacramentum Caritatis. Este material abundante foi estudado e elaborado pelo XI Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, com a ajuda de alguns peritos, e entregue ao Santo Padre com o pedido, feito pelos padres sinodais, de elaborar um documento para o bem da Igreja universal. Como é fácil ver, Sua Santidade aceitou esta proposta, servindo-se abundantemente do material sinodal ao qual imprimiu o próprio carisma petrino, enriquecendo-o com as suas reflexões sobre o tema da Eucaristia, do sacerdócio e da caridade fraterna que dele brota para todos, sobretudo para os mais pobres. É lógico afirmar que a Sacramentum Caritatis representa um fruto maduro da XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos e da exemplar colaboração entre os membros do colégio episcopal, entre si e com o seu Chefe, o Bispo de Roma. O Sínodo dos Bispos é o ambiente propício no qual esta colaboração se pode desempenhar na frutuosa comunhão eclesial que permite a prática da colegialidade episcopal afectiva e efectiva.

Sacramentum Caritatis ponto de partida

A Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis dá continuidade à série dos grandes documentos sobre o sublime sacramento da Eucaristia como, por exemplo, os do Servo de Deus João Paulo II Ecclesia de Eucharistia e Mane nobiscum Domine. A Sacramentum Caritatis coloca-se nesta continuidade e ao mesmo tempo repropõe de modo actualizado algumas verdades fundamentais da doutrina eucarística, exortando a uma digna celebração do rito sagrado, recordando a urgente necessidade de desempenhar uma vida eucarística na vida de todos os dias, anunciando as belezas inimagináveis do nosso Deus que por amor quer permanecer no meio de nós sob as espécies do pão e do vinho, como fonte e ápice da vida e da missão da sua Igreja.

A publicação da Exortação Apostólica pós-sinodal no coração da Quaresma permite pôr em prática os votos que o Santo Padre formulou na Mensagem para a Quaresma de 2007, isto é, de viver "a Quaresma como um tempo "eucarístico", no qual, acolhendo o amor de Jesus, aprendemos a difundi-lo à nossa volta com todos os gestos e palavras". Este processo, que iniciou na Quaresma, destina-se a prolongar-se não só durante o ano litúrgico mas também durante toda a vida de cada fiel na comunidade eclesial.

Aos fiéis e aos homens de boa vontade não lhes resta que seguir o exemplo de Maria, Mulher Eucarística, isto é, viver deste mistério e anunciá-lo com palavras e sobretudo com o exemplo da vida. Nesta perspectiva a Sacramentum Caritatis tem um futuro prometedor porque repropõe a essência da vida cristã, fonte de santidade e da missão para todos os tempos, inclusive o momento actual. Não há dúvida de que o Povo de Deus, guiado pelos próprios Pastores, haurirá a mãos-cheias deste Documento que, apresentando de modo acessível ao homem contemporâneo as grandes verdades sobre a fé eucarística, trata de vários aspectos da actualidade na sua celebração e exorta a um renovado compromisso na construção de um mundo mais justo e pacífico no qual o Pão repartido para a vida de todos se torne sempre mais causa exemplar na luta contra a fome e contra qualquer forma de pobreza que simultaneamente grita aos ouvidos do Senhor dos exércitos (cf. Tg 5, 4) e degrada a dignidade do homem criado à imagem de Deus (cf. Gn 1, 26-27).

Na Divina providência o fruto de uma árvore boa é dado aos homens para que o comam e se alimentem. Análogamente é desejável que também a Sacramentum Caritatis, fruto maduro da XI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, se torne um alimento agradável, saboroso e nutriente para a vida espiritual dos membros da Igreja Católica em toda a sua riqueza de sacrifício, banquete e penhor da glória futura, do qual possam usufruir cada vez mais também os membros de Igrejas e comunidades cristãs, de outras religiões e também os homens de boa vontade.

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