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CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ

CARTA AO SUPERIOR-GERAL
DOS
 “FRÈRES DE LA CHARITÉ”
SOBRE O ACOMPANHAMENTO DOS PACIENTES
NOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS
DA BÉLGICA

Seconda-feira, 30 de março de 2020

 

Ao reverendíssimo irmão René superior-geral

Em março de 2017, no site da secção belga da Congregação dos “Irmãos da Caridade”, foi publicado um documento que admite — em certas condições — a prática da eutanásia num hospital católico. Esta prática, apoiada pela Associação Provincialat des Frères de la Charité, asbl, baseia-se fundamentalmente em três critérios: a inviolabilidade da vida, a autonomia do paciente e o relacionamento nos cuidados. Contudo, tal documento não faz referência a Deus, nem à Sagrada Escritura, nem sequer à visão cristã do homem.

A Congregação para a Doutrina da Fé escreveu ao superior-geral, que já tinha desaprovado este documento, pedindo esclarecimentos, e na audiência de 20 de maio de 2017, o então prefeito do Dicastério informou o Santo Padre sobre a gravidade deste caso.

De 27 de junho de 2017 até agora, houve contactos e encontros entre a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, a Secretaria de Estado, os representantes dos Frères e da Associação Provincialat des Frères, assim como os representantes da Conferência episcopal belga, a fim de oferecer oportunidades e espaços de diálogo sobre um tema extremamente delicado e, assim, num espírito de sincera eclesialidade, encontrar uma convergência sobre a doutrina católica acerca deste assunto.

Há que mencionar as numerosas reuniões interdicasteriais de 31 de agosto e 7 de novembro de 2017; de 1 de fevereiro, de 15 de março, de 20 de junho e de 12 de outubro de 2018 e de 20 de julho de 2019, a carta deste Dicastério ao superior-geral dos Frères, de 30 de junho de 2017, o documento Princípios a respeitar no acompanhamento de doentes em hospitais psiquiátricos e a reunião alargada em Roma a 21 de março de 2018. Nesta sede, o secretário de Estado e os prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica pediram aos representantes dos Frères e da Associação Provincialat des Frères, que confirmassem por escrito e inequivocamente a sua adesão aos princípios da sacralidade da vida humana e da inadmissibilidade da eutanásia e, como consequência, a sua absoluta recusa em utilizá-la em instituições que dependem deles. Infelizmente, as respostas recebidas não deram garantia alguma sobre estes pontos.

A eutanásia continua a ser um ato inadmissível, até em casos extremos, porque «é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal» (João Paulo II, Evangelium vitae, 65).

Por sua vez, o Papa Francisco declarou que «o atual contexto sociocultural está progressivamente a desgastar a consciência do que torna a vida humana preciosa. Na realidade, ela está a ser cada vez mais avaliada com base na sua eficiência e utilidade, a ponto de considerar “vidas descartadas” ou “vidas indignas” aquelas que não correspondem a este critério. Nesta situação de perda dos valores autênticos, vêm a faltar os deveres inalienáveis de solidariedade e fraternidade humana e cristã.

Na realidade, uma sociedade merece a qualificação de “civilizada” se desenvolver anticorpos contra a cultura do descarte; se reconhecer o valor intangível da vida humana; se a solidariedade for ativamente praticada e salvaguardada como fundamento da convivência» (Francisco, Discurso aos participantes na Assembleia plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, 30 de janeiro de 2020). Também reiterou que «a abordagem relacional — e não meramente clínica — com o paciente, considerada na singularidade e integridade da sua pessoa, impõe o dever de nunca abandonar ninguém na presença de males incuráveis. A vida humana, devido ao seu destino eterno, conserva todo o seu valor e dignidade em qualquer condição, até de precariedade e fragilidade, e como tal é sempre digna da mais alta consideração» (ibidem).

Nestas últimas palavras, o Papa Francisco refere-se ao tema da “compaixão”, que é invocado cada vez mais pela opinião pública como justificação da eutanásia.

João Paulo II deixou inequivocamente claro que a eutanásia é uma «falsa compaixão, antes, uma preocupante “perversão” da mesma: a verdadeira “compaixão”, com efeito, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto da eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como os parentes — deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos — como os médicos — pela sua específica profissão, deveriam tratar o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas» (Evangelium vitae, 66).

Em suma, o ensinamento católico afirma o valor sagrado da vida humana; a importância de cuidar e acompanhar os doentes e deficientes; o valor cristão do sofrimento; a inaceitabilidade moral da eutanásia; a impossibilidade de introduzir esta prática nos hospitais católicos, até em casos extremos e, a este respeito, de colaborar com instituições civis.

Parece claro que a posição do grupo dos Irmãos da Caridade na Bélgica não responde a estes princípios. Com efeito, ela: 1) rejeita a absolutez do respeito pela vida, ou seja, questiona que a vida de um ser humano inocente deve ser respeitada “sempre”, deixando aberta a possibilidade de exceções; 2) no que diz respeito à importância dos cuidados e acompanhamento de doentes psiquiátricos, remete para a lei belga sobre a eutanásia, abrindo claramente a possibilidade para doentes psiquiátricos não terminais; 3) deixa ao médico a responsabilidade e o direito de aceitar ou recusar o pedido de eutanásia (“ato médico”), excluindo assim a escolha do hospital; 4) mantém a possibilidade da eutanásia dentro do Instituto, com a justificação de evitar aos membros da família o esforço de ter que encontrar outra solução.

Também o relatório do visitador apostólico, Sua Excelência D. Jan Hendriks, não fez progresso algum, pois mostra a profunda dificuldade em manter a ligação entre as obras e a Congregação dos Irmãos da Caridade, uma vez que os responsáveis não aceitam o compromisso de encontrar uma solução viável que evite qualquer forma de responsabilidade da instituição pela eutanásia.

Portanto, no final deste longo e doloroso caminho, e constatando a falta de vontade de aceitar a doutrina católica sobre a eutanásia, embora com profunda tristeza, comunica-se que os hospitais psiquiátricos geridos pela Associação Provincialat des Frères de la Charité, asbl na Bélgica já não podem, a partir de agora, ser considerados instituições católicas.

Aproveito de bom grado esta circunstância para me confirmar com sentimentos de reverência religiosa,

Luis F. Card. Ladaria, S.J.
Prefeito

D. Giacomo Morandi
Arcebispo Titular de Cerveteri
Secretário