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DISCURSO DO CARDEAL AGOSTINO CASAROLI
 NA APRESENTAÇÃO OFICIAL DO
 NOVO CÓDIGO DE DIREITO CANÓNICO

3 de Fevereiro de 1983

 

Beatíssimo Padre

1. Ao promulgar, a 25 de Janeiro, a Constituição Apostólica Sacrae disciplinae leges, Vossa Santidade realizou um dos actos mais importantes que a missão do Sucessor de Pedro, perpétuo princípio e visível fundamento da unidade na Igreja de Deus, possa comportar. Com uma decisão de histórico alcance, daquelas que incidem profundamente na vida do Povo de Deus, num dos momentos que poderíamos chamar "fortes" da bimilenar existência da Igreja, Vossa Santidade exerceu — em relação, por agora, à Comunidade católica de rito latino — aquele supremo "munus regendi" que o Senhor lhe confiou; "in edificationem, non in destructionem": isto é, para dirigir e harmonizar; como Seu Vigário na terra e Cabeça do Colégio episcopal, a vida eclesial e a actividade dos Pastores e dos fiéis que, unidos no vínculo da fé, da esperança e da caridade, "baptizados num só Espírito" (1 Cor. 12, 13), e "partícipes do mesmo e único pão" (cf. 1 Cor.10, 17), formam, embora sendo muitos, um só corpo (cf. ibd), possuído e vivificado por um só Espírito: o Corpo de Cristo.

Neste momento solene, que está a viver com Vossa Santidade a Igreja inteira, representada, aqui por tantos Em.mos Cardeais, Bispos, sacerdotes, religiosas, religiosos e leigos, e no qual participa também o mundo, cristão e não cristão, que se faz presente pelos Membros do Corpo Diplomático acreditado junto da Sé Apostólica, e a título especial, o mundo da ciência jurídica e canónica, é-me grato deter-me num particular aspecto deste acto, não em contraste, mas como desenvolvimento e aprofundação de quanto até agora expressei.

É uma consideração que creio responda fielmente ao pensamento e às preocupações de Vossa Santidade. De facto, ao promulgar o novo Código de Direito Canónico, mais ainda que realçar o legítimo exercício do Vosso poder pleno, imediato e universal de governo eclesiástico que foi confiado a Pedro e aos seus Sucessores, Vossa Santidade entendeu responder ao Vosso dever de pastor da Igreja Universal.

A Pedro, de facto, e aos seus Sucessores Cristo confiou solenemente o mandato: Pasce agnos meos! Pasce oves meas!

Por este mandato, o munus pascendi gregem Dei, que é de todos os Bispos, pertence a título próprio, para a inteira Igreja — isto é, fiéis e Pastores — ao Sumo Pontífice, como missão que compendia num só termo o conjunto das suas responsabilidades e dos seus poderes.

Apascentar a grande família de Deus comporia, de facto, não deixar faltar-lhe o alimento da Verdade, com um Magistério que dê a todos os seus membros a segurança necessária para um empenho que abrange toda a vida deles, para o presente e para a eternidade: assegurar-lhe os meios necessários para a sua santificação; mas também orientá-la na sua peregrinação terrena, ao longo de um caminho muitas vezes inseguro e semeado de insídias, para que ela seja sempre, fielmente,"veluti sacramentum seu signum et instrumentum intimae cum Deo unionis totiusque generis humani unitatis" (LG. 1) e para sempre, de modo fiel,"fructus salutis hominibus communicet" (ibid.8). '

2. Neste multiforme ministério pastoral Vossa Santidade, Beatíssimo Padre, entendeu levar a termo a obra decidida por aquele outro grande Pastor de almas que foi João XXIII, iniciada e conduzida a bom ponto pelo Vosso Predecessor Paulo VI, e, após o breve parêntesis do Pontificado de João Paulo I, confiada às Suas mãos.

Ela foi concedida no sinal da pastoralidade, não certamente alheia, ao contrário, à precedente legislação canónica; e neste sinal foi por Vossa Santidade aperfeiçoada.

Assim deve a Igreja ver e compreender o Código de Direito Canónico agora revisto e renovado; assim deve aceitá-lo; assim deve vivê-lo e aplicá-lo: ou seja, como singular expressão do serviço pastoral que ela presta ao Supremo Pastor, em cumprimento da missão que lhe foi confiada pelo "Pastor magnus ovium" (Heb. 13, 20), com a autoridade que tal missão lhe confere.

E como o mandato"pascendi gregem Dei" foi dado em resposta e quase subordinado à tríplice profissão de amor solicitada por Cristo a Pedro, e nele a quantos lhe haveriam legitimamente sucedido, o exercício de tal mandato assume carácter de serviço de amor, ainda mais do que de domínio.

Reconhecer este carácter de amor pastoral não significa; decerto, desconhecer ou diminuir de modo algum o valor vinculante do Código, sob o perfil de norma, não só moral mas jurídica. Apenas leva a compreender melhor o que poderíamos definir "a alma": aquela alma que dá carácter próprio e singular ao direito na Igreja, destinado, como ele é, a regular a vida e a actividade de uma Comunidade espiritual e ao mesmo tempo visível, onde todos, são igualmente irmãos e gozam da mesma dignidade de filhos de Deus, — herdeiros da mesma promessa, e também hierarquicamente organizada, com "ministros que são revestidos do poder sagrado.." para que todos os que pertencem ao Povo de Deus tendam livre e ordenadamente para o mesmo fim e cheguem à salvação" (LG. 18).

3. Liberdade bem ordenada. Liberdade e responsabilidade. Liberdade dos filhos de Deus, sujeitos porém à Sua lei como é proposta, autenticamente interpretada, concretamente aplicada à necessidade, pela Igreja.

Responsabilidade para com a sociedade da qual somos membros e para com a qual — isto é, á Igreja no seu conjunto — e também para com os outros irmãos de fé, cada um tem deveres: hierarquia, clero, membros dos Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica, leigos.

Como é lícito, portanto, a cada um dos fiéis aspirar a ver reconhecidos e respeitados os próprios direitos na Igreja, assim também é obrigação, para cada um deles, reconhecer e respeitar as próprias responsabilidades.

O Código de Direito Canónico tem precisamente a função de definir e de tutelar, por um lado, a legítima liberdade e os direitos que competem aos membros da Comunidade eclesial e, por outro lado, o "bem comum" desta mesma comunidade, de acordo com a sua natureza humano-divina e com a missão que Deus lhe confiou.

4. Não era fácil, à distância de mais de quinhentos anos da promulgação do Código Pio-Beneditino, encontrar para os nossos dias um justo equilíbrio entre estas duas exigências, de modo a preservar a plena fidelidade aos imutáveis princípios da divina Constituição da Igreja e, ao mesmo tempo, ter na devida conta a aprofundada reflexão efectuada pela Teologia e, ainda mais, os ensinamentos do Concílio Ecuménico Vaticano II em matéria eclesiológica sem deixar — além disso — de ter em consideração, dentro de tal quadro, também novas situações e novas sensibilidades do povo cristão.

Para enfrentar uma empresa tão empenhativa os Vossos Predecessores e Vossa Santidade mesma Beatíssimo Padre, quiseram chamar para colaborar o Episcopado Católico inteiro num primeiro tempo — e depois uma Comissão altamente autorizada e representativa do mesmo e da Cúria de Vossa Santidade, como também peritos de reconhecido valor. Metodicamente, com base na experiência pastoral ou de governo eclesiástico, ou na ciência jurídico-canónica, foi então elaborado o Esquema finalmente submetido, a Vossa Santidade que o examinou e reviu com escrupuloso cuidado e ânimo aberto, antes de o fazer próprio e de o apresentar, munido com o sigilo da Vossa Suprema autoridade, como Corpo orgânico de leis que para o futuro deverá dirigir e regular a vida e a actividade da Igreja Católica de rito latino.

5. Tem esta, pois, o seu novo Código, como o terão — em tempos, esperamos não distantes — as Igrejas Católicas Orientais.

Um grande trabalho foi realizado. Dele é fruto uma legislação de amplo fôlego jurídico e pastoral que, como Vossa Santidade salientou na Constituição Apostólica de promulgação, ao mesmo tempo que reveste natureza de acto "primacial" traz em si, mais do que o eco, a realidade da solicitude colegial de todo o Episcopado latino.

Compete à Igreja, agora, corresponder a esta solicitude de Vossa Santidade e dos Vossos Irmãos no ministério, episcopal.

6. A nossa primeira resposta deve ser indubitavelmente uma renovada consciência — ou, se necessário, uma retomada de consciência — não só da legitimidade, mas da necessidade e utilidade pastoral do direito na Igreja. Isto é, a consciência de que a exacerbada contraposição desejada por alguns entre a Igreja-Comunhão de graça e de caridade e Igreja-instituição, entre carisma, dom interior do Espírito e autoridade exterior, entre espírito e letra, com a recusa da lei em afirmada vantagem da liberdade "qua Christus nos liberávit" (Gál. 5, 1), pode e deve encontrar harmoniosa composição numa síntese superior aderente à verdadeira natureza da Igreja, como o seu Divino Fundador a desejou, e que o Sumo Pontífice Paulo VI assim exprimia: "a Igreja do 'Direito' e a Igreja da 'Caridade' são uma só realidade, de cuja vida interior é sinal exterior a forma jurídica" (L'Osservatore Romano,17-18 de Setembro de 1973).

Nesta perspectiva deve entender a Igreja as exigências que a promulgação do novo Código propõe tanto a ela como a cada um dos seus membros: a "magna disciplina Ecclesiae", de que Vossa Santidade, Beatíssimo Padre, falava no início do Vosso serviço pontifical, retomando a expressão do Vosso Predecessor João Paulo I, é um ordenamento eclesial baseado sobre o amor e sobre o Evangelho; não é limitação, mas consolidação da liberdade dos filhos de Deus; não suprime os dons e os carismas, mas protege e dirige o exercício deles para o maior bem da Igreja; assegura a justiça na paz e opõe-se ao arbítrio; ajuda a salvaguardar o "Ordo ecclesialis" como estrutura externa: aquele "Ordo juridicus", de que Vossa Santidade dizia há não muito tempo, que é entendido para assegurar a paz na comunhão: "quod ut fiat, ea pax erit caritas" (AAS 72, 1980, 1103, n. 6).

7. A segunda resposta, consequência da primeira, é a prontidão de todos à legislação canónica.

O tempo prolongado que a revisão do Código Pio-Beneditino exigiu, unido aos fermentos de renovação trazidos pelo Vaticano II, aliás nem sempre rectamente compreendidos e por alguns assumidos já como critérios de comportamento, fora ou mesmo contra a norma canónica ainda vigente, fez com que se difundisse na Igreja uma sensação de incerteza do direito, quando não situação de ilegalidade prática, com afrouxamentos na disciplina eclesiástica e com experiências, nem sempre felizes, algumas vezes toleradas ou pelo menos não guiadas firmemente.

É agora necessário que a Comunidade eclesial reencontre a sua plena utilidade, não só na fé e na caridade, mas também na disciplina canónica, de bom grado acolhida como meio destinado a assegurar o desenvolvimento ordenado da vida e da actividade do Povo de Deus peregrino no mundo, nesta hora histórica do seu longo caminho, e a reforçar assim as suas capacidades de evangelização e de serviço.

8. É para esperar, portanto, que todos os fiéis a começar por aqueles que na Igreja têm particulares responsabilidades de guia e de orientação — venham a assumir para com o novo Código de Direito Canónico, tão cuidadosa, e conscientemente predisposto, uma atitude de obrigatório empenho, acolhendo-o como um dom do zelo pastoral de Vossa Santidade e respondendo-lhe com fiel observância.

Para os Bispos o Código estabeleceu a obrigação de promover na própria Igreja particular o pleno respeito da comum disciplina eclesiástica, tendo também eles a responsabilidade — como se exprime o cân. 392 do novo Código — da tutela da unidade da Igreja universal. A eles competirá, por conseguinte, proceder solicitadamente à revisão das leis diocesanas para que, adequando-se à legislação geral, reflictam melhor o espírito e os princípios postos em luz pelo Concílio Vaticano II e completar tal legislação com a parte que é deixada à competência de cada Pastor ou das Conferências Episcopais.

Terminando, Beatíssimo Padre, quero fazer meu o Vosso voto: "faxit Deus ut gaudium et pax cum justitia et obedientia hunc Codicem commendet": para que também ele contribua eficazmente para uma renovada primavera da Igreja, quando ela está para celebrar o seu 1950º aniversário, quando nasceu do Sangue redentor de Cristo e da efusão pentecostal do Espírito!

 

 

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