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III ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS

«Relatio post disceptationem» (*)

 RELATOR GERAL: CARDEAL PÉTER ERDÖ

Segunda-feira, 13 de Outubro de 2014

 

Introdução
Primeira Parte

A escuta: o contexto e os desafios sobre a família
O contexto sociocultural
A relevância da vida afectiva
Os desafios pastorais

Segunda parte
O olhar em Jesus: o Evangelho da família

O olhar em Jesus e a gradação na história da salvação
A família no desígnio salvífico de Deus
O discernimento dos valores presentes nas famílias feridas e nas situações irregulares
Verdade e beleza da família e misericórdia

 

Terceira parte
O confronto: perspectivas pastorais

Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos
Orientar os noivos no caminho de preparação para o matrimónio
Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial
O positivo nas uniões civis e nas convivências
Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados)
Acolher as pessoas homossexuais
A transmissão da vida e o desafio da diminuição da natalidade
O desafio da educação e o papel da família na evangelização

Conclusão

 


Introdução

1. Na vigília de oração celebrada na praça de São Pedro no sábado 4 de Outubro de 2014, em preparação para o Sínodo sobre a família, o Papa Francisco evocou de maneira simples e concreta a centralidade da experiência familiar na vida de todos, exprimindo-se desta forma: «Desce já a noite sobre a nossa assembleia. É a hora em que de bom grado se regressa a casa para se reunir à mesma mesa na consistência dos afectos, do bem feito e recebido, dos encontros que abrasam o coração e o fazem crescer, vinho bom que antecipa, nos dias do homem, a festa sem ocaso. Mas é também a hora mais pesada para quem se vê cara a cara com a própria solidão, no crepúsculo amargo de sonhos e projectos desfeitos. Quantas pessoas arrastam os seus dias no beco sem saída da resignação, do abandono, se não mesmo do rancor! Em quantas casas falta o vinho da alegria e, consequentemente, o sabor — a própria sabedoria — da vida! Nesta noite, com a nossa oração, façamo-nos voz de uns e de outros: uma oração por todos».

2. Ventre de alegrias e provações, de afectos profundos e relações às vezes feridas, a família é deveras «escola de humanidade» (Familia schola quaedam uberioris humanitatis est: concílio Vaticano II, Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 52), da qual se sente fortemente a necessidade. Não obstante os muitos sinais de crise da instituição familiar nos vários contextos da «aldeia global», o desejo de família permanece vivo, sobretudo entre os jovens, e motiva a necessidade de que a Igreja anuncie sem desânimo e com convicção profunda o «Evangelho da família» que lhe foi confiado com a revelação do amor de Deus em Jesus Cristo.

3. Sobre a realidade da família, decisiva e preciosa, o Bispo de Roma chamou o Sínodo dos bispos a reflectir na sua assembleia geral extraordinária de Outubro de 2014, para depois aprofundar a reflexão na assembleia geral ordinária que terá lugar em Outubro de 2015, e também durante o ano que intercorre entre os dois eventos sinodais. «Já o convenire in unum ao redor do Bispo de Roma é evento de graça, no qual a colegialidade episcopal se manifesta num caminho de discernimento espiritual e pastoral»: assim o Papa Francisco descreveu a experiência sinodal, indicando as suas tarefas na dupla escuta dos sinais de Deus e da história dos homens e na dúplice e única fidelidade que disto resulta.

4. À luz do mesmo discurso reunimos os resultados das nossas reflexões e diálogos em três partes: a escuta, para observar a realidade da família hoje, na complexidade das suas luzes e trevas; o olhar fixo em Cristo para reconsiderar com novo vigor e entusiasmo quanto a revelação, transmitida na fé da Igreja, nos diz sobre a beleza e a dignidade da família; o confronto à luz do Senhor Jesus, para discernir os caminhos com os quais renovar a Igreja e a sociedade no seu compromisso pela família.

Primeira parte

A escuta: o contexto e os desafios sobre a família

O contexto sociocultural

5. A mudança antropológico-cultural influencia hoje todos os aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e diversificada, capaz de compreender as formas positivas da liberdade individual. Deve-se relevar também que um individualismo exasperado que desnatura os vínculos familiares e acaba por considerar cada componente da família uma ilha, fazendo prevalecer em certos casos, a ideia de um sujeito que se constrói segundo os próprios desejos assumidos como um absoluto.

6. A maior provação para as famílias do nosso tempo é com frequência a solidão, que destrói e provoca uma sensação geral de impotência em relação à realidade socioeconómica que muitas vezes acaba por esmagá-la. Deste modo, é pela crescente precariedade trabalhista vivida muitas vezes como um verdadeiro pesadelo, ou por causa de uma fiscalidade demasiado pesada que certamente não encoraja os jovens ao matrimónio.

7. Há contextos culturais e religiosos que apresentam desafios particulares. Nas sociedades africanas ainda vigora a prática da poligamia e nalguns contextos tradicionais o costume do «matrimónio por etapas». Noutros contextos permanece a prática dos matrimónios combinados. Nos países nos quais a religião é minoritária os matrimónios mistos são numerosos e com todas as dificuldades que comportam na configuração jurídica, na educação dos filhos e no respeito recíproco sob o ponto de vista da liberdade religiosa, mas também com as grandes potencialidades de encontro na diversidade da fé que apresentam estas histórias de vida familiar. Em muitos contextos, e não só ocidentais, está a difundir-se amplamente a prática da convivência que antecede o matrimónio ou até de convivência não orientada a assumir a forma de um vínculo institucional.

8. São muitas as crianças que nascem fora do matrimónio, especialmente nalguns países, e que depois crescem com um só dos pais ou num contexto familiar alargado ou reconstituído. O número de divórcios é crescente e não é raro o caso de escolhas determinadas unicamente por factores de ordem económica. A condição da mulher ainda precisa ser defendida e promovida porque há muitas situações de violência no âmbito das famílias. Frequentemente as crianças são objecto de contenda entre os pais, e os filhos são as verdadeiras vítimas das dilacerações familiares. Também as sociedades atravessadas pela violência por causa da guerra, do terrorismo ou da presença da criminalidade organizada, presenciam situações familiares deterioradas. Além disso, as migrações representam outro sinal dos tempos que deve ser enfrentado e compreendido com todo o peso de consequências na vida familiar.

A relevância da vida afectiva

9. Face ao cenário social delineado nos indivíduos encontra-se uma necessidade maior de cuidar da própria pessoa, de se conhecer interiormente, de viver melhor em sintonia com as próprias emoções e sentimentos, e de procurar uma qualidade relacional na vida afectiva. Ao mesmo tempo, pode-se verificar um desejo difundido de família ao lado da busca de si mesmo. Mas como cultivar e apoiar esta tensão ao cuidado de si e o desejo de família? Este é um grande desafio também para a Igreja. O perigo individualista e o risco de viver em chave egoísta são relevantes.

10. O mundo actual parece valorizar uma afectividade sem limites da qual se deseja explorar todos os aspectos, inclusive os mais complexos. De facto, a questão da fragilidade afectiva é de grande actualidade: uma afectividade narcisista, instável e mutável que nem sempre ajuda os sujeitos a alcançar uma maturidade maior. Neste contexto, os casais vivem incertos, hesitantes e sentem dificuldade para encontrar maneiras de crescer. Muitos tendem a permanecer nas condições primárias da vida emocional e sexual. A crise do casal desestabiliza a família e através das separações e divórcios pode produzir sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os vínculos sociais. Também a diminuição demográfica não só determina uma situação na qual a alternância das gerações já não é garantida, mas corre o risco de no tempo levar a um empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro.

Os desafios pastorais

11. Neste contexto a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de esperança e de sentido. É preciso começar pela convicção de que o homem vem de Deus e, portanto, que uma reflexão capaz de reapresentar as grandes questões sobre o significado do ser homem, possa encontrar um terreno fértil nas expectativas mais profundas da humanidade. Os importantes valores do matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana inclusive num tempo marcado pelo individualismo e hedonismo. É preciso acolher as pessoas com a sua existência concreta, saber apoiar a sua busca, encorajar o desejo de Deus e a vontade de se sentir plenamente parte da Igreja, também de quantos experimentaram a falência ou se encontram em situações mais diversas. Isto exige que a doutrina da fé, que deve ser conhecida cada vez mais nos seus conteúdos fundamentais, seja proposta juntamente com a misericórdia.

Segunda parte

O olhar em Jesus: o Evangelho da família

O olhar em Jesus e a gradação na história da salvação

12. Com a finalidade de «verificar o nosso passo no terreno dos desafios contemporâneos, a condição decisiva é manter o olhar fixo em Jesus Cristo, deter-se na contemplação e adoração do seu rosto [...]. Na verdade, todas as vezes que voltamos à fonte da experiência cristã, abrem-se estradas novas e possibilidades inimagináveis» (Papa Francisco, Discurso, 4 de Outubro de 2014). Jesus olhou com amor e ternura para as mulheres e os homens que encontrou, acompanhando os seus passos com paciência e misericórdia, anunciando as exigências do Reino de Deus.

13. Dado que a ordem da criação é determinada pela orientação para Cristo, é preciso distinguir sem separar os diversos graus mediante os quais Deus comunica a graça da aliança à humanidade. Devido à lei da gradação (cf. Familiaris consortio, 34), própria da pedagogia divina, trata-se de ler a aliança nupcial em termos de continuidade e novidade, na ordem da criação e da redenção.

14, O próprio Jesus, ao referir-se ao desígnio original sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel entre o homem e a mulher, mesmo compreendendo que «por causa da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres, mas no princípio não foi assim» (Mt 19, 8). Deste modo, Ele mostra que a condescendência divina acompanha sempre o caminho humano, orientando-o para o seu princípio, passando através da cruz.

A família no desígnio salvífico de Deus

15. Porque, com o compromisso do acolhimento recíproco e com a graça de Cristo os noivos prometem-se fidelidade e abertura à vida, reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes oferece, assumindo seriamente o seu compromisso recíproco, em seu nome e diante da Igreja. Ora, na fé é possível assumir os bens do matrimónio como compromissos melhor apoiados mediante a ajuda da graça do sacramento. Deus consagra o amor dos noivos e confirma a sua indissolubilidade, oferecendo-lhes a ajuda para viver a fidelidade e abrir-se à vida. Por conseguinte, o olhar da Igreja não se dirige só ao casal mas à família.

16. Podemos distinguir três etapas fundamentais no desígnio divino sobre a família: a família das origens, quando Deus criador instituiu o matrimónio primordial entre Adão e Eva, como fundamento sólido da família: homem e mulher os criou (cf. Gn 1, 24-31; 2, 4b); a família histórica, ferida pelo pecado (cf. Gn 3) e a família redimida por Cristo (cf. Ef  5, 21-32), à imagem da Santíssima Trindade, mistério do qual brota todo o amor verdadeiro. A aliança esponsal, inaugurada com a criação e revelada na história entre Deus e Israel, alcança a sua plenitude com Cristo na Igreja.

O discernimento dos valores presentes nas famílias feridas e nas situações irregulares

17. Em consideração ao princípio de gradação do plano salvífico divino, perguntemo-nos quais possibilidades são oferecidas aos cônjuges que vivem a falência do seu matrimónio, ou como é possível oferecer-lhes a ajuda de Cristo através do ministério da Igreja. A tal propósito, uma significativa chave hermenêutica provém do ensinamento do concílio Vaticano II, o qual, enquanto afirma que «a única Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica», reconhece que também «fora do seu organismo se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade que, pertencendo propriamente por dom de Deus à Igreja de Cristo, impelem à unidade católica» (cf. Lumen gentium, 8).

18. Nesta luz devem ser reafirmados sobretudo o valor e a própria consistência do matrimónio natural. Alguns perguntam-se se é possível que a plenitude sacramental do matrimónio exclua a possibilidade de reconhecer elementos positivos também nas formas imperfeitas que se encontram fora de tal realidade nupcial, a ela contudo ordenadas. A doutrina dos graus de comunhão, formulada pelo concílio Vaticano II, confirma a visão de um modo articulado de participar no Mysterium Ecclesiae por parte dos baptizados.

19. Na mesma perspectiva, que poderíamos chamar inclusiva, o concílio abre também o horizonte no qual se apreciam os elementos positivos presentes nas outras religiões (cf. Nostra aetate, 2) e culturas, não obstante os seus limites e insuficiências (cf. Redemptoris missio, 55). De facto, do olhar dirigido à sabedoria humana nelas presente a Igreja compreende como a família é considerada universalmente uma forma necessária e fecunda de convivência humana. Neste sentido, a ordem da criação, na qual afunda as raízes a visão cristã da família, desenvolve-se a nível histórico, nas diversas expressões culturais e geográficas.

20. Portanto, tornando-se necessário um discernimento espiritual, relativo às convivências e aos matrimónios civis e aos divorciados recasados, compete à Igreja reconhecer as sementes do Verbo espalhadas além dos seus confins visíveis e sacramentais. Seguindo o amplo olhar de Cristo, cuja luz ilumina todos os homens (cf.Jo 1, 9; cf. Gaudium et spes, 22), a Igreja dirige-se com respeito a quantos participam na sua vida de modo incompleto e imperfeito, apreciando mais os valores positivos que conservam do que os seus limites e falhas.

Verdade e beleza da família e misericórdia

21. O Evangelho da família, enquanto resplandece graças ao testemunho de muitas famílias que vivem com coerência a fidelidade ao sacramento, com os seus frutos maduros de autêntica santidade diária nutre também as sementes que ainda esperam amadurecer e deve cuidar das árvores que secaram e pedem para não ser abandonadas.

22. Neste sentido, uma dimensão nova da pastoral familiar hodierna consiste em colher a realidade dos matrimónios civis e, nas devidas proporções, também das convivências. Com efeito, quando a união alcança uma estabilidade notável através de um vínculo público, caracterizando-se pelo afecto profundo, pela responsabilidade em relação aos filhos, pela capacidade de resistir às provações, pode ser vista como um germe a acompanhar no desenvolvimento para o sacramento do matrimónio. Ao contrário, com muita frequência a convivência estabelece-se não na perspectiva de um possível futuro matrimónio mas sem qualquer intenção de instaurar uma relação institucional.

23. Em conformidade com o olhar misericordioso de Jesus, a Igreja deve acompanhar com atenção e zelo os seus filhos mais débeis, marcados pelo amor ferido e confuso, dando novamente confiança e esperança, como a luz do farol de um porto ou de uma chama levada ao povo para iluminar quantos perderam a rota ou se encontram no meio de uma tempestade.

Terceira parte

O confronto: perspectivas pastorais

Anunciar o Evangelho da família hoje, nos vários contextos

24. O diálogo sinodal permitiu abordar algumas instâncias pastorais mais urgentes, confiando-as à concretização em cada Igreja local, na comunhão cum Petro et sub Petro.

25. O anúncio do Evangelho da família constitui uma urgência para a nova evangelização. A Igreja deve actuá-lo com ternura de mãe e clareza de mestra (cf. Ef 4, 15), em fidelidade à kénosis misericordiosa de Cristo. A verdade encarna-se na família humana não para a condenar mas para a curar.

26. Evangelizar é responsabilidade partilhada de todo o povo de Deus, cada um segundo o próprio ministério e carisma. Sem o testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, o anúncio, mesmo se exacto, corre o risco de ser incompreendido ou de se afogar no mar de palavras que caracteriza a nossa sociedade (cf. Novo millennio ineunte, 50). Os padres sinodais muitas vezes repetiram que as famílias católicas são chamadas a ser elas mesmas sujeitos activos de toda a pastoral familiar.

27. Será decisivo ressaltar o primado da graça e portanto as possibilidades que o Espírito concede no sacramento. Trata-se de fazer experimentar que o Evangelho da família é alegria que «enche o coração e a vida inteira», porque em Cristo somos «libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento» (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf.Mt13, 3), a nossa tarefa é cooperar na sementeira: o restante é obra de Deus. Não se pode esquecer que a Igreja que prega sobre a família é sinal de contradição.

28. Por isso, requer-se uma conversão missionária: é necessário não permanecer num anúncio meramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. Nunca devemos esquecer que a crise da fé provocou uma crise do matrimónio e da família e, consequentemente, interrompe-se com frequência a transmissão da fé dos pais aos filhos. Diante de uma fé forte não há incidência a imposição de algumas perspectivas culturais que enfraquecem a família e o matrimónio.

29. A conversão deve ser antes de tudo da linguagem para que ela se torne efectivamente significativa. O anúncio deve fazer com que o Evangelho da família seja resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: à sua dignidade e realização plena, na reciprocidade e comunhão. Não se trata só de apresentar uma normativa mas propor valores, respondendo à necessidade deles que se constata hoje também nos países secularizados.

30. O indispensável aprofundamento bíblico-teológico deve ser acompanhado pelo diálogo, a todos os níveis. Muitos insistiram sobre uma abordagem mais positiva das riquezas contidas também nas diversas experiências religiosas, sem se calar sobre as dificuldades. Nas várias realidades culturais devem ser acolhidas as possibilidades e, à sua luz, rejeitados os limites e as radicalizações.

31. O matrimónio cristão não pode ser considerado só uma tradição cultural ou uma exigência social, mas deve ser uma decisão vocacional assumida com a preparação adequada num itinerário de fé, com um discernimento maduro. Não se trata de dificultar nem de complicar os ciclos de formação, mas de ir em profundidade, de não se contentar com encontros teóricos nem orientações genéricas.

32. Foi unanimemente evocada a necessidade de uma conversão de toda a prática pastoral em perspectiva familiar, superando as ópticas individualistas que ainda a caracterizam. Por isto, insistimos mais de uma vez sobre a renovação nesta luz da formação dos presbíteros e dos outros agentes pastorais, mediante uma participação maior das próprias famílias.

33. Do mesmo modo, foi realçada a necessidade de uma evangelização que denuncie com franqueza os factores culturais, sociais e económicos, por exemplo o espaço excessivo dado à lógica de mercado, que impedem uma autêntica vida familiar, determinando discriminações, pobreza, exclusões, violência. Por isso, deve-se desenvolver um diálogo e uma colaboração com as estruturas sociais, e encorajar e apoiar os leigos que se comprometem nos âmbitos cultural e sociopolítico.

Orientar os noivos no caminho de preparação para o matrimónio

34. A complexa realidade social e os desafios que hoje a família é chamada a enfrentar exigem um esforço maior de toda a comunidade cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. Em relação a esta necessidade os padres sinodais concordaram em realçar a exigência de uma participação maior da comunidade inteira, privilegiando o testemunho das próprias famílias, além de uma radicação da preparação para o matrimónio no caminho de iniciação cristã, realçando o nexo do matrimónio com os demais sacramentos. Evidenciou-se também a necessidade de programas específicos para a preparação próxima ao matrimónio que sejam verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofundem os diversos aspectos da vida familiar.

Acompanhar os primeiros anos da vida matrimonial

35. Os primeiros anos de matrimónio são um período vital e delicado durante o qual os casais crescem na consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Eis, portanto, a exigência de um acompanhamento pastoral que vá além da celebração do sacramento. É de grande importância nesta pastoral a presença de casais com experiência. A paróquia é considerada o lugar ideal onde casais experientes possam estar à disposição dos mais jovens. É preciso encorajar os casais a uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. Deve-se realçar a importância da espiritualidade familiar e da oração, estimulando os casais a reunirem-se regularmente para promover o crescimento da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias significativas, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias, foram mencionadas como vitais para favorecer a evangelização através da família.

O positivo nas uniões civis e nas convivências

36. Uma sensibilidade nova da pastoral hodierna consiste em compreender a realidade positiva dos matrimónios civis e, nas devidas proporções, das convivências. É necessário que na proposta eclesial, mesmo apresentando o ideal com clareza, indiquemos também elementos construtivos naquelas situações que já, ou ainda não, correspondem a tal ideal.

37. Também foi frisado que em muitos países um «crescente número de casais convivem ad experimentum, sem qualquer matrimónio canónico ou civil» (Instrumentum laboris, 81). Na África isto acontece especialmente no matrimónio tradicional, contraído entre famílias e celebrado em diversas etapas. Face a tais situações a Igreja é chamada a ser «sempre a casa aberta do Pai [...] na qual há lugar para cada um com o seu caminho difícil» (Evangelii gaudium, 47) e a ir ao encontro de quem sente a necessidade de retomar o seu caminho de fé, mesmo se não é possível celebrar o matrimónio canónico.

38. Também no Ocidente está em contínuo crescimento o número de pessoas que depois de ter vivido juntos por algum tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. A simples convivência com frequência é escolhida por causa da mentalidade geral, contrária às instituições e aos compromissos definitivos, mas também na expectativa de uma segurança existencial (trabalho e salários fixos). Noutros países as uniões de facto são muito numerosas, não por motivo de rejeição dos valores cristãos sobre a família e o matrimónio, mas sobretudo pelo facto de que casar é um luxo, de maneira que a miséria material impele a viver em uniões de facto. Também nestas uniões é possível ver autênticos valores familiares ou pelo menos o seu desejo. É preciso que o acompanhamento pastoral comece sempre a partir destes aspectos positivos.

39. Todas estas situações devem ser enfrentadas de maneira construtiva, procurando transformá-las em oportunidade de caminho rumo à plenitude do matrimónio e da família, à luz do Evangelho. Trata-se de as acolher e acompanhar com paciência e delicadeza. Para esta finalidade é importante o testemunho cativante de famílias cristãs autênticas, como sujeitos da evangelização da família.

Cuidar das famílias feridas (separados, divorciados não recasados, divorciados recasados)

40. No Sínodo ressoou claramente a necessidade de opções pastorais corajosas. Reconfirmando vigorosamente a fidelidade ao Evangelho da família, os padres sinodais sentiram a urgência de caminhos pastorais novos, que comecem a partir da efectiva realidade das fragilidades familiares, reconhecendo que elas, na maioria das vezes, são mais «suportadas» do que escolhidas em plena liberdade. Trata-se de situações diversas devido a factores quer pessoais quer culturais e socioeconómicos. Não é sábio pensar em soluções únicas ou inspiradas na lógica do «tudo ou nada». O diálogo e o confronto vividos no Sínodo deverão prosseguir nas Igrejas locais, englobando as suas diversas componentes, de modo que as perspectivas que foram delineadas possam encontrar a sua plena maturação no trabalho da próxima assembleia geral ordinária. A guia do Espírito Santo, constantemente invocado, permitirá que todo o povo de Deus viva a fidelidade ao Evangelho da família como cuidado misericordioso de todas as situações de fragilidade.

41. Cada família ferida deve ser antes de tudo ouvida com respeito e amor tornando-nos companheiros de caminho como Cristo com os seus discípulos no caminho de Emaús. Para estas situações são válidas de modo especial as palavras do Papa Francisco: «A Igreja deverá iniciar os seus membros — sacerdotes, religiosos e leigos — nesta «arte do acompanhamento», para que todos aprendam sempre a tirar sandálias diante da terra sagrada do outro (cf. Êx 3, 5). Devemos dar ao nosso caminho o ritmo saudável da proximidade, com um olhar respeitador e cheio de compaixão mas que ao mesmo tempo cure, liberte e encoraje a maturar na vida cristã»(Evangelii gaudium,169).

42. É indispensável um discernimento como este para os separados e divorciados. Deve ser respeitado o sofrimento de quantos sofreram injustamente a separação e o divórcio. O perdão pela injustiça sofrida não é fácil, mas é um caminho que a graça torna possível. De igual modo deve ser frisado sempre que é indispensável ocupar-se de modo leal e construtivo das consequências da separação ou do divórcio sobre os filhos: eles não podem tornar-se um «objecto» para contender e devem ser procuradas as melhores formas para que possam superar a ruptura ou trauma da separação familiar e crescer do modo mais sereno possível.

43. Diversos padres frisaram a necessidade de tornar mais acessível e rápido o procedimento para o reconhecimento dos casos de nulidade. Entre as propostas foram indicadas a superação da necessidade da dupla sentença formal; a possibilidade de determinar um caminho administrativo sob a responsabilidade do bispo diocesano; um processo breve que deve ser iniciado nos casos de nulidade evidente. Segundo propostas de competentes, deveria ser considerada a possibilidade de realçar a fé dos nubentes em relação à validade do sacramento do matrimónio. Deve reafirmar-se que em todos estes casos se trata da certificação da verdade sobre a validade do vínculo.

44. Sobre as causas matrimoniais a simplificação do procedimento, pedida por muitos, além da preparação de agentes suficientes, exige que se incremente a responsabilidade do bispo diocesano, o qual na sua diocese poderia encarregar um sacerdote devidamente preparado que possa gratuitamente aconselhar as partes acerca da validade do seu matrimónio.

45. As pessoas divorciadas mas não recasadas devem ser convidadas a encontrar na Eucaristia o alimento que as ampare na sua condição. A comunidade local e os pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando houver filhos ou a sua situação de pobreza é grave.

46. Também as situações dos divorciados recasados exigem um discernimento atento e um acompanhamento cheio de respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que os faça sentir discriminados. Ocupar-se deles não é para a comunidade cristã um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho da indissolubilidade matrimonial, antes, expressa a sua caridade precisamente nesta solicitude.

47. Em relação à possibilidade de aceder aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, alguns argumentaram a favor da disciplina actual em virtude do seu fundamento teológico, outros disseram ser favoráveis a uma maior abertura a condições bem determinadas quando se trata de situações que não podem ser resolvidas sem causar novos sofrimentos injustos. Para alguns o eventual acesso aos sacramentos deveria ser precedido de um caminho penitencial — sob a responsabilidade do bispo diocesano — e com um compromisso claro a favor dos filhos. Tratar-se-ia de uma possibilidade não generalizada, fruto de um discernimento feito caso por caso, segundo uma lei de gradação, que tenha presente a distinção entre estado de pecado, estado de graça e circunstâncias atenuantes.

48. Sugerir limitar-se unicamente à «comunhão espiritual» para muitos padres sinodais levanta algumas questões: se é possível a comunhão espiritual, por que não se pode aceder à sacramental? Foi por isso solicitado um maior aprofundamento teológico a partir dos vínculos entre sacramento do matrimónio e Eucaristia em relação à Igreja-sacramento. Deve ser aprofundada de igual modo a dimensão moral da problemática, ouvindo e iluminando a consciência dos cônjuges.

49. As problemáticas relativas aos matrimónios mistos recorreram com frequência nas intervenções dos padres sinodais. A diversidade da disciplina matrimonial das Igrejas ortodoxas apresenta nalguns contextos problemas graves aos quais é necessário dar respostas adequadas em comunhão com o Papa. O mesmo é válido para os matrimónios inter-religiosos.

Acolher as pessoas homossexuais

50. As pessoas homossexuais têm dotes e qualidades para oferecer à comunidade cristã: somos capazes de acolher estas pessoas, garantindo-lhes um espaço de fraternidade nas nossas comunidades? Muitas vezes elas desejam encontrar uma Igreja que seja casa acolhedora. As nossas comunidades são capazes de o ser, aceitando e avaliando a sua orientação sexual, sem comprometer a doutrina católica acerca de família e matrimónio?

51. A questão homossexual interpela-nos a uma séria reflexão acerca do modo como elaborar caminhos realistas de crescimento afectivo e de maturidade humana e evangélica, integrando a dimensão sexual: apresenta-se portanto como um desafio educativo importante. Aliás, a Igreja afirma que as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser equiparadas ao matrimónio entre homem e mulher. Nem sequer é aceitável que se queiram exercer pressões sobre a atitude dos pastores ou que organismos internacionais condicionem ajudas financeiras para a introdução de normativas inspiradas na ideologia do gender.

52. Sem negar as problemáticas morais ligadas às uniões homossexuais, tomamos consciência de que há casos nos quais o apoio recíproco até ao sacrifício constitui um apoio precioso para a vida dos parceiros. Além disso, a Igreja dedica atenção especial às crianças que vivem com casais do mesmo sexo, reafirmando que devem ser sempre postas em primeiro lugar as exigências e os direitos dos filhos.

A transmissão da vida e o desafio da diminuição da natalidade

53. Não é difícil constatar a difusão de uma mentalidade que reduz a geração da vida a uma variante da projecção individual ou de casal. Os factores de ordem económica têm uma incidência por vezes determinante, contribuindo para a forte diminuição da natalidade que debilita o tecido social, compromete a relação entre as gerações e torna mais incerto o olhar sobre o futuro. A abertura à vida é exigência intrínseca do amor conjugal.

54. Provavelmente também neste âmbito é necessária uma linguagem realista, que saiba partir da escuta das pessoas e dizer a razão da beleza e da verdade de uma abertura incondicional à vida como aquilo de que o ser humano precisa para o viver em plenitude. É sobre esta base que se pode apoiar um ensinamento adequado sobre os métodos naturais, que permita viver de modo harmonioso e consciente a comunicação, em todas as suas dimensões, juntamente com a responsabilidade generativa. Nesta luz deve ser redescoberta a mensagem da encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que frisa a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade.

55. Portanto, é necessário ajudar a viver a afectividade, também no vínculo conjugal, como um caminho de maturação, no acolhimento cada vez mais profundo do outro, na doação cada vez mais plena. Neste sentido deve ser reafirmada a necessidade de oferecer caminhos formativos que alimentem o caminho conjugal e a importância de um laicado que ofereça um acompanhamento feito de testemunhos vivos. É indubitavelmente de grande ajuda o exemplo de um amor fiel e profundo feito de ternura e respeito, capaz de crescer com o tempo e que no seu abrir-se concreto à geração da vida faça a experiência de um mistério que nos transcenda.

O desafio da educação e o papel da família na evangelização

56. O desafio fundamental face ao qual as famílias se encontram hoje é certamente educativo, que se torna mais difícil e complexo devido à realidade cultural de hoje. Devem ter-se na devida conta as exigências e as expectativas de famílias capazes de testemunho na vida quotidiana, lugares de crescimento, de transmissão concreta e fundamental das virtudes que dão forma à existência.

A Igreja pode desempenhar nisto um papel precioso de apoio às famílias, partindo da iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras. A ela é pedido, hoje ainda mais do que ontem, tanto nas situações complexas como nas normais, que ampare os pais no seu compromisso educativo, acompanhando crianças, adolescentes e jovens no seu crescimento através de caminhos personalizados capazes de introduzir no sentido pleno da vida e de suscitar opções e responsabilidades, vividas à luz do Evangelho.

Conclusão

58. As reflexões propostas, fruto do diálogo sinodal feito em grande liberdade e num estilo de escuta recíproca, pretendem apresentar questões e indicar perspectivas que deverão ser amadurecidas e esclarecidas pela reflexão das Igrejas locais no ano que nos separa da assembleia geral ordinária do Sínodo dos bispos, prevista para Outubro de 2015. Não se trata de decisões nem de perspectivas fáceis. Contudo, o caminho colegial dos bispos e a participação de todo o povo de Deus sob a acção do Espírito Santo poderão guiar-nos para encontrar caminhos de verdade e de misericórdia para todos. São os votos que desde o início dos nossos trabalhos o Papa Francisco nos dirigiu convidando-nos à coragem da fé e ao acolhimento humilde e honesto da verdade na caridade.

 

 

(*) Jornal L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 42 de 16 de Outubro de 2014