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INTERVENÇÃO DO CARDEAL PAROLIN
DURANTE O SIMPÓSIO SBRE O TEMA
"PROMOVER E DEFENDER A LIBERTADE RELIGIOSA
A NÍVEL INTERNACIONAL ATRAVÉS LA DIPLOMACIA"

Embaixada dos Estados Unidos da América junto da Santa Sé
Quarta-feira, 30 de setembro de 2020

 

Excelências, Senhoras e Senhores!

Gostaria de agradecer à Embaixadora Callista Gingrich e aos funcionários da Embaixada dos Estados Unidos da América junto da Santa Sé a organização deste importante simpósio de um dia, durante o qual refletimos sobre o tema «Promover e defender a liberdade religiosa internacional através da diplomacia». Estou grato pelo convite a oferecer alguns pontos de reflexão na conclusão.

Caros amigos, a tutela e a promoção da liberdade religiosa é um traço caraterístico da atividade diplomática da Santa Sé. Este direito humano fundamental, juntamente com o direito inviolável à vida, constitui o fundamento sólido e indispensável de muitos outros direitos humanos. A violação desta liberdade compromete a fruição de todos os direitos e ameaça a dignidade da pessoa humana. Com efeito, em reconhecimento da centralidade deste direito fundamental, a liberdade religiosa é sancionada pela legislação constitucional de muitas nações e é mencionada numa vasta gama de convenções internacionais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos do Homem. O Concílio Vaticano II dedicou um documento inteiro à liberdade religiosa, espelhando a crescente consciência e importância de respeitar esta liberdade fundamental. Na Dignitatis humanae lemos que esta liberdade significa que «todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado a outros, dentro dos devidos limites» (n. 2).

No centro do exercício da liberdade de professar e praticar uma determinada religião, ou não seguir nenhuma, se assim for escolhido, está o exercício da liberdade de consciência, o lugar interior sagrado da natureza transcendente do homem, onde «o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e à fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração [...] O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus [...] A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 16). A Igreja defendeu sempre a necessidade de respeitar o fórum interior da própria consciência, não só devido à sua ligação intrínseca à liberdade de religião, mas também porque é o lugar sagrado íntimo da pessoa humana. Infelizmente, assistimos a um número crescente de exemplos em que esta liberdade é violada, até pela força, pelo direito civil, o que na realidade equivale a um ataque à dignidade da pessoa humana.

Gostaria de sugerir que, pelo menos em parte, algumas das dificuldades que experimentamos no que diz respeito à violação da liberdade religiosa a nível global, derivam de uma incompreensão fundamental do significado de liberdade humana. Os ataques à liberdade religiosa são frequentemente motivados pelo medo e pela ideologia: por regimes totalitários que utilizam o poder para impor restrições draconianas, como se observa, por exemplo, em países onde a prática de certas tradições religiosas é proibida e as “minorias” são ativamente perseguidas, mas também por vozes intolerantes do “politicamente correto”, que “silenciam” e condenam as crenças, tradições e práticas religiosas que contrastam a sua ideologia progressista, rotulando-as como “odiosas” e “intolerantes”. É tempo de meditar mais profundamente sobre as raízes da “intolerância” em tais situações e, em particular, sobre a redução do espaço público de diálogo para e com quantos praticam abertamente a própria fé. Com efeito, o nível de respeito pela liberdade religiosa na esfera pública é um claro indicador da saúde de cada sociedade; por conseguinte, é também um “teste decisivo” para o nível de respeito que existe também por todos os outros direitos humanos fundamentais.

Não é nova a minha sugestão de que a liberdade religiosa está em crise, porque está em crise também a nossa compreensão da verdade acerca da pessoa humana e da sua antropologia. Os Padres do Concílio Vaticano II observaram que «os homens de hoje se tornam cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável» (Dignitatis humanae, 1). «Assim, o sentido mais agudo da dignidade e da unicidade da pessoa humana, bem como do respeito devido ao caminho da consciência, constitui certamente uma conquista positiva da cultura moderna. Esta perceção, em si mesma autêntica, encontrou múltiplas expressões, mais ou menos adequadas, algumas das quais, porém, se afastam da verdade do homem enquanto criatura e imagem de Deus, e requerem, portanto, ser corrigidas ou purificadas à luz da fé» (Papa João Paulo II, Veritatis splendor, 31). Infelizmente, a nossa crescente consciência e afirmação da dignidade da pessoa humana nem sempre foi acompanhada de uma autêntica compreensão do dever moral e da responsabilidade decorrente do exercício da liberdade humana. Esta divergência entre dignidade e responsabilidade inerente à liberdade tem um impacto prejudicial sobre o conceito de liberdade religiosa e a sua fruição na sociedade moderna.

Este aspeto foi magistralmente elaborado na reflexão aguda e profunda do Papa São João Paulo II, na Carta Encíclica Veritatis splendor, “esplendor da verdade” onde, entre outras coisas, realça a necessidade de uma correta compreensão da natureza humana, especialmente da sua dimensão transcendente, enraizada no poder do intelecto e da vontade, exercida através do uso responsável da liberdade em conjunto com a verdade sobre o bem. Embora atualmente existam várias tendências que minam a perspetiva correta da liberdade humana, São João Paulo II destaca duas principais. A primeira poderia ser definida como “subjetivismo radical” ou exaltação da “liberdade individual como um absoluto”.

Ele explica-o da seguinte forma: «Nalgumas correntes do pensamento moderno, chegou-se a exaltar a liberdade a ponto de se tornar um absoluto, que seria a fonte dos valores. Nesta direção movem-se as doutrinas que perderam o sentido da transcendência ou as que são explicitamente ateias. Atribuíram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal. À afirmação do dever de seguir a própria consciência foi indevidamente acrescentada aqueloutra, de que o juízo moral é verdadeiro pelo próprio facto de provir da consciência. Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de “acordo consigo próprio”, a ponto de se ter chegado a uma conceção radicalmente subjetivista do juízo moral» (Veritatis splendor, 32). Nas sociedades contemporâneas, especialmente no Ocidente, existe uma forte tendência a exagerar a liberdade pessoal, para a separar deliberadamente da busca do bem ou, pior ainda, para a tornar o único bem. Como resultado, o homem fecha-se em si mesmo, tornando-se autorreferencial e o que é bem torna-se totalmente subjetivo. Daqui a que o homem se torne uma ilha o passo é breve, exercendo a sua liberdade, até longe da justa razão. O “bem máximo” torna-se agora a eliminação de qualquer obstáculo à “autonomia radical”, tal como a lei moral natural ou divina. Também os outros direitos humanos fundamentais devem ser abolidos, de modo a não impedir o desejo da própria escolha.

Com efeito, outro equívoco moderno demasiado comum que interfere com uma conceção correta da liberdade humana é a negação da verdade moral objetiva, convenientemente substituída pelo sentimento ou pela sensação pessoal do indivíduo sobre o bem moral.

O santo polaco continua: «Perdida a ideia de uma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a conceção da consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um ato da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal, e de agir em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros. Levado às últimas consequências, o individualismo desemboca na negação da ideia mesma de natureza humana» (Veritatis splendor, 32).

Estas abordagens redutivas do bem e da consciência estão no centro da maioria das correntes de pensamento, e são a ideologia liberal predominante, que coloca a lei moral e a consciência, bem como a nossa natureza humana e a nossa liberdade, em nítido contraste. Este contraste sentido tem consequências devastadoras na obtenção de uma compreensão justa da liberdade humana, incluindo a liberdade de consciência e a liberdade religiosa.

Essencialmente, a decisão de enraizar a liberdade do homem unicamente no ego, sem qualquer referência ao Criador, é inadequada. Conduz a uma compreensão limitada da liberdade religiosa e tem dificuldade de gerar e manter o espaço necessário para o pluralismo autêntico e a busca da verdade objetiva, ou seja, para a verdade que não acaba em mim nem em ti. Embora tenhamos de repetir continuamente que a liberdade religiosa comporta a capacidade de exercer, sem coerção nem ameaças de perseguição, as próprias convicções religiosas, tanto em privado como em público, isto é apenas uma parte da compreensão da liberdade religiosa. É a abordagem do caminho negativo, se quisermos, a qual simplesmente afirma que não deve haver coerção na prática da religião. Contudo, muitas vezes não conseguimos reconhecer que a liberdade religiosa é, ao mesmo tempo, a liberdade de procurar a verdade. A liberdade religiosa é também liberdade “para” a fé. Em síntese, deve ser também entendida de modo afirmativo. Sublinhar exclusivamente a expressão da liberdade religiosa como “liberdade de coerção externa” sem abordar aquilo a que tal liberdade está justamente ordenada, ou seja, a descoberta da verdade última da própria existência, das próprias origens e do próprio destino, concedidos pelo Criador, é como dar a uma criança um instrumento e dizer-lhe “não o deves usar para isto e aquilo”, sem nunca lhe explicar “para que fim tal instrumento deve servir”.

Se não me engano, existe uma famosa série de livretes de catequese publicada por um dos Conselhos de Baltimore, nos Estados Unidos. Uma das perguntas iniciais daquele abecedário da fé é: “Por que te criou Deus?”; e a resposta correta a dar é: “Deus criou-me para o conhecer, amar e servir neste mundo e para ser feliz com Ele eternamente no mundo vindouro”. A simplicidade disto não deve ofuscar a profundidade desta verdade. Fomos criados com um propósito. Recebemos uma natureza ordenada para um certo fim, com os dons da inteligência e a vontade de conhecer e escolher o bem, cada um de acordo com a própria consciência. Sem este fim objetivo, um fim que existe para além do eu, nada mais podemos esperar do que encontrar uma sociedade em crise, com cada um de nós incapaz de abraçar quem quer seja, a não ser a si próprio.

No nosso debate sobre a liberdade religiosa, incluindo a sua promoção através da atividade diplomática, ainda é útil recordar não só o que esperamos defender e promover, mas também as ameaças que devemos enfrentar. Elas incluem certamente a opressão física, a perseguição e a imposição ideológica, mas também a negação da própria natureza do homem. Espero ter ajudado a esclarecer este aspeto hoje aqui convosco.

E, como sempre, faço votos de que iniciativas como o Simpósio de hoje continuem a dar impulso a nível internacional para que este direito humano fundamental possa ser usufruído por todos.

Obrigado pela vossa atenção!