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10ª SEMANA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA
E 75º ANIVERSÁRIO DO ESTABELECIMENTO
DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE A SANTA SÉ E CUBA

DISCURSO DE D. DOMINIQUE MAMBERTI,
SECRETÁRIO PARA AS RELAÇÕES COM OS ESTADOS

Havana- Cuba
Quarta-feira
, 16 de Junho de 2010

Introdução

O gentil convite para abrir os trabalhos desta Semana Social oferece-me a agradável ocasião de me encontrar convosco: Autoridades da República de Cuba, Embaixadores acreditados em Havana, Autoridades da Igreja católica em Cuba e fiéis leigos que participam nos trabalhos. A todos e a cada um dirijo a minha cordial saudação.

Penso depois de modo especial em vós, fiéis leigos aqui presentes, que representais os diversos e mais qualificados componentes da Igreja na Ilha. Um encontro como este tem entre as suas finalidades corroborar a vocação e a missão do laicado na Igreja e na sociedade. De facto, como recorda o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, as Semanas Sociais, que se realizam também noutros países do mundo "constituem um lugar qualificado de expressão e de crescimento dos fiéis leigos, capaz de promover, a alto nível, a sua contribuição específica para a renovação da ordem temporal" (n. 532).

Mas desejo sobretudo comunicar-vos a proximidade paterna do Papa e a afectuosa bênção que o Santo Padre Bento XVI me confiou para vós. Como ele escreveu há dois anos, "sabeis que podeis contar com a proximidade do Papa e com a sua fraterna oração e colaboração de outras Igrejas particulares espalhadas em todo o mundo" (Mensagem aos Bispos de Cuba por ocasião do décimo aniversário da visita de João Paulo II, 20 de Fevereiro de 2008). Estou certo de que a minha permanência em Cuba nestes dias poderá contribuir para fortalecer os vínculos de comunhão entre os Bispos e os fiéis das Dioceses cubanas com o Sucessor do Apóstolo Pedro, princípio e fundamento visível da unidade da Igreja católica.

Agradeço ao Episcopado cubano e aos organizadores desta Semana Social terem-me dado também a possibilidade de partilhar com todos vós algumas reflexões sobre o tema da laicidade do Estado. Trata-se de um assunto muito vasto e de grande actualidade, com o qual estão relacionadas muitas outras temáticas importantes. Além disso, este tema leva a tomar em consideração o percurso histórico plurissecular da comunidade humana e da Igreja católica. Nem se pode esquecer que não só nas diversas épocas da história, mas também nos vários países e áreas culturais a questão da laicidade do Estado se apresentou e se apresenta com conteúdos e modalidades diversas. Isto é suficiente para fazer compreender bem como seria ilusório pensar que se esgotasse o argumento no breve espaço de um discurso. Limitar-me-ei portanto a fazer algumas considerações que me parecem significativas para o contexto de uma Semana Social e que espero possam servir de estímulo para a vossa ulterior reflexão e, depois, para a vossa acção.

Laicidade e cristianismo

Deve frisar-se que, enquanto o termo "laicidade" tanto no passado como hoje se refere antes de tudo à realidade do Estado e assume com frequência uma tonalidade ou uma acepção de contraposição à Igreja e ao cristianismo, de facto não se falaria dele nem sequer sem o próprio cristianismo.

Isto é válido quer para a realidade em si quer para o próprio termo.

De facto, sem o Evangelho de Cristo a distinção fundamental entre o que o homem deve a Deus e o que deve a César, ou seja, à autoridade civil (cf. Lc 20, 25) não teria entrado na história da humanidade. Se pensamos no contexto histórico no qual se realizou a Encarnação do Filho de Deus, isto é, no império romano ou na própria comunidade de Israel, não se pode deixar de realçar como era distante da mentalidade comum da época a orientação nova que Jesus Cristo dá ao papel da autoridade do Estado em relação à consciência do homem, sobretudo no que se refere à sua busca e relação com o Transcendente. Por isso pode-se afirmar, como observou o Santo Padre Bento XVI, no encontro com os jornalistas durante o voo para a França em 12 de setembro de 2008 , que "a laicidade em si não está em contradição com a fé. Aliás, diria que é um fruto da fé, porque a fé cristã foi, desde o início, uma religião universal que portanto não se identifica com um Estado, presente em todos os Estados e diversa em cada Estado. Para os cristãos foi sempre claro que a religião e a fé não são políticas, mas outra esfera da vida humana... A política, o Estado não é uma religião mas uma realidade profana com uma missão específica... e devem estar abertas uma à outra".

Também o próprio termo "laicidade", que deriva de "laico", tem a sua primeira origem no âmbito eclesial. De facto, esta palavra "nascida como indicação da condição do simples fiel cristão, não pertence ao clero nem ao estado religioso" (Bento XVI, Discurso aos participantes no Congresso nacional promovido pela União dos Juristas católicos italianos, 9 de Dezembro de 2006). Também hoje na Igreja reconhecemos aquela bipartição fundamental criada pelo Sacramento da Ordem entre os baptizados, pela qual quantos receberam este Sacramento são clérigos e os demais são precisamente leigos; de ambos os estados provêm depois os que professam os três conselhos evangélicos nos Institutos de vida consagrada (cf. CDC, cân. 207). O leigo é portanto antes de tudo o "não-clérigo", mesmo se, obviamente, nisto não se esgota o conteúdo da vocação específica desta categoria de baptizados. Esta é a primeira acepção, totalmente intra-eclesial, da palavra "laicidade".

Também a sucessiva etapa da evolução do seu significado permanece no âmbito interno da Igreja. Neste novo significado a palavra já não designa uma categoria de fiéis, mas descreve o tipo de relação que se instaura entre as autoridades da Igreja e as civis: de facto, "durante a Idade Média revestiu o significado de oposição entre os poderes civis e as hierarquias eclesiásticas". Observemos bem que nesta época houve o confronto e contraste entre estas duas autoridades, mas sempre dentro de uma realidade social que se reconhecia totalmente cristã. "O "Regnum" (o Sacro império), inserido na "Ecclesia", marcado pela sacralidade, exerce um papel que não é só protecção; a Igreja, por sua vez, é chamada a tarefas também temporais e está fortemente inserida nas próprias estruturas do "Regnum"". (João Paulo II, Homilia durante a visita pastoral a Salerno, 26 de Maio de 1985, n. 3). Os soberanos, que reivindicavam uma não-sujeição ao Papa, e não por isto se consideravam fora da Igreja, queriam exercer um papel de controle e de organização da própria Igreja, mas não havia vontade alguma de separação dela ou de uma sua exclusão da sociedade.

É sobretudo a partir da Idade das Luzes e depois de modo dramático com a Revolução francesa que a palavra "laicidade" chega, ao contrário, a exprimir uma completa alteridade, aliás, uma oposição clara entre o âmbiro da vida civil, e o religioso e eclesial. Como realçou Bento XVI, "assumiu nos tempos modernos (o significado) de exclusão da religião e dos seus símbolos da vida pública mediante o seu limite ao âmbito privado e da consciência individual". E prossegue: "Verificou-se assim que ao termo laicidade foi atribuída uma acepção ideológica oposta à que tinha originalmente" (Ibid.).

Este rápido esboço sobre a evolução da palavra "laicidade" permite-nos observar que cada um dos significados assumidos nas etapas fundamentais deste desenvolvimento não foi superado nem anulado pela etapa sucessiva, mas permanece: de facto "laicidade" ainda hoje designa a condição eclesial dos baptizados que não são clérigos nem religiosos, a distinção entre a autoridade eclesial e civil, e a atitude que leva a excluir a dimensão religiosa do conjunto da vida social.

Além disso, podemos observar que estas três diversas acepções da palavra "laicidade" estão estreitamente unidas entre si e interdependentes, e isto será mais claro no final do nosso discurso.

Mas compreendemos sobretudo que, mesmo se a laicidade é hoje invocada e usada muitas vezes para impedir a vida e a actividade da Igreja, na sua realidade profunda e positiva ela não teria sequer existido sem o cristianismo. Foi quanto aconteceu também com os outros valores que hoje são considerados típicos da modernidade e com frequência invocados para criticar a Igreja ou, em geral, a religião, como o respeito da dignidade da pessoa, da liberdade, da igualdade, e assim por diante: são em grande parte fruto da influência profunda do Evangelho sobre as diversas culturas, mesmo se depois se separaram e até se opuseram às suas raízes cristãs.

Laicidade e liberdade religiosa

A esta primeira consideração de carácter bastante histórico gostaria de acrescentar uma segunda, que se situa muito no presente. Refiro-me ao facto de que em muitos ordenamentos estatais se afirma que a laicidade é um dos princípios fundamentais próprios, sobretudo, obviamente, no que diz respeito à relação do Estado com a dimensão religiosa do homem.

Podemos perguntar se é totalmente partilhável uma orientação que coloca em primeiro lugar a laicidade e, a partir dela, organiza a atitude que o Estado deve assumir em relação ao credo religioso dos seus cidadãos. A este propósito, não se pode esquecer que de facto, em nome deste conceito, por vezes são tomadas decisões ou emanadas normas que objectivamente prejudicam a prática pessoal e comunitária do direito fundamental de liberdade religiosa.

Se partirmos de um conceito adequado do direito de liberdade religiosa, que se funda na dignidade intangível da pessoa, devemos dizer que "a neutralidade, a laicidade ou a separação não podem ser os princípios que definem de modo fundamental a posição do Estado em relação à religião" (J. T. Martín de Agar, Liberdade religiosa, igualdade e laicidade, em "Ius Ecclesiae", (1995), págs. 199-215). Princípios como o da laicidade, "têm um valor prático puramente negativo, de não interferência... do Estado nas opções religiosas dos cidadãos; a liberdade religiosa, ao contrário, mesmo exprimindo-se antes de tudo como incompetência do Estado nestas opções, contudo exige dele uma actividade em vista de definir, tutelar e promover com justiça os conteúdos concretos, não da religião mas das suas manifestações que têm uma relevância social" (Ibid.). Portanto, a laicidade, a neutralidade ou a separação são em si insuficientes para definir de modo completo a atitude que o Estado deve assumir em relação ao credo dos seus cidadãos. Aliás, eles "devem servir como ulterior garantia da liberdade religiosa e se não se referem a ela deixam de ter sentido ou transformam-se em manifestação de estatismo" (Ibid.).

Podemos observar que a não-subordinação lógica e ontológica da laicidade ao respeito pleno pela liberdade religiosa constitui uma ameaça possível e também real para esta última. De facto, "quando se pretende subordinar a liberdade religiosa a qualquer outro princípio, então a laicidade tende a transformar-se em laicismo, a neutralidade em agnosticismo, a separação em hostilidade" (Ibid.). Neste caso, paradoxalmente o Estado tornar-se-ia um Estado confessional e já não autenticamente laico, porque faria da laicidade o seu valor supremo, a sua ideologia determinante, uma espécie de religião, talvez até com os seus ritos e liturgias civis. Um Estado que se considera laico não pode significar que pretende marginalizar ou rejeitar a dimensão religiosa ou a presença social das confissões religiosas. Ao contrário, deveria ser tarefa do Estado reconhecer o papel central da liberdade religiosa e promovê-lo de modo positivo. Precisamente em Cuba João Paulo II reafirmou que "o Estado, longe de qualquer fanatismo ou secularismo extremo, deve promover um clima social sereno e uma legislação adequada, que permita que cada pessoa e confissão religiosa viva livremente a própria fé, a exprima nos âmbitos da vida pública e possa contar com meios e espaços suficientes para oferecer à vida da Nação as próprias riquezas espirituais, morais e cívicas".

A este propósito deve ser reafirmada aquela que é a concepção plena do direito de liberdade religiosa. De facto, respeitá-lo não significa simplesmente não submeter à coacção ou permitir a adesão de fé pessoal interior. Retomando o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa, o Santo Padre Bento XVI durante a visita ao presidente da República italiana, a 20 de Abril de 2006, recordou que a "solicitude da comunidade civil em relação ao bem dos cidadãos não se pode limitar a algumas dimensões da pessoa, como a saúde física, o bem-estar económico, a formação intelectual ou as relações sociais. O homem apresenta-se perante o Estado também com a sua dimensão religiosa, que "consiste antes de tudo em actos internos voluntários e livres, com os quais o ser humano se dirige imediatamente a Deus" (cf. Dignitatis humanae, 3)". Isto comporta que o Estado não procure, antes de tudo, impedir este movimento da pessoa para o seu Criador: "Tais actos não podem ser condenados, nem proibidos pela autoridade humana, a qual, ao contrário, é obrigada a respeitar e promover esta dimensão: ... ninguém pode ser obrigado "a agir contra a sua consciência" nem se pode "impedir-lhe que aja em conformidade com ela, sobretudo em campo religioso"" (Ibid., 16). Se o respeito do acto pessoal de fé é fundamental, ele contudo não esgota a aptidão do Estado para a dimensão religiosa, porque ela, como a pessoa humana, precisa de se exteriorizar no mundo e ser vivida não só pessoal, mas também comunitariamente. "Contudo, seria redutivo prossegue o Santo Padre considerar que é suficientemente garantido o direito de liberdade religiosa, quando não se faz violência ou não se intervém sobre as convicções pessoais ou se limita a respeitar a manifestação da fé que se realiza no âmbito do lugar de culto. De facto, não se pode esquecer que a "própria natureza social do ser humano exige que ele exprima externamente os actos internos de religião de modo comunitário" (Ibid.). A liberdade religiosa é por conseguinte um direito não só do indivíduo, mas também da família, dos grupos religiosos e da própria Igreja (cf. Dignitatis humanae, 4-5.13) e a prática deste direito tem uma influência sobre os numerosos âmbitos e situações nas quais o crente vive e trabalha" (Ibid.).

Trata-se por conseguinte, de coordenar rectamente laicidade e liberdade religiosa, colhendo a primeira como um meio importante, mas não completo para respeitar a segunda, a qual, por sua vez, deve ser colhida em todas as suas dimensões, sem reduções, que no final se traduzem numa sua negação.

Permiti que eu abra um breve parênteses. Um discurso análogo ao do princípio de laicidade em relação ao direito de liberdade religiosa poder-se-ia fazer a propósito da relação entre o princípio de igualdade e tal liberdade. Não se pode em nome de uma igualdade teórica, que não tem em consideração as diversas realidades, igualar entre si todas as situações jurídicas, sem ter em consideração as suas diferenças de facto. Com efeito, "tratar... da mesma maneira relações jurídicas desiguais é tanto injusto quanto tratar de modo desigual relações jurídicas iguais" (F. Ruffini, Libertà religiosa e separazione tra Chiesa e Stato, em Scritti dedicati a G. Chiodini, Turim 1975, p. 272). Também no que diz respeito ao direito à liberdade religiosa, justiça não é dar a todos o mesmo, mas a cada um o que lhe compete. É contra o princípio de igualdade quer discriminar ou privilegiar, quer uniformizar e impedir aquele pluralismo, que de facto existe entre as confissões religiosas nas suas manifestações vitais na sociedade.

Que exige dos cristãos a laicidade?

Normalmente, quando se trata o tema da laicidade, a atenção concentra-se sobre o que ela comporta para o Estado, para as suas autoridades, para os seus organismos e para as suas normas. Contudo, não devemos esquecer que o respeito daquela que já Pio XII definiu a "legítima e sadia laicidade", (Discurso, 23 de Março de 1958), isto é, segundo quanto dissemos, da laicidade que serve para tutelar e promover a liberdade religiosa, interpela também os crentes. Na presente circunstância da Semana Social considero oportuno deter-me um pouco mais amplamente sobre este aspecto.

Legítima autonomia do Estado

Antes de mais, o respeito do princípio de laicidade exige que os católicos reconheçam a justa autonomia das realidades temporais, entre as quais se insere também a comunidade política. Trata-se de uma doutrina exposta na Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II, segundo a qual "as realidades temporais se regem segundo as normas próprias, sem contudo excluir aquelas referências éticas que encontram o seu fundamento último na religião. A autonomia da esfera temporal não exclui uma íntima harmonia com as exigências superiores e complexas derivantes de uma visão integral do homem e do seu destino" (Bento XVI, Discurso por ocasião da visita ao presidente da República italiana, 24 de Junho de 2005). Uma das "normas próprias" daquela realidade temporal que é o Estado é precisamente a laicidade que, contudo, deve ser sempre compreendida e praticada à luz de uma visão integral da pessoa humana, precisamente da qual descendem claras exigências éticas.

Isto dá origem a que para os crentes "a promoção segundo consciência do bem comum da sociedade política como afirma um documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o empenho e o comportamento dos católicos na vida política nada tem a ver com o "confessionalismo" ou com a intolerância religiosa" (Nota doutrinal sobre algumas questões relativas ao compromisso e ao comportamento dos católicos na vida política, n. 6). Estas últimas modalidades de pensamento e de acção não só são incompatíveis com a justa laicidade, mas correm o risco de ser uma ameaça também para a própria liberdade religiosa. João Paulo II admoestou a este propósito que "identificar a lei religiosa com a civil pode efectivamente sufocar a liberdade religiosa e até limitar ou negar outros direitos humanos inalienáveis" (Mensagem para a celebração do Dia Mundial da Paz de 1991, 4). Por conseguinte, podemos dizer que a laicidade exige antes de tudo, do crente e da comunidade de fé, em negativo que evite qualquer tipo de confusão entre as esferas religiosa e política.

Ordem justa e purificação da razão

Mas, como dissemos, o respeito da autonomia da realidade temporal "Estado", na visão cristã, não significa uma autonomia ética, portanto ele estaria separado e seria independente de qualquer norma moral. A história testemunha infelizmente com abundância de exemplos as consequências nefastas de formas de governo e de Estado que se consideraram superiores às leis e aos valores morais, ou seja, que não perseguiram a justiça, que é respeito dos direitos de todos e de cada um. "Uma atenção não adequada à dimensão moral leva à desumanização da vida associada e das instituições sociais e políticas, consolidando as "estruturas de pecado"" (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 566).

Mas onde encontra o Estado as instâncias éticas às quais fazer referência? Como poderá orientar-se para construir uma ordem justa? Retomando a visão católica sobre as relações entre fé e razão, Bento XVI na encíclica Deus caritas est afirma que a razão humana é em si capaz de reconhecer as instâncias morais de referência, mas por outro lado, se for deixada unicamente às suas capacidades, isto torna-se-lhe bastante difícil: "A razão deve ser continuamente purificada, porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado" (n. 28). Portanto, por um lado, a nível do uso recto da razão os cristãos podem encontrar amplas convergências também com os pertencentes às outras religiões e com todos os homens de boa vontade, para se comprometerem a favor da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, a presença dos cristãos na sociedade é um fermento que mantém elevada a tensão da sociedade para perseguir o autêntico bem comum. Enquadra-se aqui, por exemplo, a obra de formação por parte da Igreja sobretudo em relação aos jovens.

Em concreto esta purificação da razão humana, que é o serviço que a Igreja e os seus membros oferecem à sociedade, verifica-se através da proposta da sua doutrina social. De facto, "a doutrina social da Igreja argumenta a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir do que está em conformidade com a natureza de cada ser humano", e pretende "servir a formação da consciência na política e contribuir para que cresça a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, ao mesmo tempo, a disponibilidade para agir com base nelas, mesmo quando isto está em contraste com a situação de interesse pessoal (Ibid.).

Por conseguinte, são totalmente subjectivas as recorrentes acusações de ingerência que hoje são com frequência feitas, quando os Pastores da Igreja recordam aos fiéis e a todos os homens de boa vontade aqueles "valores e princípios antropológicos e éticos radicados na natureza do ser humano, reconhecíveis também através do uso recto da razão" (Bento XVI, Discurso na visita do Presidente da República italiana, 20 de Novembro de 2006). Como recorda o Santo Padre, "A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar" (Deus caritas est, 28).

A missão dos fiéis leigos

No Corpo místico de Cristo, que é a Igreja, os diversos membros têm vocações e missões diversas na mesma Igreja e na sociedade, e isto é válido também em relação à realização de quanto a laicidade do Estado exige dos cristãos. Assim, compete ao Magistério um papel diverso do que cabe aos leigos: enquanto os Pastores da Igreja devem iluminar as consciências com o ensinamento, Bento XVI na Encíclica sobre a caridade afirma que "a tarefa imediata de trabalhar por uma justa ordem na sociedade é ... própria dos fiéis leigos", que o fazem "cooperando com os outros cidadãos" (cf. Ibid., 29).

Isto é uma consequência do específico da vocação laica, que o Concílio Vaticano II indicou no "carácter secular": "Aos leigos compete, por vocação própria, buscar o Reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, no meio de todas e cada uma das actividades e profissões, e nas circunstâncias ordinárias da vida familiar e social, as quais como que tecem a sua existência. Aí os chama Deus a contribuírem do interior, à maneira de fermento, para a santificação do mundo, através do cumprimento do próprio dever, guiados pelo espírito evangélico, e a manifestarem Cristo aos outros, antes de mais com o testemunho da vida e com o fulgor da sua fé, esperança e caridade. A eles compete muito especialmente esclarecer e ordenar todas as coisas temporais, com que estão intimamente comprometidos, de tal maneira que sempre se realizem segundo o espírito de Cristo, se desenvolvam e louvem o Criador e o Redentor"(Const.dogm.Lumen gentium, 31).

Portanto, a dos leigos é uma missão de compromisso, testemunho, diálogo, animação dentro da sociedade e das suas articulações e em contacto com todos os outros cidadãos. Recordou-o João Paulo II aos jovens cubanos durante a sua memorável visita a esta Ilha: "Não existe compromisso autêntico com a Pátria sem o desempenho dos próprios deveres e obrigações na família, na universidade, na fábrica ou nos campos, no mundo da cultura e no desporto, nos diversos âmbitos em que a Nação se torna realidade e a sociedade civil forja a progressiva criatividade da pessoa humana. Não pode haver compromisso na fé sem uma presença activa e audaciosa em todos os ambientes da sociedade nos quais se encarnam Cristo e a Igreja" (Mensagem aos jovens de Cuba, 23 de Janeiro de 1998, n. 4).

É uma missão, a que espera os fiéis leigos, que exige estar fundada numa profunda vida espiritual e numa sólida formação doutrinal, sobretudo no que diz respeito à Doutrina Social da Igreja, e não menos na aquisição de todas as competências que o próprio papel, posição e profissão exigem.

Conclusão

Com estas considerações sobre a vocação laica voltamos à primeira, à acepção originária, totalmente intra-eclesial, da palavra "laico/laicidade", acima citada. E, parece-me que agora pode ser ainda mais claro como este significado de "laicidade" está em si relacionado com os outros dois que a palavra assumiu ao longo da história bimilenar da Igreja na sua relação com a sociedade: laicidade do Estado que, longe de ser marginalização da dimensão religiosa e da comunidade dos crentes da vida social em todos os seus componentes (laicidade no sentido de laicismo), se torna respeito e colaboração entre a comunidade civil e eclesial para o verdadeiro bem do homem e da família humana (laicidade sadia ou laicidade positiva).

Em linhas gerais, eis traçados os aspectos gerais da visão cristã do tema da laicidade do Estado. Como já disse, na vida de cada comunidade estatal eles devem encontrar uma actuação correspondente à história, à cultura, ao ordenamento do país e, sobretudo, devem ser concretizados quotidianamente.

Por isso, resta-me apenas confiar estas minhas considerações fragmentárias à reflexão desta Semana Social, que entra no vivo dos seus trabalhos e à qual desejo que ofereça sobre questões tão importantes impulsos positivos para o compromisso da Igreja em Cuba. Obrigado!

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