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COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL

O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES

(1997)

 

 

NOTA PRELIMINAR

O estudo do tema O cristianismo e as religiões foi proposto pela grande maioria dos membros da Comissão Teológica Internacional. Para a preparação deste estudo, constituiu-se uma subcomissão composta de S. Exa. D. Norberto Strotmann, MSC, e dos Revmos. Pes. Barthélemy Adoukonou; Jean Corbon; Mário de França Miranda, SJ; Ivan Golub; Tadahiko Iwashima, SJ; Luis F. Ladaria, SJ (presidente); Hermann J. Pottmeyer e Andrzej Szostek, MIC. As discussões gerais sobre o tema desenvolveram-se em numerosos encontros da subcomissão e durante as sessões plenárias da própria Comissão Teológica Internacional, realizadas em Roma em 1993, 1994 e 1995. O presente texto foi aprovado em forma específica, com o voto da Comissão, no dia 30 de setembro de 1996 e submetido a seu presidente, o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que aprovou a publicação.


INTRODUÇÃO

1. A questão das relações entre as religiões adquire cada dia maior importância, o que se deve a vários fatores. Antes de tudo, tem-se a crescente interdependência entre as diversas partes do mundo, que se manifesta em diversos planos: um número sempre maior de pessoas na maioria dos países tem acesso à informação; as migrações estão longe de ser lembrança do passado; a tecnologia e a indústria modernas provocaram intercâmbios até agora desconhecidos entre muitos países. E claro que esses fatores afetam de maneira diversa os diferentes continentes e nações; no entanto, em uma ou outra medida nenhuma parte do mundo está isenta de sua influência.

2. Tais fatores de comunicação e interdependência entre os diversos povos e culturas provocaram maior consciência da pluralidade das religiões do planeta, com os perigos e, ao mesmo tempo, as oportunidades que isso acarreta. Apesar da secularização, a religiosidade não desapareceu dos homens de nosso tempo. São conhecidos os diversos fenômenos nos quais essa religiosidade se manifesta, apesar da crise que em diversa medida afeta as grandes religiões. A importância do religioso na vida humana e os crescentes encontros entre os homens e as culturas tornam necessário o diálogo inter-religioso, em vista dos problemas e necessidades que afetam a humanidade, para o esclarecimento do sentido da vida e para uma ação comum em favor da paz e da justiça no mundo. O cristianismo, de fato, não fica nem pode ficar à margem desse encontro e conseqüente diálogo entre as religiões. Se, às vezes, estas foram e podem ainda ser fatores de divisão e conflito entre os povos, é de desejar que em nosso mundo apareçam ante os olhos de todos como elementos de paz e união. O cristianismo há de contribuir para que isso seja possível.

3. Para que esse diálogo possa ser frutífero, é preciso que o cristianismo, e concretamente a Igreja católica, procure esclarecer como avalia do ponto de vista teológico as religiões. Dessa valorização dependerá em grande medida a relação dos cristãos com as diversas religiões e seus adeptos, e o conseqüente diálogo estabelecido com elas. As reflexões que seguem têm como objeto principal a elaboração de alguns princípios teológicos que auxiliem essa valorização - propostos, porém, com a clara consciência de que existem muitas questões ainda abertas que requerem ulterior investigação e discussão. Antes de passar à exposição desses princípios, julgamos necessário traçar as linhas fundamentais do debate teológico atual. A partir dele poder-se-á entender melhor as propostas formuladas a seguir.

I. TEOLOGIA DAS RELIGIÕES (status quaestionis)

1.1. Objeto, método e finalidade

4. A teologia das religiões ainda não apresenta um estatuto epistemológico bem definido — e esta é uma das razões determinantes da atual discussão. Na teologia anterior ao Vaticano II, constatam-se duas linhas de pensamento em relação com o problema do valor salvífico das religiões. Uma, representada por Jean Daniélou, Henri de Lubac e outros, considera que as religiões se fundam na aliança com Noé, aliança cósmica que comporta a revelação de Deus na natureza e na consciência, diversa da aliança com Abraão. Enquanto mantêm os conteúdos dessa aliança cósmica, as religiões contêm valores positivos; porém, como tais, não têm valor salvífico. São "marcos de espera" (pierres d’attenté), mas também "de tropeço" (pierres d’achoppement), devido ao pecado. De si vão do homem a Deus. Só em Cristo e em sua Igreja alcançam seu cumprimento último e definitivo. A outra linha, representada por Karl Rahner, afirma que a oferta da graça, na ordem atual, alcança todos os homens, e que estes têm certa consciência, não necessariamente reflexa, de sua ação e de sua luz. Dada a característica de socialidade própria do ser humano, as religiões, enquanto expressões sociais da relação do homem com Deus, ajudam seus adeptos a acolher a graça de Cristo (fides implicita) necessária para a salvação, e a se abrirem assim para o amor do próximo que Jesus identificou com o amor de Deus. Podem ter, nesse sentido, valor salvífico, embora contenham elementos de ignorância, de pecado e de perversão.

5. Atualmente ganha força a exigência de ura maior conhecimento de cada religião antes de se poder elaborar uma teologia. Uma vez que em cada tradição religiosa se encontram elementos de origem e alcance bem diversos a reflexão teológica deve limitar-se a considerar fenômenos concretos e bem definidos, para evitar juízos globais e apriorísticos. Desse modo, alguns defendem uma teologia da história das religiões; outros levam em consideração a evolução histórica das religiões, suas respectivas especificidades, às vezes incompatíveis entre si; outros reconhecem a importância do material fenomenológico e histórico, sem contudo invalidar o método dedutivo; outros, ainda, se negam a dar um reconhecimento positivo global das religiões.

6. Numa época em que se aprecia o diálogo, a compreensão mútua e a tolerância, é natural surgir tentativas de elaborar uma teologia das religiões a partir de critérios aceitos por todos, isto é, que não sejam exclusivos de determinada tradição religiosa. Por isso, nem sempre se distinguem claramente as condições para o diálogo inter-religioso e os pressupostos básicos de uma teologia cristã das religiões. Para fugir dos dogmatismos procuram-se padrões exteriores, que permitam avaliar a verdade de uma religião. Os esforços realizados nessa direção não chegam a convencer. Se a teologia é fides quaerens intellectum, não se vê como se pode abandonar o "princípio dogmático" ou refletir teologicamente prescindindo das próprias fontes.

7. Perante essa situação, uma teologia cristã das religiões tem diante de si diversas tarefas. Em primeiro lugar, o cristianismo deverá procurar compreender-se e avaliar-se a si mesmo no contexto de Uma pluralidade de religiões; considerar concretamente a verdade e a universalidade reivindicadas por ele. Em segundo lugar, deverá buscar o sentido, a função e o valor próprio das religiões na totalidade da história da salvação. Finalmente, a teologia cristã deverá estudar e examinar as religiões concretas, com seus conteúdos bem definidos, que deverão ser confrontados com os conteúdos da fé cristã. Para tanto é necessário estabelecer critérios que permitam uma discussão crítica desse material e uma hermenêutica que o interprete.

1.2. A discussão sobre o valor salvífico das religiões

8. A questão de fundo é a seguinte: as religiões são mediação de salvação para seus membros? A essa pergunta há os que respondem negativamente; mais ainda, alguns nem sequer vêem sentido em que ela seja levantada. Outros dão uma resposta afirmativa que, por sua vez, provoca outras perguntas: as mediações salvíficas são autônomas ou é a salvação de Jesus Cristo que nelas se realiza? Trata-se, portanto, de definir o estatuto do cristianismo e das religiões como realidades socioculturais em relação com a salvação do homem. Não se deve confundir essa questão com a da salvação dos indivíduos, cristãos ou não. Nem sempre se levou devidamente em conta essa distinção.

9. Tentou-se classificar de muitas maneiras as diferentes posições teológicas diante desse problema. Vejamos algumas dessas classificações: Cristo contra as religiões, nas religiões, acima das religiões, junto às religiões. Universo eclesiocêntrico ou cristologia exclusiva; universo cristocêntrico ou cristologia inclusiva; universo teocêntrico com uma cristologia normativa; universo teocêntrico com uma cristologia não-normativa. Alguns teólogos adotam a divisão tripartite exclusivismo, inclusivismo, pluralismo, que se apresenta como paralela a outra: eclesiocentrismo, cristocentrismo, teocentrismo. Como temos de escolher uma dessas classificações para prosseguir nossa reflexão, ficaremos com esta última, mas a completaremos com as outras caso necessário.

10. O eclesiocentrismo exclusivista, fruto de determinado sistema teológico, ou de uma compreensão errada da frase "extra Ecclesiam nulla salus", já não é defendido pelos teólogos católicos depois das claras afirmações de Pio XII e do concílio Vaticano II sobre a possibilidade de salvação para os que não pertencem visivelmente à Igreja (cf. por exemplo LG 16; GS 22).

11. O cristocentrismoaceita que a salvação possa acontecer nas religiões, porém lhes nega uma autonomia salvífica devido à unicidade e universalidade da salvação de Jesus Cristo. Essa posição é sem dúvida a mais comum entre os teólogos católicos, embora haja diferenças entre eles. Procura conciliar a vontade salvífíca universal de Deus com o fato de que todo homem se realiza como tal dentro de uma tradição cultural, que tem na respectiva religião sua expressão mais elevada e sua fundamentação última.

12. O teocentrismo pretende ser uma superação do cristocentrismo, uma mudança de paradigma, uma revolução copernicana. Tal posição brota, entre outras razões, de certa má consciência devida à união da ação missionária do passado com a política colonial, embora olvidando às vezes o heroísmo que acompanhou a ação evangelizadora. Trata de reconhecer as riquezas das religiões e o testemunho moral de seus membros e, em última instância, pretende facilitar a união de todas as religiões para um trabalho conjunto pela paz e pela justiça no mundo. Podemos distinguir um teocentrismo em que Jesus Cristo, sem ser constitutivo, se considera normativo da salvação, e outro em que nem sequer se reconhece a Jesus Cristo tal valor normativo. No primeiro caso, sem negar que outros possam também mediar a salvação, reconhece-se em Jesus Cristo o mediador que melhor a exprime; o amor de Deus revela-se mais claramente em sua pessoa e em sua obra, e assim ele é o paradigma para os outros mediadores. Porém, sem ele não ficaríamos sem salvação, mas tão-só sem sua manifestação mais perfeita. No segundo caso, Jesus Cristo não é considerado nem como constitutivo nem como normativo para a salvação do homem. Deus é transcendente e incompreensível, de modo que não podemos julgar seus desígnios por nossos padrões humanos. Tampouco podemos avaliar ou comparar os diversos sistemas religiosos. O "soteriocentrismo" radicaliza ainda mais a posição teocêntrica, pois tem menos interesse na questão sobre Jesus Cristo (ortodoxia) e mais no compromisso efetivo de cada religião com a humanidade que sofre (ortopráxis). Desse modo, o valor das religiões está em promover o Reino, a salvação, o bem-estar da humanidade. Tal posição pode caracterizar-se, assim, como pragmática e imanentista.

1.3. A questão da verdade

13. A toda essa discussão está subjacente o problema da verdade das religiões, relegado atualmente a um segundo plano e desligado da reflexão sobre o valor salvífico. A questão da verdade acarreta sérios problemas de ordem teórica e prática, uma vez que, no passado, teve conseqüências negativas no encontro entre as religiões. Daí a tendência a diminuir ou a privatizar esse problema, com a afirmação de que os critérios de verdade só valem para a respectiva religião. Alguns introduzem uma noção mais existencial da verdade, considerando apenas a conduta moral correta da pessoa e subestimando o fato de que suas crenças possam ser condenadas. Cria-se certa confusão entre "estar na salvação" e "estar na verdade". Seria necessário pensar mais na perspectiva cristã da salvação como verdade e do estar na verdade como salvação. A omissão do discurso sobre a verdade traz consigo a equiparação superficial de todas as religiões, esvaziando-as, no fundo, de seu potencial salvífico. Afirmar que todas são verdadeiras equivale a declarar que todas são falsas. Sacrificar a questão da verdade é incompatível com a visão cristã.

14. A concepção epistemológica subjacente à posição pluralista utiliza a distinção de Kant entre noumenon e phenomenon. Sendo Deus, ou a Realidade última, transcendente e inacessível ao homem, só poderá ser experimentado como fenômeno, expresso por imagens e noções condicionadas culturalmente; isso explica que representações diversas da mesma realidade não necessitem, a priori, excluir-se reciprocamente. A questão da verdade se relativiza ainda mais com a introdução do conceito de verdade mitológica, que não implica adequação a uma realidade, mas simplesmente desperta no sujeito uma disposição adequada ao enunciado. Entretanto, é preciso observar que expressões tão contrastantes do noumenon acabam de fato por dissolvê-lo, esvaziando o sentido da verdade mitológica. Está também subjacente uma concepção que separa radicalmente o Transcendente, o Mistério, o Absoluto, de suas representações; sendo todas elas relativas, porque imperfeitas e inadequadas, não podem reivindicar exclusividade na questão da verdade.

15. A busca de um critério para a verdade de uma religião que, para ser aceito pelas outras religiões, deve situar-se fora dessa mesma religião é tarefa séria para a reflexão teológica. Certos teólogos evitam termos cristãos para falar de Deus (preferindo, por exemplo, Eternal One, Ultimate Reality, Real) ou para designar a. conduta correta (Reality-centredness, e não Self-centredness). Nota-se, contudo, que tais expressões ou manifestam uma dependência de determinada tradição (cristã) ou se tornam tão abstratas que deixam de ser úteis. O recurso ao humanum não convence por se tratar de um critério meramente fenomenológico, que faria a teologia das religiões dependente da antropologia dominante na época. Além disso, é preciso considerar como religião verdadeira aquela que consiga melhor seja conciliar a finitude, a provisionalidade e a mutalidade de sua autocompreensão com a i.nflnitude para que aponta, seja reduzir à unidade (força integradora) a pluralidade de experiências da realidade e das concepções religiosas.

1.4. A questão de Deus

16. A posição pluralista pretende eliminar do cristianismo qualquer pretensão de exclusividade ou superioridade com relação às outras religiões. Para tanto, deve afirmar que a realidade última das diversas religiões é idêntica e, ao mesmo tempo, relativizar a concepção cristã de Deus no que ela tem de dogmático e vinculante. Desse modo, distingue Deus em si mesmo, inacessível ao homem, de Deus manifestado na experiência humana. As imagens de Deus são constituídas pela experiência da transcendência e pelo respectivo contexto sociocultural. Não são Deus, mas apontam corretamente para ele; isso pode ser dito também das representações não-pessoais da divindade. Como conseqüência, nenhuma delas pode se considerar exclusiva. Daí se segue que todas as religiões são relativas, não enquanto apontam para o Absoluto, mas em suas expressões e em seus silêncios. Visto que existe um único Deus e um mesmo plano salvífico para a humanidade, as expressões religiosas estão ordenadas umas às outras e são complementares entre si. Sendo o Mistério universalmente ativo e presente, nenhuma de suas manifestações pode pretender ser a última e definitiva. Assim, a questão de Deus se acha em íntima conexão com a da revelação.

17. Também relacionado com a mesma questão está o fenômeno da oração, que se encontra nas diversas religiões. Em suma, é o mesmo destinatário que se invoca sob nomes diferentes nas orações dos fiéis? Divindades e poderes religiosos, forças personificadas da natureza, da vida e da sociedade, projeções psíquicas ou míticas representam todas elas a mesma realidade? Não se dá aqui um passo indevido de uma atitude subjetiva a um juízo objetivo? Pode haver uma oração politeísta que se dirija ao verdadeiro Deus, já que um ato salvífico pode se dar por meio de uma mediação errônea. Isso não significa, porém, o reconhecimento objetivo dessa mediação religiosa como mediação salvífica, ainda que essa oração autêntica seja suscitada pelo Espírito Santo (Diálogo e Anúncio, 27).

1.5. O debate cristológico

18. Por detrás da problemática teológica, que acabamos de ver, sempre esteve presente a questão cristológica, de que tratamos agora. Ambas estão intimamente conexas. Mas as consideramos separadamente devido à complexidade do problema. A dificuldade maior do cristianismo sempre se focalizou na "encarnação de Deus", que confere à pessoa e à ação de Jesus Cristo as características de unicidade e universalidade em ordem à salvação da humanidade. Como pode um acontecimento particular e histórico ter pretensão universal? Como entrar em um diálogo inter-religioso respeitando todas as religiões e sem considerá-las de antemão como imperfeitas e inferiores, se reconhecemos em Jesus Cristo e só nele o Salvador único e universal da humanidade? Não se poderia conceber a pessoa e a ação salvífica de Deus a partir de outros mediadores além de Jesus Cristo?

19. O problema cristológico está essencialmente vinculado com o do valor salvífico das religiões a que já nos referimos. Centramo-nos aqui um pouco mais no estudo das conseqüências cristológicas das posições teocêntricas. Uma delas é o chamado "teocentrismo salvíflco", que aceita um pluralismo de mediações salvíficas legítimas e verdadeiras. Dentro dessa posição, como já observávamos, um grupo de teólogos atribui a Jesus Cristo um valor normativo, visto que sua pessoa e sua vida revelam, do modo mais claro e decisivo, o amor de Deus aos homens. A maior dificuldade dessa concepção está em que não oferece, nem para dentro nem para fora do cristianismo, uma fundamentação dessa normatividade atribuída a Jesus.

20.Outro grupo de teólogos defende um teocentrismo salvífico com uma cristologia não-normativa. Desvincular a Cristo de Deus priva o cristianismo de qualquer pretensão universalista da salvação (e assim se possibilita o diálogo autêntico com as religiões), mas implica ter de se enfrentar com a fé da Igreja, especialmente com o dogma de Calcedônia. Estes teólogos consideram que este último é uma expressão historicamente condicionada pela filosofia grega, que deve ser atualizada porque impede o diálogo inter-religioso. A encarnação seria uma expressão não objetiva, mas metafórica, poética, mitológica. Pretende apenas significar o amor de Deus que se encarna em homens e mulheres cujas vidas refletem a ação de Deus. As afirmações da exclusividade salvífica de Jesus Cristo podem se explicar pelo contexto histórico-cultural: cultura clássica (só uma verdade certa e imutável), mentalidade escatológico-apocalíptica (profeta final, revelação definitiva) e atitude de uma minoria (linguagem de sobrevivências, um único salvador).

21. A conseqüência mais importante dessa concepção é que Jesus Cristo não pode ser considerado o único e exclusivo mediador. Só para os cristãos é a forma humana de Deus, que possibilita adequadamente o encontro do homem com Deus, embora sem exclusividade. E totus Deus, porque é o amor ativo de Deus nesta terra, porém não totum Dei, pois não esgota em si o amor de Deus. Poderíamos dizer também: totum Verbum, sed non totum Verbi. Sendo maior que Jesus, o Logospode se encarnar também nos fundadores de outras religiões.

22. Essa mesma problemática reaparece quando se afirma que Jesus é Cristo, mas Cristo é mais que Jesus. Isso facilita sobre maneira a universalização da ação do Logos nas religiões. Porém, os textos neotestamentários não concebem o Logos de Deus prescindindo de Jesus. Outro modo de argumentar nessa mesma linha consiste em atribuir ao Espírito Santo a ação salvífica universal de Deus, que não conduziria necessariamente à fé em Jesus Cristo.

1.6. Missão e diálogo inter-religioso

23. As diferentes posições ante as religiões provocam compreensões diversificadas com relação à atividade missionáriada Igreja e com relação ao diálogo inter-religioso. Se as religiões são sem mais caminhos para a salvação (posição pluralista), então a conversão deixa de ser o objetivo primeiro da missão, uma vez que o importante é que cada um, animado pelo testemunho dos outros, viva profundamente sua própria fé.

24. A posição inclusivista já não considera a missão como tarefa para impedir a condenação dos não-evangelizados (posição exclusivista). Inclusive reconhecendo a ação universal do Espírito Santo, observa que esta, na economia salvífica querida por Deus, possui uma dinâmica encarnatória que a leva a se expressar e a se objetivar. Dessa maneira a proclamação da palavra conduz essa mesma dinâmica à sua plenitude. Não significa apenas unia tematização da transcendência, mas a maior realização dessa mesma transcendência, ao pôr o homem diante de uma decisão radical. O anúncio e a aceitação explícita da fé faz crescer as possibilidades de salvação e também a responsabilidade pessoal. Além disso, a missão é atualmente considerada como tarefa dirigida não só aos indivíduos, mas sobretudo aos povos e às culturas.

25. O diálogo inter-religioso se fundamenta teologicamente seja na origem comum de todos os seres humanos criados à imagem de Deus, seja no destino comum que é a plenitude da vida em Deus, seja no único plano salvífico divino por intermédio de Jesus Cristo, seja na presença ativa do Espírito divino entre os adeptos de outras tradições religiosas (Diálogo e Anúncio, 28). A presença do Espírito não se dá do mesmo modo na tradição bíblica e nas outras religiões, porque Jesus Cristo é a plenitude da revelação. No entanto, experiências e percepções, expressões e compreensões diversas, provenientes talvez do mesmo "acontecimento transcendental", valorizam sobremaneira o diálogo inter-religioso. Exatamente por meio dele pode-se desenvolver o próprio processo de interpretação e compreensão da ação salvífica de Deus.

26. "Uma fé que não se fez cultura é uma fé que não foi plenamente recebida, não foi inteiramente pensada, não foi fielmente vivida." Essas palavras de João Paulo II em uma carta ao cardeal secretário de Estado (20 de maio de 1982) tornam clara a importância da inculturação da fé. Constata-se que a religião é o coração de toda cultura, como instância de sentido último e força estruturante fundamental. Desse modo, a inculturação da fé não pode prescindir do encontro comas religiões, que deveria se dar sobretudo por meio do diálogo inter-religioso1.

II. PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS FUNDAMENTAIS

27. O precedente status quaestionis mostrou como as diferentes aproximações à teologia das religiões e ao valor salvífico dessas religiões dependem em grande medida do que se pense sobre a vontade salvífica universal de Deus Pai, a quem o Novo Testamento atribui a iniciativa da salvação, a única mediação de Cristo, a universalidade da ação do Espírito Santo e sua relação com Jesus, a função da Igreja como sacramento universal de salvação. A resposta às perguntas levantadas requer uma breve reflexão sobre essas questões teológicas fundamentais.

II. 1. A iniciativa do Pai na salvação

28. Somente à luz do desígnio divino de salvação dos homens, que não conhece fronteiras de povos nem raças, tem sentido tratar o problema da teologia das religiões. O Deus que quer salvar a todos é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. O desígnio de salvação em Cristo precede à criação do mundo (cf. Ef 1,3-10) e realiza-se com o envio do Filho ao mundo, prova do amor infinito e da ternura que o Pai tem pela humanidade (cf. Jo 3,16-17; l Jo 4,9-10 etc). Esse amor de Deus chega até a "entrega" de Cristo à morte pela salvação dos homens e para a reconciliação do mundo (cf. Rm 5,8-11; 8,3.32; 2 Cor 5,18-19 etc). A paternidade de Deus, que em geral no Novo Testamento se relaciona com a fé em Jesus, abre-se a perspectivas mais amplas em algumas passagens (cf. Ef 3,14-15; 4,6). Deus o é dos judeus e dos gentios (cf. Rm 3,29). A salvação de Deus, que é Jesus, se apresenta a todas as nações (cf. Lc 2,30; 3,6; At 28,28).

29. A iniciativa do Pai na salvação é afirmada em 1 João 4,14: "O Pai enviou seu Filho como salvador do mundo". Deus, "o Pai, de quem tudo procede" (1 Cor 8,6), é a origem da obra de salvarão realizada por Cristo. O título de "Salvador", com o qual Cristo é freqüentemente nomeado (cf. Lc 2,11; Jo 4,42; At 5,31 etc), é dado com prioridade a Deus em alguns escritos do Novo Testamento (cf. 1 Tm 1,1; 2,3; 4,10; Tt 1,3; 2,10; 3,4; Jd 25), sem que por isso se o exclua de Cristo (cf. Tt 1,4; 2,13; 3,6). Segundo 1 Timóteo 2,3-4, "Deus, nosso Salvador (...), quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade". A vontade salvífica não conhece restrições, mas vai unida ao desejo de que os homens conheçam a verdade, ou seja, adiram à fé (cf. 1 Tm 4,10, Deus é "Salvador de todos os homens, mormente dos crentes"). Essa vontade de salvação tem portanto, como conseqüência, a necessidade do anúncio. Ademais, está ligada à única mediação de Cristo (cf. L Tm 2,5-6), à qual nos referiremos a seguir.

30. Deus Pai é ao mesmo tempo o termo para o qual tudo caminha. O fim último da ação criadora e salvadora se realizará quando todas as coisas tiverem sido submetidas ao Filho; "então o próprio Filho será submetido Aquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos" (1 Cor 15,28).

31. O Antigo Testamento já conhece alguma prefiguração dessa universalidade que só em Cristo se revelará plenamente. Todos os homens, sem exceção, foram criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn l,26s; 9,6); dado que no Novo Testamento a imagem de Deus é Cristo (2Cor 4,4; Cl 1,15), pode-se pensar em uma determinação de todos os homens rumo a Cristo. A aliança de Deus com Noé abraça todos os seres vivos da terra (cf. Gn 9,9.12.l7s). Em Abraão "serão abençoadas todas as famílias da terra" (Gn 12,3; cf. 18,18); essa bênção para todos vem também pelos descendentes de Abraão, por causa da obediência deste (cf. Gn 22,17-18; 26,4-5; 28,14). O Deus de Israel foi reconhecido como tal por alguns estrangeiros (cf. Js 2; l Rs 10,1-13; 17,17-24; 2Rs 5,1-27). No Dêutero e Trito-Isaías encontram-se também textos que fazem referência à salvação do povo de Israel (cf. Is 42,1-4; 49,6-8; 66,18-21 etc, as oferendas dos povos serão aceitas por Deus como as oferendas dos israelitas; também SI 86; 47,10, "os príncipes dos povos reuniram-se: é o povo do Deus de Abraão"). Trata-se de uma universalidade que tem Israel como centro. Também a Sabedoria dirige-se a todos sem distinção de povos e raças (cf. Pr 1,20-23; 8,2-11; Sb 6,1-10.21 etc).

II.2. A única mediação de Jesus

a. Alguns temas neotestamentários

32. Já notamos que a vontade de salvação de Deus Pai se une à fé em Jesus, o único em quem o desígnio salvador se realiza: "Não há sob o céu nenhum outro nome oferecido aos homens, que seja necessário à nossa salvação" (At 4,12). Que a salvação se adquire apenas pela fé em Jesus é afirmação constante no Novo Testamento. Precisamente os que crêem em Cristo são a verdadeira descendência de Abraão (cf. Rm 9,6-7; Gl 3,29; Jo 8,31-58; Lc 1,55). A bênção de todos em Abraão encontra seu sentido na bênção de todos em Cristo.

33. Segundo o evangelho de Mateus, Jesus sentiu-se especialmente enviado ao povo de Israel (cf. Mt 15,24; 10,5-6). Essas afirmações correspondem à apresentação peculiar de Mateus da história da salvação: a história de Israel está orientada a seu cumprimento em Cristo (cf. Mt 1,22-23; 2,5-6.15.17-18.23), e a perfeição das promessas divinas se realizará quando tiverem passado o céu e a terra e tudo se tiver cumprido (cf. Mt 5,18). Esse cumprimento já se iniciou nos acontecimentos escatológicos da morte (cf. Mt 27,51-53) e ressurreição (cf. Mt 28,2-4) de Cristo. Jesus, porém, não exclui os gentios da salvação: elogia a fé de alguns deles, que não se encontra em Israel (cf. Mt 8,10; Lc 7,9, o centurião; Mt 15,21-28; Mc 7,24-30, a siro-fenícia); virão do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa no reino enquanto os judeus serão postos fora (cf. Mt 8,11-12; Lc 13,18-29; 11,20-24). Jesus ressuscitado dá aos onze discípulos uma missão universal (cf. Mt 28,16-20; Mc 16,15-18). A Igreja primitiva começa logo a missão aos gentios, por inspiração divina (At 10,34). Em Cristo não existe diferença entre judeus e gentios (cf. Gl 4,24; Cl 3,11).

34. Em um primeiro sentido, a universalidade da obra salvífica de Jesus se funda em que sua mensagem e sua salvação se dirigem a todos os homens e todos podem acolhê-la e recebê-la na fé. No entanto, no NT encontramos textos em que a significação de Jesus parece ir além, de algum modo é prévia à acolhida de sua mensagem por parte dos fiéis.

35. Devemos notar que tudo quanto existe foi feito por meio de Cristo (cf. 1 Cor 8,6; 1,3.10; At 1,2). Segundo Colossenses 1,15-20, tudo foi criado nele, mediante ele e tudo caminha para ele. Segundo esse mesmo texto, essa causalidade de Cristo na criação está em relação com a mediação salvífica, rumo à qual se dirige. Jesus é o primogênito da criação e o primogênito dentre os mortos; parece que na segunda primogenitura a primeira alcança todo o seu sentido. A recapitulação de tudo em Cristo é o último desígnio de Deus Pai (cf. Ef 1,10). Nessa universalidade se distingue a atuação especial de Cristo na Igreja: "Sim, ele pôs tudo sob seus pés e o outorgou, no ápice de tudo, como cabeça da Igreja que é seu corpo, a plenitude d'Aquele que o próprio Deus repleta totalmente" (Ef 1,22-23; cf. Cl 1,17).

O paralelismo paulino entre Adão e Cristo (cf. 1 Cor 15,20-22.44-49; Rm 5,12-21) parece apontar para direção idêntica. Se existe uma relevância universal do primeiro Adão, enquanto primeiro homem e primeiro pecador, também Cristo há de ter uma significação salvífica para todos, embora não se explicitem com clareza os termos dessa significação. A vocação de todo homem, que agora leva a imagem do Adão de terra, é fazer-se imagem do Adão celeste.

36."O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem" (Jo 1,9)1. E Jesus enquanto Logos encarnado que ilumina todos os homens. O Logos exerceu a mediação criadora, não sem referência à encarnação e salvação futuras, e por isso Jesus vem aos seus, que não o recebem (cf. Jo 1,3-4.10.11). Jesus anuncia um culto a Deus em espírito e em verdade, que vai além de Jerusalém e do monte Garizim (cf. Jo 4,21-24), reconhecido pela confissão dos samaritanos: "Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo" (Jo 4,42).

37. A mediação única de Jesus Cristo relaciona-se com a vontade salvífica universal de Deus em 1 Timóteo 2,5-6: "Pois há um só Deus e também um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou como resgate por todos". A unicidade do mediador (cf. também Hb 8,6; 9,15; 12,24) corresponde à unicidade do Deus que quer salvar a todos. O mediador único é o homem Cristo Jesus; também aqui se trata da significação universal de Jesus enquanto Filho de Deus encarnado. É o mediador entre Deus e os homens porque é o Filho feito homem que se entregou a morte em resgate por todos.

38. No discurso de Paulo no Areópago (cf. At 17,22-31) mostra-se com clareza que a conversão a Cristo implica ruptura com o passado. De fato, as religiões levaram os homens à idolatria. Porém, ao mesmo tempo, parece reconhecer-se a autenticidade de uma busca filosófica que, se não chegou ao conhecimento do verdadeiro Deus, nem por isso estava em um caminho completamente equivocado. A busca incerta de Deus responde aos desígnios da providência; parece que terá de ter também aspectos positivos. Há relação com o Deus de Jesus Cristo também antes da conversão (cf. At 10,34)? Não há uma atitude fechada do NT em relação a tudo que não provém da fé em Cristo; a abertura pode também se manifestar aos valores religiosos (cf. Fl 4,8).

39. O Novo Testamento nos mostra ao mesmo tempo a universalidade da vontade salvífica de Deus e a vinculação da salvação à obra redentora de Cristo Jesus, único mediador. Os homens alcançam a salvação enquanto reconhecem e aceitam na fé a Jesus, o Filho de Deus. Essa mensagem se dirige a todos sem exceção. No entanto, algumas passagens parecem insinuar uma significação salvadora de Jesus para todo homem, que pode inclusive chegar àqueles que não o conhecem. Nem uma limitação da vontade salvadora de Deus, nem a admissão de mediações paralelas à de Jesus, nem uma atribuição dessa mediação universal ao Logos eterno não identificada com Jesus são compatíveis com a mensagem neotestamentária.

b. Motivos da tradição colhidos no recente magistério da Igreja

40. A significação universal de Cristo exprimiu-se de modos diversos na tradição da Igreja, já desde os tempos mais antigos. Selecionamos alguns temas que encontraram eco nos recentes documentos magisteriais, sobretudo no concílio Vaticano II.

41. As semina Verbi. Fora dos limites da Igreja visível, e concretamente nas diferentes religiões, podem-se achar "sementes do Verbo"; o motivo se combina com freqüência com o da luz que ilumina todo homem e com o da preparação evangélica (cf. AG 11.15; LG 16.17; NA 2; RM 56).

42. A teologia das sementes do Verbo parte de são Justino. Diante do politeísmo do mundo grego, Justino vê na filosofia uma aliada do cristianismo, porque seguiu a razão; ora, essa razão se encontra em sua totalidade somente em Jesus Cristo, o Logos em pessoa. Somente os cristãos o conhecem em sua integridade2. Porém, desse Logos participou todo gênero humano. Por isso desde sempre houve quem viveu de acordo com o Logos, e nesse sentido houve "cristãos", embora tinham tido apenas o conhecimento segundo uma parte do Logosseminal3. Há muita diferença entre a semente de algo e a própria coisa. No entanto, de todos os modos, a presença parcial e seminal do Logos é dom e graça divina. O Logosé o semeador dessas "sementes de verdade"4.

43. Para Clemente de Alexandria o homem é racional enquanto participa da razão verdadeira que governa o universo, o Logos. Tem acesso pleno a essa razão se se converte e segue a Jesus, o Logos encarnado5. Com a encarnação o mundo encheu-se das sementes de salvação6. Porém, existe também uma semeadura divina desde o começo dos tempos, que levou partes diversas da verdade a estar entre os gregos e entre os bárbaros, em especial na filosofia considerada em seu conjunto7, mesmo que junto à verdade não tenha faltado a cizânia8. A filosofia teve para os gregos função semelhante à da lei para os hebreus, foi uma preparação para a plenitude de Cristo9. No entanto, existe uma clara diferença entre a ação de Deus nesses filósofos e no Antigo Testamento. Por outro lado, apenas em Jesus, luz que ilumina todo homem, pode-se contemplar o Logos perfeito, a verdade inteira. Os fragmentos de verdade pertencem ao todo10.

44. Justino e Clemente coincidem em indicar que esses fragmentos da verdade total conhecidos pelos gregos provêm, ao menos em parte, de Moisés e dos profetas. Estes são mais antigos que os filósofos11. Deles, segundo os planos da providência, os gregos "roubaram" e não souberam dar graças pelo que receberam12. Portanto, esse conhecimento da verdade não está sem relação com a revelação histórica que encontrará sua plenitude na encarnação de Jesus.

45. Ireneu não faz uso diretamente da idéia das sementes do Verbo. No entanto, acentua fortemente que em todos os momentos da história o Logosesteve junto aos homens, acompanhou-os, em previsão da encarnação13; com esta, trazendo-se a si mesmo, Jesus trouxe toda a novidade. A salvação está ligada, portanto, à aparição de Jesus, não obstante esta já ter sido anunciada e seus efeitos de algum modo se tenham antecipado14.

46. O Filho de Deus uniu-se a todo homem (cf. GS 22; RM 6, entre outros). A idéia se repete com freqüência nos Padres, que se inspiram em algumas passagens do Novo Testamento. Uma das que deram lugar a essa interpretarão é a parábola da ovelha desgarrada (cf. Mt 18,12-24; Lc 15,1-7): esta é identificada com o gênero humano extraviado, que Jesus veio buscar. Com a assunção da natureza humana, o Filho pôs sobre os ombros a humanidade inteira, para apresentá-la ao Pai. Assim se exprime Gregório de Nissa: "Essa ovelha somos nós, os homens (...), o Salvador toma sobre seus ombros a ovelha inteira, pois (...), uma vez que se tinha desgarrado toda inteira, toda inteira é reconduzida. O pastor leva-a em seus ombros, isto é, em sua divindade (...). Tendo tomado sobre ele essa ovelha, fá-la um com ele"15. Também João 1,14, "e o Verbo se fez carne e habitou entre nós", tem sido interpretado em não poucas ocasiões no sentido de habitar "dentro de nós", ou seja, no interior de cada homem; do estar ele em nós passa-se facilmente a nosso estar nele16. Contendo todos nós nele, pode reconciliar a todos com Deus Pai17. Em sua humanidade glorificada, todos podemos encontrar a ressurreição e o descanso18.

47.Os Padres não esquecem que essa união dos homens no corpo de Cristo se produz sobretudo no batismo e na eucaristia. No entanto, a união de todos em Cristo, por sua assunção de nossa natureza, constitui um pressuposto objetivo a partir do qual o fiel cresce na união pessoal com Jesus. A significação universal de Cristo se mostra também para os primeiros cristãos no fato de que liberta o homem dos príncipes deste mundo que o encerram no particular e no nacional19.

48. A dimensão cristológica da imagem. Segundo o concílio Vaticano II, Jesus é o "homem perfeito" em seguimento de quem o homem se faz mais homem (GS 41; cf. ibid. 22; 38; 45). Indica, além disso, que só "in mysterio Verbi incarnati mysterium hominis vere clarescit" (GS 22). Entre outros fundamentos dessa afirmação, assinala-se uma passagem de Tertuliano segundo a qual na plasmação de Adão do barro da terra Deus já pensava em Cristo que se devia encarnar20. Já Ireneu indicara que o Verbo, artífice de tudo, havia prefigurado em Adão a futura economia da humanidade da qual ele mesmo se tinha revestido21. Não obstante serem muito variadas as interpretações patrísticas da imagem, não se pode desprezar essa corrente que vê no Filho que se há de encarnar (e de morrer e ressuscitar) o modelo segundo o qual Deus fez o primeiro homem. Se o destino do homem é levar a imagem do celeste (cf. ICor 15,49), não parece equivocado pensar que em todo homem tem de haver certa disposição interna rumo a esse fim.

c. Conclusões

49. a) Só em Jesus os homens podem salvar-se, motivo pelo qual o cristianismo tem clara pretensão de universalidade. A mensagem cristã dirige-se, portanto, a todos os homens e a todos há de ser anunciada.

b) Alguns textos do Novo Testamento e da mais antiga tradição deixam entrever uma significação universal de Cristo que não se reduz à que acabamos de mencionar. Com sua vinda ao mundo Jesus ilumina a todo homem, é o Adão último e definitivo ao qual todos são chamados a se conformar etc. A presença universal de Jesus aparece de maneira um tanto mais elaborada na antiga doutrina do lógos spermatikós. No entanto, ainda aí há clara distinção entre a aparição plena do Logos em Jesus e a presença de suas sementes em quem não o conhece. Tal presença, sendo real, não exclui o erro nem a contradição22. A partir da vinda de Jesus ao mundo, e sobretudo a partir de sua morte e ressurreição, entende-se o sentido último da proximidade do Verbo a todos os homens. Jesus conduz a história inteira rumo a seu cumprimento (cf. GS 10; 45).

c) Se a salvação está ligada à aparição histórica de Jesus, para ninguém pode ser indiferente a adesão pessoal a ele na fé. Somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério. Daí a necessidade iniludível do anúncio de Cristo por parte da Igreja.

d) Outras possibilidades de "mediação" salvífica não podem jamais ser vistas desligadas do homem Jesus, o mediador único. Será mais difícil determinar como se relacionam com Jesus os homens que não o conhecem, as religiões. Faz-se necessária a menção dos caminhos misteriosos do Espírito, que dá a todos a possibilidade de associar-se ao mistério pascal (cf. GS 22) e cuja obra não pode não referir-se a Cristo (cf. RM 29). No contexto da atuação universal do Espírito de Cristo se há de situar a questão do valor salvífico das religiões enquanto tais.

e) Sendo Jesus o único mediador, que leva a cabo o desígnio salvífico do único Deus Pai, a salvação para todos os homens é única e a mesma: a plena configuração com Jesus e a comunhão com ele na participação em sua filiação divina. Por conseguinte, é preciso excluir a existência de economias diversas para os que crêem em Jesus e os que não crêem nele. Não pode haver caminhos para ir a Deus que não confluam no único caminho que é Cristo (cf. Jo 14,6).

II.3. A universalidade do Espírito Santo

50. A universalidade da ação salvífica de Cristo não pode ser entendida sem a ação universal do Espírito Santo. Um primeiro elemento dessa universalidade da obra do Espírito já se encontra na criação. O Antigo Testamento nos mostra o Espírito de Deus sobre as águas (cf. Gn 1,2). E o livro da Sabedoria 1,7 indica que "o Espírito do Senhor enche a terra e, contendo o universo, tem conhecimento de cada som".

51. Se isso se pode dizer de todo o universo, vale especialmente para o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, conforme Gênesis 1,26-27. Deus faz o homem para estar presente nele, para ter nele sua morada; olhar alguém com benevolência, estar junto dele, quer dizer ser seu amigo. Assim se pode falar da amizade original, amicitia originalis, do homem com Deus e de Deus com o homem (Conc. Trident. Sessio VI, cap. 7, DS 1528) como fruto da ação do Espírito. A vida em geral, e a do homem em particular, põe-se em relação mais ou menos explícita com o Espírito de Deus em vários trechos do AT (cf. SI 104,29-30; Jó 34,14-15; Ecl 12,7). João Paulo II relaciona com a comunicação do Espírito a criação do homem à imagem de Deus e na amizade divina (cf. DV 12; 34).

52. A tragédia do pecado consiste em que, em vez da proximidade entre Deus e o homem, estabelece-se a distância. O espírito das trevas apresentou-se a Deus como inimigo do homem, como ameaça (cf. Gn 3,4-5; João Paulo II, DV, 38). Deus, porém, aproximou-se do homem por meio das diversas alianças de que nos fala o AT. A imagem e a semelhança significam desde o início capacidade de relação pessoal com Deus e, portanto, capacidade de aliança. Assim, Deus aproximou-se gradualmente dos homens, mediante as diversas alianças com Noé (cf. Gn 7,lss), Abraão e Moisés, com os quais Deus se fez amigo (Tg 2,23; Ex 33,11).

53. Na Nova Aliança, Deus se aproximou tanto do homem que enviou seu Filho ao mundo, encarnado por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria. Esta aliança, ao contrário da precedente, não é da letra, mas do Espírito (cf. 2Cor 3,6). É a aliança nova e universal, a aliança da universalidade do Espírito. A universalidade quer dizer versus unum, rumo ao uno. A própria palavra "espírito" quer dizer movimento, e este inclui o "rumo", a direção. O Espírito é chamado dynamis(Ap 1,8), e a dynamisinclui a possibilidade de uma direção. Das palavras de Jesus sobre o Espírito Paráclito se deduz que o "ser rumo" refere-se a Jesus.

54. A estreita conexão entre o Espírito e Cristo manifesta-se na unção de Jesus. Jesus Cristo significa precisamente Jesus o Ungido de Deus com a unção que é o Espírito: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção..." (Lc 4,18; Is 61,1-2). Deus ungiu a Jesus "com a unção do Espírito Santo e do poder", e assim "passou por toda parte como benfeitor, curava a todos os que o diabo mantinha escravizados" (At 10,38). Como diz Ireneu, "no nome de Cristo se subentende o que unge, o que é ungido e a própria unção com a qual é ungido. O que unge é o Pai, o ungido é o Filho, no Espírito que é a unção. Como diz a Palavra por meio de Isaías: 'O Espírito de Deus está sobre o seu ungido' (Is 61,1-2), significando o Pai que unge, o Filho ungido, e a unção que é o Espírito"23.

55. A universalidade da aliança do Espírito é, portanto, a da aliança em Jesus. Jesus se ofereceu ao Pai em virtude do Espírito eterno (cf. At 9,14) no qual foi ungido. Essa unção se estende ao Cristo total, aos cristãos ungidos pelo Espírito e à Igreja. Inácio de Antioquia já indicou que Jesus recebeu a unção "para inspirar incorrupção à sua Igreja"24. Jesus foi ungido no Jordão, segundo Ireneu, "para que fôssemos salvos ao receber da abundância de sua unção"25. Gregório de Nissa o expressou com uma imagem profunda e bela: "A noção de unção sugere (...) que não há nenhuma distância entre o Filho e o Espírito. De fato, assim como entre a superfície do corpo e a unção do azeite nem a razão nem a sensação conhecem intermediários, igualmente é imediato o contato do Filho com o Espírito; portanto, aquele que está a ponto de entrar em contato com o Filho mediante a fé deve necessariamente entrar antes em contato com o azeite. Nenhuma parte carece do Espírito Santo"26. O Cristo total inclui em certo sentido todo homem, porque Cristo se uniu a todos os homens (GS 22). O próprio Jesus disse: "Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes" (Mt 25,40).

56. A Igreja é o lugar privilegiado da ação do Espírito. Nela, corpo de Cristo, o Espírito suscita os diferentes dons para utilidade comum (cf. 1 Cor 12,4-11). É conhecida a formulação de Ireneu: "Onde está o Espírito do Senhor ali está a Igreja, e onde está a Igreja está o Espírito do Senhor, e toda a graça"27. E são João Crisóstomo: "Se o Espírito Santo não estivesse presente não existiria a Igreja; se existe a Igreja, isso é um claro sinal da presença do Espírito"28.

57. Algumas passagens do NT parecem insinuar o alcance universal da ação do Espírito, sempre em relação com a missão evangelizadora da Igreja que há de chegar a todos os homens. O Espírito Santo precede e guia a pregação, está na origem da missão aos pagãos (cf. At 10,19.44-47). A superação do pecado de Babel terá lugar no Espírito. Ao contrário da tentativa dos construtores da torre de Babel, que com seus próprios esforços querem chegar ao céu, a morada de Deus, agora o Espírito Santo desce do céu como um dom e dá a possibilidade de falar todas as línguas e de escutar, cada um em sua própria língua, as grandezas de Deus (cf. At 2,1-11). A torre de Babel era um esforço para realizar a unidade sem universalidade: "Conquistemos para nós um nome [um sinal de unidade], a fim de não sermos dispersados sobre toda a superfície da terra" (Gn 11,4). Pentecostes foi o dom da universalidade na unidade: "Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e se puseram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia exprimir-se" (At 2,4). No dom do Espírito de Pentecostes se há de ver a perfeição da aliança do Sinai (cf. Ex 19,lss), que passa assim a ser universal.

O dom do Espírito é o dom de Jesus ressuscitado e elevado ao céu à direita do Pai (cf. At 2,32; Jo 14.15.26; 15,26; 16,7; 20,22); trata-se de um ensinamento constante no Novo Testamento. A própria ressurreição de Jesus se realiza com a intervenção do Espírito (cf. Rm 1,4; 8,11). O Espírito Santo nos é dado como Espírito de Cristo, Espírito do Filho (cf. Rm 8,9; Gl 4,6; Fl 1,19; At 16,7). Não se pode, portanto, pensar em uma ação universal do Espírito que não esteja em relação com a ação universal de Jesus. Os Padres não deixaram de salientar isso29. Só pela ação do Espírito os homens podem ser conformados com a imagem de Jesus ressuscitado, novo Adão, em quem o homem adquire definitivamente a dignidade a que estava chamado desde as origens: "E nós todos que, de rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor, somos transfigurados nesta mesma imagem, com glória sempre maior, pelo Senhor, que é Espírito" (2 Cor 3,18). O homem, criado a imagem de Deus, pela presença do Espírito é renovado à imagem de Deus (ou de Cristo) segundo a ação do Espírito. O Pai é o pintor; o Filho, o modelo segundo o qual o homem é pintado; e o Espírito Santo, o pincel com que o homem é pintado na criação e na redenção.

59.Por isso o Espírito Santo conduz a Cristo, dirige a todos os homens para o Ungido. Cristo, de sua parte, dirige-os para o Pai. Ninguém vai ao Pai se não é por Jesus, porque Ele é o caminho (cf. Jo 14,6); porém, é o Espírito Santo quem guia os discípulos para a verdade inteira (cf. Jo 16,2). A palavra "guiará" (hodegései) inclui o caminho (hódos). Portanto, o Espírito Santo guia pelo caminho que é Jesus, que conduz ao Pai. Por isso ninguém pode dizer "Jesus é o Senhor" se não é sob a ação do Espírito Santo (cf. 1 Cor 12,3). E a terminologia do Paráclito, empregada por João, nos indica que o Espírito é o advogado no juízo que começou em Jerusalém e continua na história. O Espírito Paráclito defenderá Jesus das acusações de que é objeto em seus discípulos (cf. Jo 16,8-11). O Espírito Santo é assim a testemunha de Cristo, e por ele os discípulos podem sê-lo: "Ele próprio dará testemunho de mim, e, por vossa vez, vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o começo" (Jo 15,26-27).

60. O Espírito, portanto, é dom de Jesus e conduz a ele, contudo o caminho concreto pelo qual guia os homens é conhecido apenas por Deus. O Vaticano II formulou isso com clareza: "Cristo morreu por todos, e a vocação última do homem é, de fato, uma só, a divina; por isso devemos crer que o Espírito Santo dá a todos a possibilidade de ser associados, do modo que Deus conhece, ao mistério pascal" (GS 22). Não tem sentido afirmar uma universalidade da ação do Espírito que não se encontre em relação com a significação de Jesus, o Filho encarnado, morto e ressuscitado. Mais propriamente, em virtude da obra do Espírito, todos os homens podem entrar em relação com Jesus que viveu, morreu e ressuscitou em um lugar e em um tempo concretos. Por outro lado, a ação do Espírito não se limita às dimensões íntimas e pessoais do homem, estendendo-se também às sociais: "Este Espírito é o mesmo que atuou na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, e a tua na Igreja. Não é, portanto, uma alternativa a Cristo, nem preenche uma espécie de vazio, como às vezes se presume existir, entre Cristo e o Logos. O que o Espírito realiza no coração dos homens, ou na história dos povos, nas culturas ou religiões, assume um papel de preparação evangélica e só pode referir-se a Cristo" (RM 29).

61. O âmbito privilegiado da ação do Espírito é a Igreja, corpo de Cristo. No entanto, todos os povos são chamados, de vários modos, à unidade do povo de Deus que o Espírito promove: "Esse caráter de universalidade que adorna e distingue o povo de Deus é dom do mesmo Senhor, e com ele a Igreja católica, eficaz e constantemente, tende a recapitular toda a humanidade, com todos os seus bens, em Cristo cabeça, na unidade de seu Espírito (...). Todos os homens, portanto, estão chamados a essa unidade católica do povo de Deus, que prefigura e promove a paz universal, e à qual de vários modos pertencem ou se ordenam os fiéis católicos, os outros crentes em Cristo e também, enfim, todos os homens, chamados pela graça de Deus à salvação" (LG 13). E a mesma universalidade da ação salvífica de Cristo e do Espírito que leva à pergunta sobre a função da Igreja como sacramento universal de salvação.

II.4. "Ecclesia Universale Salutis Sacramentum"

62. Não se pode desenvolver uma teologia das religiões sem levar em conta a missão salvífica universal da Igreja, testemunhada pela Sagrada Escritura e pela tradição de fé da Igreja. A valorização teológica das religiões foi impedida durante muito tempo por causa do princípio "extra Ecclesiam nulla salus", entendido em sentido exclusivista. Com a doutrina sobre a Igreja como "sacramento universal da salvação" ou "sacramento do Reino de Deus", a teologia trata de responder à nova apresentação do problema. Tal ensinamento, também acolhido pelo concílio Vaticano II, se concilia com a visão sacramental da Igreja no Novo Testamento.

63. Atualmente, a questão primária já não é se os homens podem alcançar a salvação ainda que não pertençam à Igreja Católica visível; tal possibilidade é considerada como teologicamente certa. A pluralidade das religiões, da qual os cristãos são cada vez mais conscientes, o melhor conhecimento dessas mesmas religiões e o necessário diálogo com elas, sem deixar em último lugar a mais clara consciência das fronteiras espaciais e temporais da Igreja, nos interrogam sobre se se pode ainda falar da necessidade da Igreja para a salvação e sobre a compatibilidade desse princípio com a vontade salvífica universal de Deus.

a. "Extra Ecclesiam nulla salus"

64. Jesus uniu o anúncio do Reino de Deus com sua Igreja. Depois de sua morte e ressurreição, renovou-se a reunião do povo de Deus, agora em nome de Jesus Cristo. A Igreja de judeus e gentios se entendeu como obra de Deus e como comunidade na qual se experimenta a ação do Senhor elevado aos céus e de seu Espírito. Com a fé em Jesus Cristo, o mediador universal da salvação, une-se o batismo em seu nome, que mediatiza a participação em sua morte redentora, o perdão dos pecados e a entrada na comunidade de salvação (cf. Mc 16,16; Jo 3,5). Por isso o batismo é comparado com a arca da salvação (cf. 1 Pd 3,20s). Segundo o Novo Testamento, a necessidade da Igreja para a salvação se funda na única mediação salvífica de Cristo.

65. Fala-se da necessidade da Igreja para a salvação em duplo sentido: necessidade da pertença à Igreja para aqueles que crêem em Jesus, e necessidade salvífica do ministério da Igreja que, por encargo de Deus, tem de estar a serviço da vinda do Reino de Deus.

66. Em sua encíclica Mystici corporis, Pio XII trata da questão da relação com a Igreja daqueles que alcançam a salvação fora da comunhão visível dessa mesma Igreja. Diz deles que se ordenam ao corpo místico de Cristo por um desejo e anelo inconsciente (cf. DS 3821). A oposição do jesuíta americano Leonard Feeney, que insiste na interpretação exclusivista da frase "extra Ecclesiam nulla salus", dá ocasião a carta do Santo Ofício ao arcebispo de Boston de 8 de agosto de 1949, que recusa a interpretação de Feeney e esclarece o ensinamento de Pio XII. A carta distingue entre a necessidade da pertença à Igreja para a salvação (necessitas praecepti) e a necessidade dos meios indispensáveis para a salvação (intrínseca necessitas); em relação a estes últimos, a Igreja é um auxílio geral para a salvação (DS 3867-3869). No caso de ignorância invencível, basta o desejo implícito de pertencer à Igreja; esse desejo estará sempre presente quando um homem aspira conformar sua vontade à de Deus (DS 3870). A fé, porém, no sentido de Hebreus 11,6, e o amor são sempre necessários com necessidade intrínseca (cf. DS 3872).

67. O Concílio Vaticano II faz sua a frase "extra Ecclesiam nulla salus". Porém, com ela se dirige explicitamente aos católicos e limita sua validez àqueles que conhecem a necessidade da Igreja para a salvação. O Concílio considera que a afirmação se funda na necessidade da fé e do batismo afirmada por Cristo (cf .LG 14). Dessa maneira o concílio reforça o ensinamento de Pio XII, mas destaca com mais clareza o caráter parenético original dessa frase.

68. O Concílio, diversamente de Pio XII, evita a falar do votum implicitum e aplica o conceito do votumapenas ao desejo explícito dos catecúmenos de pertencer à Igreja (cf. LG 14). Dos não-cristãos se diz que estão ordenados de diversos modos ao povo de Deus. A partir das diferentes maneiras com que a vontade salvífica de Deus abraça os não-cristãos, o Concílio distingue quatro grupos: em primeiro lugar, os judeus; em segundo, os muçulmanos; em terceiro, aqueles que sem culpa ignoram o evangelho de Cristo e não conhecem a Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e se esforçam por cumprir sua vontade conhecida por meio da consciência; e, em quarto lugar, aqueles que, sem culpa, ainda não chegaram ao expresso reconhecimento de Deus mas, não obstante, se esforçam por levar uma vida reta (cf. LG 16).

69. Os dons que Deus oferece a todos os homens para levá-los à salvação se fundam, segundo o Concílio, em sua vontade salvífica universal (cf. LG 2; 3; 16; AG 7). O fato de que também os não-cristãos estejam ordenados ao Povo de Deus se funda em que o chamado universal à salvação inclui a vocação de todos os homens à unidade católica do Povo de Deus (cf. LG 13). O Concílio considera que a relação íntima de ambas as vocações se funda na única mediação de Cristo, que em seu Corpo que é a Igreja, se faz presente entre nós (cf. LG 14).

70.Assim se devolve à frase "extra Ecclesiam nulla salus" seu sentido original, o de exortar os membros da Igreja à fidelidade30. Integrada essa frase na mais geral "extra Christum nulla salus", já não se encontra em contradição com o chamado de todos os homens à salvação.

b. "Paschali mysterio consociati"

71. A constituição dogmática sobre a Igreja Lúmen gentium fala de uma ordenação gradual à Igreja do ponto de vista do chamado universal à salvação, que inclui o chamado à Igreja. Pelo contrário, a constituição pastoral Gaudium et spes abre uma mais ampla perspectiva cristológica, pneumatológica e soteriológica. O que se diz dos cristãos vale também para todos os homens de boa vontade, em cujos corações atua a graça de modo invisível. Também eles podem ser associados pelo Espírito Santo ao mistério pascal, e podem, por conseguinte, ser conformados com a morte de Cristo e caminhar ao encontro da ressurreição (cf. GS 22).

72. Quando os não-cristãos, justificados mediante a graça de Deus, são associados ao mistério pascal de Jesus Cristo, o são também com o mistério de seu corpo, que é a Igreja. O mistério da Igreja em Cristo é uma realidade dinâmica no Espírito Santo. Ainda que falte a essa união espiritual a expressão visível da pertença à Igreja, os não-cristãos justificados estão incluídos na Igreja "corpo místico de Cristo" e "comunidade espiritual" (LG 8). Nesse sentido, os Padres da Igreja podem dizer que os não-cristãos justificados pertencem à ecclesia ab Abel. Enquanto estes são reunidos na Igreja universal junto ao Pai (cf. LG 2), não serão salvos aqueles que pertencem certamente "ao corpo" mas não "ao coração" da Igreja, porque não perseveraram no amor (cf. LG 14).

73. Por isso, pode-se falar não só em geral de uma ordenação à Igreja dos não-cristãos justificados, mas também de uma vinculação com o mistério de Cristo e de seu corpo, a Igreja. Porém, não se deveria falar de uma pertença, nem sequer de uma pertença gradual à Igreja, ou de uma comunhão imperfeita com a Igreja, reservada aos cristãos não-católicos (UR 3; LG 15); pois a Igreja, por sua essência, é uma realidade complexa, constituída pela união visível e pela comunhão espiritual. E claro que os não-cristãos que não são culpáveis de não pertencer à Igreja entram na comunhão dos chamados ao Reino de Deus, mediante a prática do amor a Deus e ao próximo; tal comunhão se revelará como Ecclesia universalis na consumação do Reino de Deus e de Cristo.

c. "Universale salutis sacramentum"

74. Enquanto se partia da suposição de que todos os homens entravam em contato com a Igreja, a necessidade da Igreja para a salvação foi entendida sobretudo como necessidade de pertença a ela. Desde que a Igreja se fez consciente de sua condição de minoria, tanto diacrônica como sincronicamente, passou para o primeiro plano a necessidade da função salvífica universal da Igreja. Essa missão universal e essa eficácia sacramental em ordem à salvação encontraram sua expressão teológica na denominação da Igreja como sacramento universal de salvação. Como tal, a Igreja está a serviço da vinda do Reino de Deus, na união de todos os homens com Deus e na unidade dos homens entre si (cf. LG 1).

75. De fato, Deus se revelou como amor não só porque nos dá já agora parte no Reino de Deus e em seus frutos, mas também porque nos chama e libera para a colaboração na vinda de seu reino. Assim, a Igreja não é só sinal, mas também instrumento do Reino de Deus que irrompe com força. A Igreja leva a cabo sua missão como sacramento universal de salvação na martyria, leiturgia e diakonia.

76. Por meio da martyriado evangelho da redenção universal levada a cabo por Jesus Cristo, a Igreja anuncia a todos os homens o mistério pascal de salvação que se lhes oferece ou do qual já vivem sem sabê-lo. Como sacramento universal de salvação, a Igreja é essencialmente uma Igreja missionária. Pois Deus, em seu amor, não só chamou os homens para alcançar sua salvação final na comunhão com ele. Mais propriamente, pertence à plena vocação do homem que sua salvação não se realize no serviço da "sombra do que devia vir" (Cl 2,17),mas no pleno conhecimento da verdade, na comunhão do povo de Deus e na ativa colaboração para a vinda de seu Reino, fortalecido pela segura esperança na fidelidade de Deus (cf.AG 1-2).

77. Na leiturgia, celebração do mistério pascal, a Igreja cumpre sua missão de serviço sacerdotal representando toda a humanidade. Num modo que, segundo a vontade de Deus, é eficaz para todos os homens, faz presente a representação de Cristo que "se identificou com o pecado, por nós" (2Cor 5,21), e em nosso lugar foi "suspenso no madeiro" (Gl 3,13) para nos livrar do pecado (cf. LG 10). Finalmente, na diakonia, a Igreja dá testemunho da doação amorosa de Deus aos homens e da irrupção do reino da justiça, do amor e da paz.

78. À missão da Igreja como sacramento universal de salvação pertence também "que todo o bem que se encontra semeado na coração e na mente dos homens, não só não pereça, mas seja curado, elevado e aperfeiçoado" (LG 17). Pois, às vezes, a ação do Espírito precede inclusive visivelmente a atividade apostólica da Igreja (AG 4), e sua ação pode se manifestar também na busca e na inquietude religiosa dos homens. O mistério pascal ao qual, do modo que Deus conhece, todos os homens podem ser incorporados, é a realidade salvífica que abraça toda a humanidade, que une de antemão à Igreja os não-cristãos aos quais ela se dirige e ao serviço de cuja revelação deve sempre estar. Na medida em que a Igreja reconhece, discerne e faz seu o verdadeiro e o bom que o Espírito Santo operou nas palavras e nos feitos dos não-cristãos, converte-se cada vez mais na verdadeira Igreja católica, "que fala em todas as línguas, que entende e abarca todas as línguas no amor, e supera dessa forma a dispersão de Babel" (AG 4).

77. "Assim, esse povo messiânico, embora não compreenda de fato todos os homens e muitas vezes apareça como uma pequena grei, é no entanto, para toda a humanidade, o germe mais firme de unidade, de esperança e de salvação. Constituído por Cristo para ser uma comunhão de vida, de caridade e de verdade, é assumido também por ele para ser instrumento de redenção, e é enviado a todo o mundo como luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5,13-16)" (LG 9).

 

III. CONSEQÜÊNCIAS PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ DAS RELIGIÕES

80. Uma vez estudada a mediação universal de Cristo, a universalidade do dom do Espírito, a função da Igreja na salvação de todos, temos os elementos para esboçar uma teologia das religiões. Diante da nova situação criada pelo pluralismo religioso, retoma-se a pergunta pela significação universal de Jesus Cristo também em relação com as religiões e a função que estas podem ter no desígnio de Deus, que não é outro senão o de recapitular todas as coisas em Cristo (cf. Ef 1,10). Não é de estranhar que velhos temas da tradição sejam utilizados para iluminar as novas situações. Positivamente, é necessário ter presente a significação universal de Jesus e de seu Espírito e também da Igreja. Com efeito, esta última anuncia o evangelho, está a serviço da comunhão entre todos e representa toda a humanidade mediante seu serviço sacerdotal na celebração litúrgica do mistério pascal. Negativamente, esta universalidade é exclusiva: nem há um Logos que não seja Jesus nem há um Espírito que não seja o Espírito de Cristo. Nessas coordenadas se inscrevem os problemas concretos que a seguir serão tratados. Estudaremos alguns dos pontos já indicados no status quaestionis.

III. 1. O valor salvífico das religiões

81. Atualmente não é objeto de discussão a possibilidade de salvação fora da Igreja daqueles que vivem segundo sua consciência. Tal salvação, como se viu na exposição precedente, não se produz com independência de Cristo e de sua Igreja. Funda-se na presença universal do Espírito, que não pode se desligar do mistério pascal de Jesus (cf. GS 22; RM 10 etc). Alguns textos do Vaticano II tratam especificamente das religiões não-cristãs: os que ainda não receberam o evangelho estão ordenados de diversos modos ao povo de Deus, e a pertença às diversas religiões não parece indiferente aos efeitos dessa "ordenação" (cf. LG 16). Reconhece-se que nas diversas religiões existem raios da verdade que ilumina todo homem (cf. NA 2),sementes do Verbo (cf. AG 11); pela disposição de Deus há nelas coisas boas e verdadeiras (cf. OT 16); encontram-se elementos de verdade, de graça e de bem não somente nos corações dos homens, mas também nos ritos e nos costumes dos povos, não obstante tudo deva ser "sanado, elevado e completado" (AG 9;LG 17). Se as religiões como tais podem ter valor em ordem à salvação é um ponto que fica aberto.

82. A encíclica Redemptoris missio, seguindo e desenvolvendo a linha do Concílio Vaticano II, salientou com mais clareza a presença do Espírito Santo não só nos homens de boa vontade considerados individualmente, mas também na sociedade e na história, nos povos, nas culturas, nas religiões, sempre com referência a Cristo (cf. RM 28; 29). Existe uma ação universal do Espírito, que não pode separar-se nem tampouco confundir-se com a ação peculiar que desenvolve no corpo de Cristo que é a Igreja (ibid.). Da disposição do capítulo III da encíclica intitulado "O Espírito Santo como protagonista da missão", parece deduzir-se que essas duas formas de presença e ação do Espírito derivam do mistério pascal. Com efeito, fala-se da presença universal nos números 28-29, depois de se ter desenvolvido a idéia da missão impulsionada pelo Espírito Santo (nn. 21-27). No final do número 28, afirma-se claramente que é Jesus ressuscitado o que atua no coração dos homens em virtude de seu Espírito, e que é o mesmo Espírito que distribui as sementes do Verbo presentes nos ritos e nas religiões. A diferença entre os dois modos de ação do Espírito Santo não pode levar à sua separação, como se só o primeiro estivesse em relação com o mistério salvífico de Cristo.

83. Novamente se fala da presença do Espírito e da ação de Deus nas religiões em RM55-56, no contexto do diálogo com os irmãos de outras religiões. As religiões constituem um desafio para a Igreja, pois a estimulam a reconhecer os sinais da presença de Cristo e da ação do Espírito. "Deus chama a si todos os povos em Cristo, querendo comunicar-lhes a plenitude de sua revelação e de seu amor; e não deixa de fazer-se presente de muitas maneiras não só aos indivíduos concretos, mas também aos povos mediante suas riquezas espirituais, das quais as religiões são expressão principal e essencial, embora contenham 'lacunas, insuficiências e erros'" (RM55). Também nesse contexto se assinala a diferença com a presença de Deus que Cristo traz com seu evangelho.

84. Dado esse explícito reconhecimento da presença do Espírito de Cristo nas religiões, não se pode excluir a possibilidade de que essas exerçam, como tais, certa função salvífica, isto é, ajudem os homens a alcançar seu fim último, apesar de sua ambigüidade. Nas religiões se tematiza explicitamente a relação do homem com o Absoluto, sua dimensão transcendente. Seria dificilmente pensável que tivesse valor salvífico o que o Espírito Santo opera no coração dos homens considerados como indivíduos e não o tivesse o que o mesmo Espírito faz nas religiões e nas culturas. O magistério recente não parece autorizar uma diferenciação tão drástica. Por outro lado, é preciso notar que muitos dos textos a que nos referimos não falam só das religiões mas junto a elas mencionam as culturas, a história das povos etc. Todas elas também podem ser "tocadas" por elementos de graça.

85. Nas religiões atua o mesmo Espírito que guia para a Igreja. Porém, a presença universal do Espírito não pode ser equiparada à sua presença peculiar na Igreja de Cristo. Embora não se possa excluir o valor salvífico das religiões, isso não significa que tudo nelas seja salvífico. Não se pode olvidar a presença do espírito do mal, a herança do pecado, a imperfeição da resposta humana à ação de Deus etc. (cf. Diálogo e Anúncio, 30-31). Só a Igreja é o corpo de Cristo, e só nela se dá em toda sua intensidade a presença do Espírito. Assim, para ninguém pode ser indiferente a pertença à Igreja de Cristo e a participação na plenitude dos dons salvíficos que só nela se encontram (RM 55). As religiões podem exercer a função de praeparatio evangelica, podem preparar os diversos povos e culturas para a acolhida do acontecimento salvador que já teve lugar. Nesse sentido sua função não pode se equiparar à do Antigo Testamento, que foi a preparação do próprio evento de Cristo.

86. A salvação se obtém pelo dom de Deus em Cristo, não porém sem a resposta e a aceitação humana. As religiões podem também auxiliar a resposta humana, enquanto impelem o homem à busca de Deus, a agir segundo sua consciência, a levar uma vida reta (cf. LG 16; cf. Veritatis splendor 94, o senso moral dos povos e as tradições religiosas põem em relevo a ação do Espírito de Deus). Em última análise, a busca do bem é uma atitude religiosa (cf. Veritatis splendor 9. 12). E a resposta humana ao convite divino que se recebe sempre em e por meio de Cristo1. Parece que essas dimensões objetivas e subjetivas, descendentes e ascendentes, devem se dar em unidade, como se dão no mistério de Cristo. As religiões podem ser, portanto, nos termos indicados, um meio que auxilie a salvação de seus adeptos, mas não podem se equiparar à função que a Igreja realiza para a salvação dos cristãos e dos que não o são.

87. A afirmação da possibilidade da existência de elementos salvíficos nas religiões não implica em si mesma um juízo sobre a presença desses elementos em cada uma das religiões concretas. Por outro lado, o amor de Deus e do próximo, tornado possível em última instância por Jesus o único mediador, é o caminho para se chegar ao próprio Deus. As religiões podem ser portadoras da verdade salvadora apenas enquanto conduzem os homens ao verdadeiro amor. Se é verdade que este pode ser encontrado também nos que não praticam religião alguma, parece que o verdadeiro amor a Deus deve levar à adoração e à prática religiosa em união com os demais homens.

III. 2. A questão da revelação

88. A especificidade e irrepetibilidade da revelação divina em Jesus Cristo se funda em que só em sua pessoa se dá a autocomunicação do Deus trino. Daí, em sentido estrito, não mais se poder falar de revelação de Deus a não ser enquanto Deus dando-se a si mesmo. Cristo é ao mesmo tempo o media-dor e a plenitude de toda a revelação (cf. DV 2). O conceito teológico de revelação não pode ser confundido com o da fenomenologia religiosa (religiões de revelação, aquelas que se consideram fundadas em uma revelação divina). Somente em Cristo e em seu Espírito, Deus se deu completamente aos homens; por conseguinte, apenas quando se dá a conhecer essa autocomunicação se dá a revelação de Deus em sentido pleno. A doação que Deus faz de si mesmo e sua revelação são dois aspectos inseparáveis do acontecimento de Jesus.

89. Antes da vinda de Cristo, Deus revelou-se de modo peculiar ao povo de Israel como o único Deus vivo e verdadeiro. Enquanto testemunho dessa revelação, os livros do Antigo Testamento são palavra de Deus e conservam um valor perene (cf. DV 14). Apenas no Novo Testamento os livros do Antigo recebem e manifestam sua significação completa (cf. DV 16). Porém, no judaísmo persiste a verdadeira revelação divina do Antigo Testamento. Certos elementos da revelação bíblica foram recolhidos pelo Islã, que os interpretou em um contexto diferente.

90. Deus se deu a conhecer e continua dando-se a conhecer aos homens de muitas maneiras: por meio das obras da criação (cf. Sb 13,5; Rm 1,19-20); por meio dos juízos da consciência (cf. Rm 2,14-15) etc. Deus pode iluminar os homens por caminhos diversos. A fidelidade a Deus pode dar lugar a certo conhecimento por conaturalidade. As tradições religiosas foram marcadas por "muitas pessoas sinceras inspiradas pelo Espírito de Deus" (Diálogo e Anúncio, 30). A ação do Espírito não deixa de ser percebida de algum modo pelo ser humano. Se, segundo o ensinamento da Igreja, nas religiões se encontram "sementes do Verbo” e "raios da verdade”, não podem ser excluídos delas elementos de um verdadeiro conhecimento de Deus, mesmo com imperfeições (cf. RM 55). A dimensão gnosiológica não pode estar de todo ausente onde reconhecemos elementos de graça e de salvação.

91. No entanto, ainda que Deus tenha podido iluminar os homens de maneiras diferentes, nunca temos a garantia da reta acolhida e interpretação dessas luzes em quem as recebe. Só em Jesus há a garantia da plena acolhida da vontade do Pai. O Espírito assistiu de maneira especial os apóstolos no testemunho de Jesus e na transmissão de sua mensagem; da pregação apostólica surgiu o Novo Testamento, e também graças a ela a Igreja recebeu o Antigo. A inspiração divina que a Igreja reconhece nos escritos do Antigo e Novo Testamentos assegura que neles se recolheu tudo e só o que Deus queria que se escrevesse.

92. Nem todas as religiões têm livros sagrados. E embora não se possa excluir, nos termos expostos, alguma iluminação divina na composição desses livros (nas religiões que os têm), é mais adequado reservar o qualificativo de inspirados aos livros canónicos (cf. DV 11). A denominação de "palavra de Deus" reservou-se na tradição aos escritos dos dois testamentos. A distinção é clara inclusive nos antigos escritores eclesiásticos que reconheceram sementes do Verbo nos escritos filosóficos e religiosos. Os livros sagrados das diferentes religiões, ainda quando possam fazer parte de alguma preparação evangélica, não podem ser considerados como equivalentes ao Antigo Testamento, que constitui a preparação imediata para a vinda de Cristo ao mundo.

III. 3. A verdade como problema entre a teologia das religiões e a posição pluralista

93. O diálogo inter-religioso não é apenas um desejo que parte do Concílio Vaticano II, fomentado pelo atual Pontífice. É também uma necessidade na presente situação do mundo. Sabemos que esse diálogo é a preocupação central da teologia pluralista das religiões nos últimos tempos. Para torná-lo possível, os representantes dessas teologias pensam que se há de eliminar por parte dos cristãos toda pretensão de superioridade e de absolutez. Há de se considerar todas as religiões com igual valor. Pensam que é uma pretensão de superioridade a consideração de Jesus como salvador e mediador único para todos os homens.

94. O abandono dessa pretensão é considerado, portanto, como essencial para a realização do diálogo. Esse é sem dúvida o ponto mais importante com que temos de nos confrontar. Diante desses projetos, há de se mostrar que não significa absolutamente um menosprezo nem uma depreciação o fato de a teologia católica afirmar que tudo o que nas outras religiões é verdadeiro e digno de apreço vem de Cristo no Espírito Santo. Tal é o melhor modo que o cristão tem de expressar seu apreço por essas religiões.

95. Ao comparar algumas das opiniões teológicas expostas no capítulo I com as concepções magisteriais atuais e sua fundamentação na Escritura e na Tradição que foram objeto do capítulo II, constata-se que é comum a umas e outras a intenção fundamental de reconhecer com respeito e gratidão as verdades e valores das diversas religiões. Ambas buscam o diálogo com elas, sem preconceitos e sem afãs de polêmica.

96. Porém, a diferença básica entre as duas apresentações se encontra na posição que adotam diante do problema teológico da verdade, e ao mesmo tempo diante da fé cristã. O ensinamento da Igreja sobre a teologia das religiões argumenta a partir do centro da verdade da fé cristã. Leva em conta, de um lado, o ensinamento paulino do conhecimento natural de Deus e, de outro, expressa a confiança na atuação universal do Espírito. Vê ambas as linhas ancoradas na tradição teológica. Valoriza o verdadeiro, bom e belo das religiões a partir do pano de fundo da verdade da própria fé, porém não atribui em geral à pretensão de verdade das outras religiões uma mesma validez. Isso levaria à indiferença, isto é, a não tomar a sério a pretensão de verdade tanto própria como alheia.

97. A teologia das religiões que encontramos nos documentos oficiais argumenta a partir do centro da fé. Com relação ao modo de proceder das teologias pluralistas, e apesar das diferentes opiniões e das constantes mudanças que nelas se dão, pode-se afirmar que no fundo têm uma estratégia "ecumênica" do diálogo, isto é, preocupam-se por uma renovada unidade com as diferentes religiões. Tal unidade, porém, só se pode constituir eliminando aspectos da autocompreensão própria. Quer-se conseguir a unidade desvalorizando diferenças, vistas como ameaça; considera-se ao menos que hão de ser eliminadas como particularidades ou reduções próprias de uma cultura específica.

98. A modificação da compreensão da própria fé na teologia pluralista das religiões tem múltiplas faces. Notemos as mais importantes: a) no plano histórico sugere-se um esquema de três fases, que chega no pluralismo em seu ponto final: exclusivismo, inclusivismo; nele se pressupõe erroneamente que só a última posição conduz a prestar verdadeira atenção nas outras religiões e cora isso na paz religiosa; b) no plano da teoria do conhecimento, reduz-se a capacidade de verdade das afirmações teológicas (formas de expressão específicas de uma cultura), ou inclusive chega-se a suprimi-la (as afirmações teológicas se equiparam às mitológicas); e c) no plano teológico se busca a plataforma de unidade; a possibilidade do reconhecimento da igual dignidade se paga com a parcialização e redução metodológicas (do eclesiocentrismo ao cristocentrismo, e deste ao teocentrismo, enquanto se sugere um conceito subdeterminado de Deus), e com a modificação e redução dos conteúdos específicos da fé, especialmente na cristologia.

99. Numa época marcada pela idéia de um pluralismo de mercado, essa teologia adquire alto grau de plausibilidade, porém apenas enquanto não se a aplique conseqüentemente à posição do interlocutor nesse diálogo. No momento em que se dê uma destas possibilidades: a) que o interlocutor reconheça a tese da "igual dignidade" historicamente plural; b) que aceite para a religião própria a tese da limitação ou supressão da capacidade de verdade de todas as afirmações teológicas; c) ou modifique seu próprio método teológico e o conteúdo das próprias afirmações de fé de tal maneira que estas só tenham validez em relação com os cânones da religiosidade própria, neste instante termina o diálogo religioso. Com efeito, não resta nada a constatar senão essa pluralidade indistinta. Por isso a teologia pluralística, como estratégia de diálogo entre as religiões, não só não se justifica ante a pretensão de verdade da religião própria, mas dissolve ao mesmo tempo a pretensão de verdade da outra parte.

100. Perante a simplificação histórica, epistemológica ou teológica da relação entre o cristianismo e as outras religiões na teologia pluralista, é preciso partir da visão diferenciada das religiões da declaração Nostra Aetate do Concílio Vaticano II. Nela se descreve o que as religiões do mundo têm fundamentalmente em comum, a saber, o esforço "por responder de várias maneiras à inquietação do coração humano propondo para isso caminhos, isto é, doutrinas, preceitos de vida e ritos sagrados" (NA 2), porém sem que se apaguem as diferenças igualmente fundamentais: as diferentes formas do budismo indicam ao homem caminhos pelos quais este percebe o sentido do ser no reconhecimento da insuficiência radical deste mundo contingente; na riqueza de mitos do hinduísmo, em suas exigências ascéticas e suas profundas meditações se expressa a busca confiante de refúgio em Deus. Com o Islã a Igreja tem mais em comum, pois reconhece que seus adeptos "adoram o único Deus (...) criador do céu e da terra" (NA 3). Reconhecendo com toda clareza o que nos separa, não se pode passar por alto os elementos comuns na história e na doutrina. O cristianismo está unido ao judaísmo por sua origem e uma rica herança comum. A história da aliança com Israel, a confissão de um só e único Deus que se revela nessa história, a esperança em Deus que vem e em seu reino futuro, são comuns a judeus e cristãos (cf. NA 4). Uma teologia cristã das religiões deve ser capaz de expor teologicamente os elementos comuns e as diferenças entre a própria fé e as convicções dos diferentes grupos religiosos. O Concílio situa essa tarefa em uma tensão: por um lado contempla a unidade do gênero humano, fundada em uma origem comum (cf. NA 1). Por essa razão, ancorada na teologia da criação, "a Igreja católica não recusa nada do que nessas religiões há de verdadeiro e de santo" (NA 2). Porém, por outro lado, insiste na necessidade do anúncio da verdade que é o próprio Cristo: "Anuncia e tem a obrigação de anunciar constantemente a Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e em quem Deus reconciliou consigo todas as coisas [cf. 2Cor 5,18-19]" (ibid.).

101. Todo diálogo vive da pretensão de verdade dos que dele participam. No entanto, o diálogo entre as religiões se caracteriza, além disso, por aplicar a estrutura profunda da cultura de origem de cada um à pretensão de verdade de uma cultura estranha. É claro que esse diálogo é exigente e requer uma especial sensibilidade diante da outra cultura. Nos últimos decênios desenvolveu-se especialmente essa sensibilidade diante do contexto cultural tanto das diferentes religiões como do cristianismo e suas teologias. Basta recordar as "teologias em contexto" e a significação crescente do tema da inculturação no magistério e na teologia. A Comissão Teológica Internacional já tratou desses temas2, de maneira que aqui parecem necessárias apenas duas indicações: 1. Uma teologia das religiões diferenciada, que se baseia na própria pretensão de verdade, é a base de qualquer diálogo sério e o pressuposto necessário para entender a diversidade das posições e seus meios culturais de expressão. 2. A contextualidade literária ou a sociocultural etc. são meios importantes de compreensão, às vezes os únicos, de textos e situações, são possível lugar da verdade, porém não se identificam com a própria verdade. Com isso se indicam a significação e os limites da contextualidade cultural. O diálogo inter-religioso trata com cautela e respeito as "coincidências e convergências" com as outras religiões. Para o trato das "diferenças" tem-se levar em conta que esse trato não deve anular as coincidências e elementos de convergência, e além disso que o diálogo sobre essas diferenças há de se inspirar na doutrina própria e sua ética correspondente; em outras palavras, a forma do diálogo não pode invalidar o conteúdo da fé própria e de sua ética.

102. A crescente inter-relação das culturas na atual sociedade mundial e sua constante interpenetração nos meios de comunicação fazem que a questão da verdade das religiões tenha passado ao centro da consciência cotidiana do homem de hoje. As presentes reflexões consideram alguns pressupostos dessa nova situação; nelas, porém, não se entra na discussão de conteúdos com as diferentes religiões. Esta deveria realizar-se na teologia dos diferentes lugares, ou seja, nos diferentes centros de estudo que estão era contato cultural direto com as outras religiões. Ante a situação de mudança da consciência do homem atual e a situação dos fiéis, é claro que a discussão com a pretensão de verdade das religiões não pode ser um aspecto marginal ou parcial da teologia. A confrontação respeitosa com essa pretensão deve representar um papel no centro do trabalho cotidiano da teologia, deve ser parte integral dessa mesma teologia. Com ela o cristianismo de hoje deve aprender a viver, no respeito pela diversidade das religiões, uma forma da comunhão que tem seu fundamento no amor de Deus pelos homens e se funda em seu respeito para com a liberdade do homem. Esse respeito pela "alteridade" das diferentes religiões está por sua vez condicionado pela própria pretensão de verdade.

103. O interesse pela verdade do outro compartilha com o amor o pressuposto estrutural do apreço de si mesmo. A base de toda comunicação, também do diálogo entre as religiões, é o reconhecimento da exigência de verdade. A fé cristã, porém, tem sua própria estrutura de verdade: as religiões falam "do" Santo, "de" Deus, "sobre" ele, "em seu lugar" ou "em seu nome". Apenas na religião cristã é Deus mesmo quem fala ao homem em sua Palavra. Só esse modo de falar possibilita ao homem seu ser pessoal em um sentido próprio, ao mesmo tempo que a comunhão com Deus e com todos os homens. O Deus tripessoal é o coração dessa fé. Apenas a fé cristã vive do Deus uno e trino. Do pano de fundo de sua cultura surgiu a diferenciação social que caracteriza a modernidade.

104.À única mediação salvífica de Cristo para todos os homens se lhe atribui, por parte da posição pluralista, uma pretensão de superioridade; por isso se pede que o cristocentrismo teológico, do qual se deduz necessariamente essa pretensão, seja substituído por um teocentrismo mais aceitável. Diante disso é preciso afirmar que a verdade da fé não está a nossa disposição. Perante uma estratégia de diálogo que pede uma redução do dogma cristológico para excluir essa pretensão de superioridade do cristianismo, optamos mais propriamente — com o fim de excluir uma "falsa" pretensão de superioridade — por uma aplicação radical da fé cristológica à forma de anúncio que lhe é própria. Toda forma de evangelização que não corresponde à mensagem, à vida, à morte e à ressurreição de Jesus Cristo compromete essa mensagem e, em última análise, ao próprio Jesus Cristo. A verdade como verdade é sempre "superior"; porém a verdade de Jesus Cristo, na clareza de sua exigência, é sempre serviço ao homem; é a verdade do que dá a vida pelos homens para fazê-los entrar definitivamente no amor de Deus. Toda forma de anúncio que procure antes de tudo e sobretudo se impor aos ouvintes ou dispor deles com os meios de uma racionalidade instrumental ou estratégica opõe-se a Cristo, evangelho do Pai, e à dignidade do homem da qual Ele mesmo fala.

III.4. Diálogo inter-religioso e mistério de salvação

105. A partir do Vaticano II, a Igreja católica se comprometeu de modo decidido no diálogo inter-religioso3; esse documento foi elaborado com o olhar posto nesse diálogo, embora não seja esse seu tema fundamental. O estado da questão a respeito do cristianismo e sua relação com as religiões, os pressupostos teológicos e as conseqüências que deles se deduzem sobre o valor salvífico das religiões, a revelação divina, são reflexões destinadas a iluminar os cristãos em seus diálogos com os fiéis de outras religiões.

106. Que esses diálogos se realizem entre especialistas, ou se dêem na vida cotidiana, compromete com as palavras ou os comportamentos não só as pessoas que dialogam, mas também, e em primeiro lugar, o Deus que professam. O diálogo inter-religioso como tal comporta três participantes. Por isso, o cristão é interpelado nele por duas questões fundamentais, das quais depende o sentido do próprio diálogo: o sentido de Deus e o sentido do homem.

a. O sentido de Deus

107. No diálogo inter-religioso, cada um dos participantes se expressa de fato segundo determinado sentido de Deus; de maneira implícita levanta ao outro a pergunta: qual é seu Deus? O cristão não pode ouvir e compreender o outro sem fazer a si mesmo essa pergunta. A teologia cristã é mais que um discurso sobre Deus: trata de falar de Deus em linguagem humana como o Logos encarnado o dá a conhecer (cf. Jo 1,18; 17,3). Daí a necessidade de alguns discernimentos no diálogo:

108. a) Se se fala da divindade como valor transcendente e absoluto, trata-se de uma Realidade impessoal, ou de um Ser pessoal? b) A transcendência de Deus significa que ele é um mito intemporal, ou essa transcendência é compatível com a ação divina na história com os homens? c) Conhece-se a Deus só pela razão, ou se o conhece também por meio da fé pela qual ele se revela aos homens? d) Visto que uma "religião" é certa relação entre Deus e o homem, expressa um Deus à imagem do homem ou implica que o homem é à imagem de Deus? e) Se se admite que Deus é único como exigência da razão, que significa professar que é Uno? Um Deus monopessoal é aceitável pela razão, porém somente em sua auto-revelação em Cristo o mistério de Deus pode ser acolhido pela fé como Uni-Trindade consubstancial e indivisível. Esse discernimento é capital em razão das conseqüências que daí se desprendem para a antropologia e a sociologia inerentes a cada religião, f) As religiões reconhecem à divindade atributos essenciais, como a onipotência, a onisciência, a bondade, a justiça. No entanto, para compreender a coerência doutrinal de cada religião e superar as ambigüidades de uma linguagem aparentemente comum, é preciso compreender o eixo em torno do qual se articulam esses nomes divinos. Esse discernimento concerne especialmente ao vocabulário bíblico, cujo eixo é a aliança entre Deus e o homem, tal como se cumpriu em Cristo, g) Faz-se necessário outro discernimento sobre o vocabulário especificamente teológico, na medida em que é tributário da cultura de cada participante no diálogo e de sua filosofia implícita. É necessário, portanto, prestar atenção na peculiaridade cultural das duas partes, inclusive se ambas participam da mesma cultura original, h) O mundo contemporâneo parece preocupar-se, ao menos em teoria, com os direitos do homem. Alguns integrismos, inclusive entre os cristãos, opõem a eles os direitos de Deus. Contudo, nessa oposição, de que Deus se trata? E, em última análise, de que homem?

b. O sentido do homem

109. O diálogo inter-religioso implica ainda uma antropologia implícita, e isso por duas razões principais. De um lado, o diálogo põe em comunicação duas pessoas, e cada uma delas é o sujeito de sua palavra e de seu comportamento. Por outro lado, quando dialogam fiéis de religiões diferentes, tem lugar um acontecimento muito mais profundo que sua comunicação verbal: um encontro entre seres humanos, para o qual cada um se encaminha levando o peso de sua condição humana.

110. Num diálogo inter-religioso, têm as partes a mesma concepção da pessoa? A questão não é teórica, mas interpela a uns e a outros. A parte cristã sabe sem dúvida que a pessoa humana foi criada "à imagem de Deus", isto é, num apelo constante de Deus essencialmente relacional e capaz da abertura "ao outro". Porém, todos os participantes são conscientes do mistério da pessoa humana e do de Deus "mais além de tudo"4? Também o cristão é induzido a perguntar-se: de onde fala, quando dialoga? Do cenário de sua personagem social ou religiosa? Do alto de seu "superego" ou de sua imagem ideal? Visto que ele deve dar testemunho de seu Senhor e Salvador, em que "morada" de sua alma este se encontra? No diálogo inter-religioso, mais que em toda relação interpessoal, está implicada a relação de cada pessoa com o Deus vivente.

111. Aqui se mostra a importância da oração no diálogo inter-religioso: "O homem está à procura de Deus (...). Todas as religiões testemunham essa procura essencial dos homens"3. Ora, a oração, como relação vivente e pessoal com Deus, é o próprio ato da virtude da religião e encontra expressão em todas as religiões. O cristão sabe que Deus "chama incessantemente cada pessoa ao encontro misterioso da oração"6. Se Deus não pode ser conhecido senão se ele mesmo toma a iniciativa de revelar-se, a oração se mostra como absolutamente necessária porque põe o homem em disposição de receber a graça da revelação. Assim, na procura comum dá verdade que deve motivar o diálogo inter-religioso, "se dá uma sinergia entre a oração e o diálogo (...).. A oração é a condição do diálogo e transforma-se no fruto dele"7. Na medida em que o cristão vive o diálogo em estado de oração, é dócil à moção do Espírito que atua no coração dos dois interlocutores. Então, o diálogo se faz mais que um intercâmbio: faz-se encontro.

112. Mais profundamente, em nível do não-dito, o diálogo inter-religioso é, com efeito, um encontro entre seres criados "à imagem de Deus", embora essa imagem se encontre neles um tanto obscurecida pelo pecado e pela morte. Dito de outro modo, os cristãos e os que não o são estão todos a espera de ser salvos. Por essa razão, cada uma de suas religiões se apresenta como uma procura de salvação e propõe caminhos para chegar a ela. Esse encontro na comum condição humana põe as partes em plano de igualdade e é muito mais verdadeiro que seu discurso religioso meramente humano. Tal discurso já é uma interpretação da experiência e passa pelo filtro das mentalidades confessionais. Pelo contrário, os problemas do amadurecimento pessoal, a experiência da comunidade humana (homem e mulher, família, educação etc.) e todas as questões que gravitam em torno do trabalho para "ganhar a vida", longe de ser temas de distração do diálogo religioso, constituem o terreno "a descoberto" para esse diálogo. Então, nesse encontro se dá conta de que o "lugar" de Deus é o homem.

113. Ora, a constante subjacente a todos os demais problemas da condição humana comum não é senão a morte. Sofrimento, pecado, fracasso, decepção, incomunicação, conflitos, injustiças... a morte está presente em todas as partes e em cada momento como a trama opaca da condição humana. Por certo, o homem, incapaz de exorcizá-la, faz todo o possível para não pensar nela. E não obstante é nela que ressoa com mais intensidade o chamado do Deus vivente. A morte é o sinal permanente da alteridade divina, pois só o que chama do nada o ser pode dar vida aos mortos. Ninguém pode ver a Deus sem passar pela morte, esse lugar ardente no qual o Transcendente atinge o abismo da condição humana.

A única pergunta séria, porque existencial e iniludível, sem a qual os discursos religiosos são "álibis", é esta: o Deus vivente assume ou não a morte do homem? Não faltam as respostas teóricas, mas estas não podem esquivar o escândalo que permanece: como Deus pode permanecer oculto e silencioso diante do inocente ferido e do justo oprimido? E o grito de Jó e de toda a humanidade. A resposta é "crucial", além de todas as palavras: na Cruzo Verbo é silêncio. Pendente de seu Pai, entrega-lhe seu espírito. E não obstante aí está o encontro de todos os humanos: o homem está em sua morte, e Deus se une a ele nela. Só o Deus amor é o vencedor da morte, e só pela fé nele o homem é libertado da escravidão da morte. A Sarça ardente da Cruz é assim o lugar oculto do encontro. O cristão contempla nela "aquele que traspassaram", e dela recebe "um espírito de benevolência e de súplica" (Jo 19,37; Zc 12,10). O testemunho de sua nova experiência será o de Cristo ressuscitado, vencedor da morte pela morte. O diálogo inter-religioso recebe então seu sentido na economia da salvação: faz mais que dar continuidade à mensagem dos profetas e à missão do Precursor; apóia-se no acontecimento da salvação consumada por Cristo e tende para o segundo Advento do Senhor. O diálogo inter-religioso se dá na Igreja em situação escatológica.

 

IV. CONCLUSÃO:
 DIÁLOGO E MISSÃO DA IGREJA

114. Neste fim do segundo milênio, a Igreja está chamada a dar testemunho de Cristo crucificado e ressuscitado "até as extremidades da terra" (At 1,8), em amplos mundos culturais e religiosos. O diálogo religioso é conatural à vocação cristã. Inscreve--se no dinamismo da Tradição vivente do mistério da salvação, cujo sacramento universal é a Igreja; é um ato dessa Tradição.

115. Como diálogo da Igreja, tem sua fonte, modelo e fim na Trindade Santa. Manifesta e atualiza a missão do Logos eterno e do Espírito Santo na economia da salvação. Por seu Verbo o Pai chama todos os seres humanos do nada à existência, e é seu Sopro que lhes dá a vida. Por seu Filho, que assume nossa carne e é ungido por seu Espírito, dirige-se a eles como a seus amigos, "fala com eles na terra" e lhes revela "todo o caminho do conhecimento" (cf. Br 3,36-38). Seu Espírito vivificante torna a Igreja Corpo de Cristo, enviada às nações para anunciar-lhes a Boa Notícia da ressurreição.

116. O Verbo pode nos dar a conhecer ao Pai porque aprendeu tudo dele e consentiu em aprender tudo do homem. Assim, deve se dar na Igreja para aqueles que querem encontrar seus irmãos e irmãs de outras religiões e dialogar com eles. Não são os cristãos os enviados, mas a Igreja; não são suas idéias o que apresentam, mas a Cristo; não será sua retórica que tocará os corações, mas o Espírito Paráclito. Para ser fiel ao "sentido da Igreja", o diálogo inter-religioso pede a humildade de Cristo e a transparência do Espírito Santo.

117. A pedagogia divina do diálogo não consiste apenas em palavras, mas também em fatos; as palavras manifestam a "novidade cristã", a do amor do Pai, de que os fatos dão testemunho. Agindo assim, a Igreja se mostra como sacramento do mistério da salvação. Nesse sentido, o diálogo inter-religioso forma parte, segundo os tempos e os momentos fixados pelo Pai, da "preparação evangélica". Com efeito, o testemunho mútuo é algo" inerente ao diálogo entre pessoas de religiões distintas. O testemunho cristão, aqui, não é ainda o anúncio do evangelho, mas já é parte integrante da missão da Igreja, como irradiação do amor derramado nela pelo Espírito Santo. Aqueles que, nos diversos modos do diálogo inter-religioso, dão testemunho do amor de Cristo Salvador realizam, em nível da "preparação evangélica", o ardente desejo do Apóstolo: "ser 'liturgo' de Jesus Cristo, consagrado ao ministério [hierourgunta] do Evangelho de Deus, a fim de os pagãos se tornarem uma oferenda que, santificada pelo Espírito Santo, seja agradável a Deus" (Rm 15,16).


 

CAPÍTULO I:

1. Cf. Commissio Theologica Internationalis, Fides et inculturatio, c. III, 10; cf. Greg 70 (1989), p. 640.

CAPÍTULO II:

1. Parece que se deve preferir essa leitura à da Vulgata, “omnem hominem venientem in mundura”. A Neovulgata traduz “veniens in mundum”.

2. Cf. Apol. I 5,4; II 6,7; 7,2-3 (BAC 116, 186s; 268; 269).

3. Cf. Apol. I 46,2-4; II 7,1-3 (232s;269).

4. Cf. Apol I 44,10; II 10,2; 13,2-6 (230;272; 276s).

5. Cf. Protr. I 6,4; X 98,4 (Sch 2bis, 60; 166); Ped. I 96,1 (Sch 70, 280).

6. Cf. Protr. X 110,1-3 (Sch 2bis, 178).

7. Cf. Strom. I 37,1-7 (Sch 30, 73-74).

8. Cf. Strom. VI 67,2 (GCS 15, 465).

9. Cf. Strom. I 28,1-3; 32,4 (Sch 30, 65; 69); VI 153-154 (GCS 15, 510s).

10. Cf. Strom. I 56-57 (Sch 30, 89-92).

11. Justino, Apol. I 44,8-9; 59-60 (BAC 116, 230; 247-249).

12. Clemente de Alexandria, Protr. VI 70 (Sch 2bis, 135); Strom. I 59-60; 87,2 (Sch 30, 93s; 113); II 1,1 (Sch 38, 32s).

13. Cf. Adv. Haer.III 16,6; 18,1 (Sch 211, 312; 342); IV 6,7; 20,4; 28,2 (Sch 100, 454; 634s; 758); V 16,1 (Sch 153, 214); Demons. 12 (Sch 406, 100).

14. Cf. Adv. Haer. IV 34,1 (Sch 100, 846s).

15. Contra Apol. XVI (PG 45, 1153). Cf. Também Ireneu de Lião, Adv. Haer: III 19,3 (Sch 211, 380); V 12,3 (Sch 153, 150); Demons.33 (Sch 406, 130); Hilário de Poitiers, In Mt.18,6 (Sch 258, 80s).

16. Cf. Hilário de Poitiers, Trin. II 24-25 (CCL 62, 60s); Atanásio, Contra Ar. III 25.33.34 (PG 26, 376; 393-397); Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9; V 2 (PG 73, 161; 753). Poder-se-ia também introduzir aqui a idéia do “intercâmbio”; cf. Ireneu, Adv. Haer. V prol. (Sch 153,14) etc.

17. Cirilo de Alexandria, In Joh. I 9 (PG 73, 164).

18. Cf. Hilário de Poitiers, Ir. Ps. 13,14; 14,5.17; 51,3 (CSEL 22, 81; 87s; 96; 98).

19. Cf. Orígenes, In Luc. Hom. 35 (CGS Orig. W. 9, 200s); De Princ. IV 11-12 (Or. W. 5, 339s); Agostinho, Civ. DeiV 13.19 “(CCL 47, 146-148; 154-156).

20. De carnis res. (De res. Mort.) 6 (CCL 2, 928; cit. em GS 22, n. 20): «Quodcumque limus exprimebatur, Christus cogitabatur, homo futurus»; quase imediatamente se acrescenta: «Id utique quod finxit, ad imaginem Dei fecit illum, scilicet Christi (…) Ita limus ille, iam tunc imaginem induens Christi futuri in carne, non tantum Dei opus erat, sed et pignus»; o mesmo em Adv. Prax. XII 4 (CCL 2, 1173).

21. Adv Haer. III 22,3 (Sch 211, 438).

22. Além dos textos já citados, cf. Agostinho, Ep. 137,12 (PL 33, 520s); Retr. I 13,3 (PL 32, 603).

23. Adv. Haer. III 18,3 (Sch 211, 350-352). Quase literalmente repetem a idéia Basílio de Cesaréia, De Spiritu Sancto XII 28 (Sch 17bis, 344), e Ambrósio de Milão, De Spiritu Sancto I 3, 44 (CSEL 79, 33).

24. Ad Ephesios 17, 1 (Sch 10, 86).

25. Adv. Haer. III 9,3 (Sch 211, 112). Para Ireneu, o Espírito desce sobre Jesus para “habituar-se” a habitar no gênero humano, ibid. 17,1 (330).

26. De Spir. Sancto contra Macedonianos 16 (PG 45 1321 A-B).

27. Ireneu, Adv. Haer. III 24,1 (Sch 211, 474).

28. Hom. Pent. I 4 (PG 49, 459).

29. A modo de exemplo, Ireneu de Lião, Adv. Haer III 17, 2 (Sch 211, 334): “(…) Dominus accipiens munus a Patre ipse quoque his donavit qui ex ipso participantur, in universam terram mittens Spiritum Sanctum”; Hilário de Poitiers, Tr. ps. 56,6 (CSEL 22, 172): “Et quia exaltatus super caelos impleturus esset in terris omnia sancti spiritus gloria, subiecit: et super omnem terram gloria tua (Sl 57,6.12). Cum effusum super omnem carnem spiritus donum gloriam exaltati super caelos domini protestaretur”.

30. Cf. Orígenes, In Iesu nave 3,5 (Sch 71, 142ss); Cipriano, De cath. Unit. 6 (CSEL 3/1, 214s); Ep. 73, 21 (CSEL 3/2, 795).

CAPÍTULO III:

1. Diálogo e Anúncio, 29: “Por meio da prática do que é bom em suas tradições religiosas e seguindo os ditames de sua consciência, os membros das outras religiões respondem positivamente ao convite de Deus e recebem a salvação em Jesus Cristo, ainda que não o reconheçam como seu salvador”.

2. Temas selectos de eclesiologia (1985), esp. Cap. 4; cf. Comisión Teológica Internacional, Documentos 1980-1985, Toledo, s.d., pp. 286-290; e especialmente Fides et inculturatio (1988): Greg 70 (1989), pp. 625-646.

3. Entre os documentos de João Paulo II, cf. RM 55-57; TMA 52-53; cf. Também o documento do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e a Congregação para a Evangelização dos Povos Diálogo e Anúncio, aqui citado repetidas vezes.

4. Gregório Nazianzeno, Carminum liber I, sectio I, 29 (PG 37, 507). 56

5. Catecismo da Igreja Católica, 2566.

6. Ibid., 2567.

7. João Paulo II, Ut unum sint, 33.

 

 

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